Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Como as redes sociais ajudaram na
transformação de um país onde mendigos morriam para existir naquele em que é
pela autoria de assassinatos que jovens almejam reconhecimento
A camiseta, anunciada no Mercado Livre,
custa R$ 66,90. Na descrição das características do produto, consta que é “100%
algodão”, “silk screen”, masculina, com gola redonda e manga curta. A camiseta
preta, estampada de ódio em vermelho, já vendeu mais de 100 unidades. Ainda
está disponível nos tamanhos P e GG e é enviada em até um dia útil depois do
pagamento. Numa das dez fotos do anúncio, o autor de um massacre escolar nos
Estados Unidos posa com uma camiseta igual.
O vendedor, do interior de São Paulo, tem o perfil mais qualificado do site pelo bom atendimento que presta e pela entrega dos produtos no prazo. Coloca-se à disposição para eventuais dúvidas. Toma a iniciativa de esclarecer a primeira delas: “Aviso à patrulha do politicamente correto, não incitamos, não fazemos apologia, somos contra qualquer tipo de violência, seja essa física ou verbal! Assim como somos contra bullying e a favor da livre manifestação de toda e qualquer forma de expressão, menos apontamentos e terceirização de culpa”.
O anúncio é apenas um dos indícios do
culto, originado nos Estados Unidos e replicado no Brasil, à dupla que
perpetrou o ataque na escola em que estudava no estado americano do Colorado.
Outros se seguiram nos Estados Unidos com um número ainda maior de vítimas, mas
é a dupla de Columbine que segue sendo reverenciada. O mercado atende aos fãs
com jogos eletrônicos e sites com fotos, passagens dos diários que ambos
mantiveram nos anos em que planejaram o ataque e vídeos caseiros da dupla que
foram apreendidos, mas seguiram em circulação.
A efeméride de 20 de abril, não por
coincidência, dia do nascimento de Adolf Hitler, cultuado pela dupla, foi
identificada pela equipe montada pelo Ministério da Justiça reunindo a Polícia
Federal e policiais civis de todos os estados como responsável pela inflação de
ameaças nas redes. Em dez dias, foram registrados mais de 1,5 mil boletins de
ocorrência e 965 intimações para adolescentes prestarem informações.
As operações foram mantidas em sigilo para
não aumentar o clima de pânico entre pais e alunos depois da morte de uma
professora e quatro crianças em atentados que ainda deixaram outras 11 crianças
e 5 professoras feridas. Os ataques ocorreram em apenas duas semanas, em uma
escola estadual em São Paulo, numa creche municipal em Blumenau, numa escola
adventista em Manaus e numa escola municipal no Ceará.
Das grandes crises que mobilizaram o
aparato de segurança do Estado desde a posse de Lula - a invasão dos Poderes em
8 de janeiro, o combate ao garimpo ilegal na reserva dos Yanomamis e os ataques
do crime organizado no Rio Grande do Norte -, esta é a mais disruptiva. E
também aquela que o Ministério da Justiça considera a mais difícil de ser debelada
porque não tem uma única causa.
Entre o bullying e o culto ao neonazismo,
crianças e adolescentes viveram uma pandemia em que não apenas foram confinadas
em ambientes familiares muitas vezes dominados por tensões e tragédias, como
foram empurradas para a internet e para as redes sociais.
Se o antissemitismo foi cultivado por
séculos antes de eclodir com o nazismo, a cultura da intolerância ganhou tração
com o algoritmo. No levantamento do Instituto Sou da Paz, entre mortos e
feridos de 2002 a 2022, identificaram-se 93 casos, excluindo-se os anos de 2020
e 2021, quando as escolas, em grande parte, funcionaram remotamente. O ano de
2022, com o retorno das aulas presenciais, trouxe um quarto dos ataques com
armas de fogo desse período. No momento em que as escolas poderiam funcionar no
acolhimento das agressões vividas durante a pandemia, acabaram por se
transformar nos lugares em que a violência encontrou vazão.
Junto com o ano de 2023 chegou a onda de
ataques com armas brancas - quatro, em duas semanas. A matriz de sua violência
tem sido associada ao 8/1 não apenas pelo entorno do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva quanto pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de
Moraes. Se a intentona levou a um cerco crescente por maior regulação das redes
sociais, o ataque nas escolas acabou por torná-lo inevitável. Em ato no Palácio
do Planalto, Moraes se indagou por que a inteligência oficial não poderia ser
usada para identificar e remover das plataformas as mensagens de ódio.
As plataformas resistem não apenas a
investir em alternativas capazes de impor barreiras a um modelo de negócios que
potencializa a audiência de conteúdos extremistas como até mesmo a exigir a
simples identificação dos usuários. No embate provocado pelos ataques às
escolas, porém, nenhuma foi tão longe quanto o Twitter, que desafiou o MJ antes
de voltar atrás na disposição ao diálogo.
O apelo da liberdade de expressão é usado
tanto pela base bolsonarista como por parlamentares governistas contra a
regulação das redes. Argumenta-se que a atuação do MJ faculta ao Executivo de
plantão a discricionariedade da punição das redes sociais. As mortes, porém,
podem levar o Congresso a sair da letargia e votar, ainda em abril, restrições
e punições mais efetivas no projeto de lei das “fake news”.
Para pressionar o Congresso, o MJ resolveu
editar uma portaria que permite a instauração de processo administrativo para
apurar a responsabilidade das plataformas na propagação de conteúdos que
incentivem ataques contra o ambiente escolar ou que façam apologia a esses
crimes. Escudou-se na Lei de Defesa do Consumidor para livrar-se da acusação de
que uma portaria não se sobrepõe a uma lei.
Esta lei é o Marco Civil da Internet, de
2014. Seu artigo, em nome da liberdade de expressão, condiciona a responsabilização
de redes sociais por danos de conteúdo gerado por terceiros ao descumprimento
de ordem judicial. A este artigo atribui-se parte da leniência das redes
sociais na moderação de conteúdo.
A portaria ainda prevê que as plataformas
sejam orientadas a impedir a criação de novos perfis a partir de endereços
virtuais em que já tenha sido detectada a disseminação de conteúdo extremista.
A resistência do Twitter, que alegou a inexistência de previsão legal para a
portaria, só aumentou a disposição do STF de levar a julgamento a
constitucionalidade do artigo 19 do marco civil. Os ministros estão
determinados a pautar o tema - ou pelo menos assim se anunciam para pressionar
o Congresso.
Quando Columbine apareceu no mapa-múndi, as
redes sociais ainda engatinhavam nos EUA em plataformas restritas. Não por
acaso, como contou Dave Cullen em “Columbine” (Darkside, 2019), foi em seu
diário que um dos assassinos registrou: “Nos vingaremos [da sociedade] e então
poderemos existir num lugar atemporal, num lugar cheio de alegria e de
felicidade”.
A epidemia de assassinatos em escolas que
tem invadido o Brasil demonstra a atualidade desse comportamento de matar para
existir perante uma comunidade da qual se sentem alijados. São crimes
anunciados e, muitas vezes, reproduzidos nas redes.
Este é um fenômeno que não existia no
Brasil no início quando Lula chegou pela primeira vez ao poder. O paradigma da
crueldade juvenil àquela época foi estabelecido por quatro jovens, que tinham
entre 17 e 19 anos, quando atearam fogo e mataram o pataxó Galdino dos Santos
num abrigo de ônibus em Brasília.
Pretendiam ser esquecidos pelo crime quando
fugiram, mas a placa do carro em que estavam foi anotada. Eles foram presos,
julgados e condenados, mas cumpriram metade da pena prevista. Vinte e seis anos
depois, retomaram sua vida em liberdade.
O país voltou a ser sacudido em 2004,
quando o país era governado por Lula, São Paulo, por Geraldo Alckmin, e a
capital, por Marta Suplicy. Na madrugada de 19 de agosto daquele ano, dez
pessoas que dormiam enroladas em cobertores no centro de São Paulo foram
golpeadas na cabeça. Quatro morreram na hora e duas, no hospital. Três dias
depois, um novo ataque contra cinco moradores de rua, também na capital
paulista, matou um.
Em pesquisa sobre o tema, o antropólogo
Daniel De Lucca registrou o esforço de moradores de rua da região em
identificar os corpos e evitar a indigência. De um deles ouviu que, pelo menos
na hora de morrer, dada a atenção despertada pela violência, eles poderiam ser
tratados como gente com enterro em caixão de madeira. Deparava-se com a
inserção social pela morte.
Em artigo para a coletânea “Novas faces da
vida nas ruas” (Edufscar, 2016), organizada por Taniele Rui, Mariana Martinez e
Gabriel Feltran, De Lucca recupera a pedregosa investigação que levou um ano e
dois meses para pedir a prisão preventiva de cinco policiais militares e um
segurança clandestino que teriam sido motivados ao crime por queima de arquivo.
Até uma testemunha do crime foi morta durante a investigação. O caso até hoje
perambula sem decisão definitiva no Judiciário.
O desfecho das mortes nas escolas não
poderia ser mais distinto. Os três adolescentes foram presos em flagrante e o
jovem de 25 anos que matou as crianças na creche de Blumenau se dirigiu até a
delegacia para se entregar.
Mendigos nunca deixaram de ser mortos num
país que renova a licença da coabitação do crime organizado com a multidão de
indigentes que vagueia pelas grandes cidades. Criança assassinada em escola
também não chega a ser novidade no país da bala perdida. O que parece
diferenciar a conjuntura é que, além da violência gerada pelos extremos da
degradação social, o país importou crimes de ódio potencializados pelas redes
sociais.
Entre os assassinatos de moradores de rua e aqueles de crianças nas escolas está uma fração das mudanças pelas quais o Brasil passou. Das vítimas cuja existência foi reconhecida pela morte à leva de jovens que almeja reconhecimento pelo assassinato de semelhantes, as redes sociais aumentaram o alcance do macabro espetáculo da polarização.
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