Valor Econômico
Destruído pelo fogo há dois anos, o
Pantanal agora está ameaçado pela água
A imagem é dilacerante - um corpo carbonizado, de joelhos, no meio das cinzas. Parece um homem, não fosse a longa cauda. Até onde a vista alcança está tudo morto. O fotógrafo Lalo de Almeida, autor de uma série de imagens impressionantes durante e depois dos incêndios de 2020-2021 que queimaram mais de 20% do Pantanal, lembra bem desse dia. O parceiro das reportagens da “Folha de S.Paulo”, jornalista Fabiano Maisonnave, ficara escrevendo na sede da fazenda na Serra do Amolar, Mato Grosso do Sul. Lalo saiu com Rafael Galvão, gerente da fazenda Santa Tereza, “um pantaneiro que só de olhar o aspecto da vegetação sabia onde o fogo tinha passado com mais intensidade”. Foi então que viram a família de bugios.
O fotojornalista retratou aves carbonizadas
presas a galhos destruídos, antas mortas pelo fogo, sucuris queimadas, filhotes
perdidos sem os pais, pontes pegando fogo, jacarés fugindo, brigadistas
extenuados. As imagens do que ele chama de “floresta de pesadelo” fizeram
história e venceram a categoria Meio Ambiente do World Press Photo, a mais
prestigiosa premiação mundial do fotojornalismo. Estão na memória de quem se
lembra das cenas daquele inferno que destruiu mais de 25% do bioma. Hoje,
passados dois anos, o Pantanal volta a pedir socorro.
Agora, contudo, a ameaça à maior planície
alagável do mundo está na água. O MapBiomas indicou uma redução de 68% na
superfície da água do Pantanal de 1985 a 2021.
A maior parte do bioma está no Brasil
(72%), mas há 24% na Bolívia e 4% no Paraguai. É Mato Grosso do Sul que
concentra a grande porção do Pantanal brasileiro: 65%. Os outros 35% estão em
Mato Grosso. O artigo 225 da Constituição Federal considera o Pantanal um
patrimônio nacional e não à toa: ali existem mais de 1.800 espécies de plantas,
650 de aves, 98 de répteis, 212 de mamíferos e 269 de peixes. É Patrimônio
Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela Unesco, mas os títulos
internacionais e nacionais não o protegem.
A Constituição de 1988 diz que o bioma tem
que ter uma legislação federal que o resguarde e defina sua utilização. Foi
assim com a Mata Atlântica. Mas o Pantanal, até agora, não teve o mesmo
destino. “Deveríamos ter uma lei federal, mas ela não existe”, diz Alexandre
Bossi, presidente do instituto SOS Pantanal, que há 14 anos luta pela sua preservação.
A lacuna da lei federal foi preenchida pelas legislações dos dois Estados e a
assimetria é flagrante. “A lei de Mato Grosso, a nosso ver, não é perfeita, mas
é satisfatória”, continua Bossi. Em Mato Grosso é proibido plantar soja na
planície pantaneira; em Mato Grosso do Sul, é permitido.
“A lei federal não existe. E as legislações
dos Estados não garantem proteção adequada”, diz Ana Luiza Peterlini, promotora
de Justiça da área ambiental de Mato Grosso. Em congresso ontem da Abrampa,
entidade que reúne promotores e procuradores de Justiça, ela apresentou uma
comparação entre as normas dos dois estados. As do Mato Grosso do Sul são bem
mais frágeis que as de Mato Grosso. Em Mato Grosso, usinas de álcool e açúcar,
carvoarias e mineração são proibidas no Pantanal, mas Mato Grosso do Sul só faz
restrições para as destilarias. Pecuária e agricultura intensivas e
assentamentos são proibidos em Mato Grosso, mas não é assim em Mato Grosso do
Sul. O transporte fluvial de produtos perigosos é proibido em Mato Grosso e
liberado em Mato Grosso do Sul. Proprietários rurais só podem fazer supressão
vegetal em 40% dos imóveis em Mato Grosso e a obrigatoriedade de Reserva Legal
é de 35% para áreas de Cerrado e 80% de florestas; em Mato Grosso do Sul é
possível suprimir 50% da vegetação arbórea, 60% da restante e a Reserva Legal é
de 20% do imóvel. As 4 mil nascentes que alimentam o Pantanal estão fora da
planície. O bioma recebe água dos rios do Planalto e da chuva. Bossi, no mesmo
evento da Abrampa, deixou claro que a legislação não unificada e diferente para
o mesmo bioma é o grande problema da região. “Hoje é uma bagunça”, resume.
“A legislação de Mato Grosso do Sul é muito
permissiva”, segue. A entrada da soja na planície, em Mato Grosso do Sul, é uma
angústia. Fertilizantes e pesticidas, com as cheias, vão direto para os rios.
“Ainda são poucos os produtores de soja. Mas tem que parar com isso. A hora de
agir é agora”, diz Bossi. Mais de 92% do desmatamento no Pantanal acontece em
Mato Grosso do Sul
Muita gente, por sorte, é apaixonada pelo
bioma mais preservado do Brasil, com 81% de vegetação nativa e, ao mesmo tempo,
tão frágil. “Tem que ser mesmo muito preservado, porque é um bioma com dinâmica
hidrológica própria. Não é qualquer atividade que dá para ser desenvolvida ali,
a não ser que se drene, o que é proibido. Deve-se respeitar o pulso de
inundação, como se fala por aqui”, registra Ana Luiza Peterlini.
Almir Sater
O encantamento com o Pantanal produziu
histórias dramáticas. Em novembro de 2005, o ambientalista Francisco Anselmo
Gomes de Barros estendeu dois colchonetes em forma de cruz na calçada, no
centro de Campo Grande. Usou dois galões de gasolina para encharcá-los, e ateou
fogo. As 150 pessoas reunidas no protesto contra a instalação de usinas de álcool
e açúcar na bacia do rio Paraguai, foram surpreendidas pelas chamas. Franselmo,
como era conhecido o homem de 65 anos, teve 100% do corpo queimado e morreu no
dia seguinte. Deixou 17 cartas a amigos e familiares. “Foi difícil tomar essa
decisão de sã consciência”, disse em uma delas. “A minha vida sempre foi um
sacerdócio em defesa da natureza.” Era presidente da Fundação para Conservação
da Natureza de Mato Grosso do Sul, primeira ONG ambiental do Estado.
Ontem, o compositor Almir Sater, que é de
Campo Grande e também é produtor rural, divulgou um vídeo onde revela a
apreensão com a fragilidade do bioma. “Estamos vendo que grandes lavouras, como
a de soja, estão entrando no Pantanal, o que é muito preocupante. Não sou
contra soja nem grandes lavouras, mas não aqui no Pantanal.” Seguiu dizendo que
técnicos que analisaram as águas na região de Miranda (MS) constataram a
presença de veneno. “Se tem veneno na água, tem no peixe. E se tem no peixe,
tem na gente”. O violeiro, idolatrado na região e famoso em todo o país, fez um
apelo às autoridades e à população: “Nos ajudem a defender esse patrimônio da
humanidade”.
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