CPMI do 8 de Janeiro nada tem a acrescentar
O Globo
PF, PGR e STF têm sido competentes na
investigação e no julgamento dos acusados de agredir a democracia
O pedido de demissão do ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, depois da
divulgação de vídeos em que ele é visto no Palácio do Planalto durante a
invasão de 8 de janeiro, tornou praticamente inevitável a instalação de uma
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os atos golpistas. A base
do governo, até então contrária à ideia, mudou de opinião depois do episódio,
que abriu mais uma crise no governo Luiz Inácio Lula da Silva, com menos de
quatro meses de mandato.
Criar a CPMI para apurar responsabilidades pela violência antidemocrática é direito dos parlamentares, em especial da minoria. Mas ela nada terá a acrescentar. Claro que tudo tem de ser apurado. Só que isso já vem sendo feito desde 8 de janeiro. Não tem cabimento usar o episódio para justificar uma CPMI que não serve para nada, a não ser investigar o que já é investigado.
Polícia Federal (PF) e Procuradoria-Geral
da República (PGR) têm feito um trabalho competente para identificar
participantes, financiadores e incentivadores dos atos golpistas, além de
apontar autoridades que se omitiram ou colaboraram. As operações Lesa Pátria,
da PF, não param de prender acusados. O Judiciário também tem feito a sua
parte. No STF, ministros já formaram maioria para tornar réus cem denunciados
pela PGR.
A partir de agora, haverá nova coleta de
provas, depoimentos e interrogatórios, passos essenciais para responsabilizar
os que protagonizaram um dos episódios mais nefastos da história do país.
Aplicar a lei, punindo os responsáveis pelo atos antidemocráticos, é a melhor
forma de impedir que eles se repitam. Os riscos não cessaram. Mas tudo precisa
ser feito sem açodamento ou revanchismo, de modo a centrar o foco em quem
realmente tramou o golpe. Para isso, serve a investigação.
Apesar da histeria que tomou conta dos
petistas, as imagens do circuito interno que levaram à saída do general Gonçalves
Dias nada provam. Os vídeos o mostram caminhando ao lado de golpistas no andar
do gabinete da Presidência e abrindo uma porta para que invasores se afastem.
Numa cena, um integrante do GSI dá água aos golpistas e não intervém quando um
dos vândalos carrega um extintor de incêndio.
Dias alegou ter entrado no Planalto depois
da invasão. Disse que agia para retirar os extremistas e levá-los ao segundo
andar, onde seriam detidos. É uma explicação plausível, que só a perícia
detalhada das imagens e outras provas podem confirmar. Mas, do ponto de vista
político, as imagens são comprometedoras antes da investigação.
Nesse cenário confuso, a instalação de uma
CPMI não passa de diversionismo. A intenção não é apurar nada, apenas tumultuar
um ambiente já conturbado. Muitos parlamentares sustentam a tese ridícula de
que o governo forjou o próprio golpe para se fazer de vítima. Claro que a
questão não é a CPMI em si. Investigações parlamentares podem prestar serviços
relevantes, mas a maioria não dá em nada.
Melhor seria se os parlamentares se ocupassem
de pautas urgentes para o Brasil, como a votação do novo arcabouço fiscal ou da
reforma tributária. Inúmeras outras agendas relevantes dependem dos deputados e
senadores. Armar um circo com uma CPMI feita sob medida para desviar a atenção
do que realmente importa pode até atender a interesses políticos imediatos, mas
será péssimo para o país.
Nova lei europeia torna ainda mais urgente
combate ao desmatamento
O Globo
No segundo semestre de 2024, países da UE
passarão a comprar apenas produtos com garantia de origem
Em dezembro de 2018, antes da posse de Jair
Bolsonaro na Presidência, diversos exportadores fizeram chegar a ele sua
preocupação com ameaças europeias de boicote a produtos agrícolas brasileiros
por causa do avanço do desmatamento na Amazônia. Não foram ouvidos, a
devastação quebrou recordes sucessivos — e Bolsonaro não se reelegeu. Agora o
governo Luiz Inácio Lula da Silva terá de lidar com as consequências.
O Parlamento Europeu aprovou na
quarta-feira o veto à importação de produtos de áreas desmatadas ilegalmente a
partir de 31 de dezembro de 2020, abrangendo a maior parte do governo
Bolsonaro. Estão na mira dos legisladores europeus carne, soja, madeira, óleos
de palma e soja, borracha e produtos derivados como couro, móveis e chocolate.
Os 27 países do bloco europeu terão de cobrar certificados de origem dos
produtos principalmente de Brasil, Indonésia, Malásia, Nigéria, República
Democrática do Congo, Etiópia, México e Guatemala.
Errou quem imaginava que as ameaças de
boicote em nome da preservação ambiental e do combate ao aquecimento global
demorariam a se converter em ações concretas. Com a aprovação da retaliação
contra o desmatamento, a medida passará pelo Conselho Europeu, será publicada
no Diário Oficial do bloco, e 20 dias depois começará a contar o prazo de 18
meses para a UE erguer a barreira contra produtos de zonas de desflorestamento
ilegal. A previsão é que, no segundo semestre do ano que vem, entre em vigor a
Lei de Produtos Livres de Desmatamento.
O governo brasileiro precisa mobilizar não
apenas o Ministério da Agricultura, mas também o Itamaraty para prestar auxílio
aos exportadores agrícolas. A nova lei é uma vitória do forte lobby dos
pequenos produtores rurais, que também rejeitam o acordo comercial Mercosul-UE,
por não serem capazes de resistir à concorrência de Brasil e Argentina. Com
base nela, tentarão barrar importações de alimentos brasileiros. O contencioso
diplomático com a Europa também sofrerá as consequências das declarações
desastradas de Lula sobre a guerra na Ucrânia.
Embora a legislação europeia tenha um teor
protecionista, suas exigências oferecem uma oportunidade para o Brasil
institucionalizar o combate ao desmatamento ilegal. É conhecido o modelo
predatório com que o Brasil tem transformado bordas da Amazônia em áreas
produtivas. Primeiro, vem a motosserra, depois o gado, por fim campos de soja.
Há vários anos, porém, produtores rurais dispõem de técnicas para aumentar a
produtividade sem derrubar a floresta. Há também tecnologia para rastreamento
dos produtos oriundos de áreas livres de desmatamento. Precisam ser ampliadas
as experiências bem-sucedidas de certificação de carne para exportação.
Outro trabalho fundamental é a reativação da fiscalização do Ministério do Meio Ambiente, esvaziada na gestão Bolsonaro, para punir os produtores rurais que trabalham na ilegalidade. Evitar a destruição da Amazônia, do Cerrado ou da Mata Atlântica precisa ser uma política de Estado.
A queda de GDias
Folha de S. Paulo
Demissão do ministro complica a vida do
governo e dá alento a bolsonaristas
Caiu o general Gonçalves Dias.
Ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) até quarta-feira
(19), ele pediu demissão após serem divulgadas imagens que lançam novas dúvidas
sobre a atuação do órgão durante o ataque antidemocrático de 8 de janeiro.
Não havia meios de o general se manter no
cargo, e não são poucos os que se perguntam como o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) não atinou com isso mais de cem dias atrás. Há muito era sabido
que GDias, como é conhecido, comandava uma unidade que, na melhor das
hipóteses, revelou-se incapaz de antecipar o assalto tresloucado à praça dos
Três Poderes.
A novidade embutida no vídeo da CNN Brasil
está no contraste entre o caos gerado por apoiadores de Jair Bolsonaro (PL)
e a serenidade
com que integrantes do GSI passeiam pelo Palácio do Planalto. São
militares que ora assistem inertes ao vandalismo, ora cumprimentam membros da
turba ignara, ora lhes oferecem água.
O próprio GDias aparece desfilando pelo
terceiro andar do palácio, na antessala do gabinete do presidente da República
—em nenhum momento, porém, as imagens sugerem o general em momentos de camaradagem
descarada com os criminosos.
Verdade que, como o governo Lula se
apressou em dizer, vários integrantes do GSI haviam sido nomeados pela gestão
Bolsonaro; vários, para não dizer todos, foram afastados das respectivas
funções e estão sob investigação há meses.
Mas isso não ofusca a falta de comando de
GDias nem diminui o estranhamento provocado por sua atitude diante das imagens
gravadas pelas câmeras de segurança. Ele rejeitou pedido feito pela Folha por
meio da Lei de Acesso à Informação e, segundo se divulga, negou-se a entregar a
íntegra a Lula —mas o governo divulgou trechos editados da baderna.
Como consequência do episódio, a base
governista viu-se forçada a mudar de atitude sobre a instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito sobre os atos golpistas.
O colegiado nunca se mostrou necessário,
pois as investigações avançam em diversas frentes; no Supremo Tribunal Federal,
já há maioria para levar ao banco dos réus nada menos que cem pessoas acusadas
de participar do vandalismo antidemocrático.
Além disso, a comissão nunca interessou a
Lula. O presidente temia transtornos para sua pauta no Congresso, mas precisou
ceder para não fornecer munição a quem imputa ao próprio governo a maquinação
dos ataques.
Por mais disparatada que seja, a tese
encontra abrigo entre bolsonaristas, e não se pode desprezar o quanto lhes
servirá de alento a primeira queda de ministro de Lula.
Negócio da China
Folha de S. Paulo
Trapalhada na tentativa de coibir sonegação
mina confiança em planos tributários
Para um governo que pretende elevar a
receita pública em mais de uma centena de bilhões de reais ao ano, as primeiras
iniciativas não se mostraram promissoras,
Primeiro, foi preciso recorrer a um
esdrúxulo imposto sobre as exportações de petróleo, que sangra os cofres da
Petrobras, por receio de recompor integralmente a tributação dos combustíveis,
que seria impopular ao elevar preços. Agora, uma
atabalhoada tentativa de taxar importações de artigos chineses resultou em
fiasco.
Antes de estar pronto para tomar uma
providência efetiva, o governo anunciou, por meio de diferentes autoridades, a
intenção de acabar com a isenção de tarifas para transações de até US$ 50 entre
pessoas físicas. A norma, argumentou-se, é aproveitada por empresas chinesas
para escapar do imposto sobre compras no exterior, de até 60%.
Em 3 de abril, duas semanas antes de ser
obrigado a deixar o plano de lado, o ministro Fernando Haddad, da Fazenda,
declarava o objetivo de arrecadar entre R$ 7 bilhões e R$ 8 bilhões com o
enfrentamento do que chamou de contrabando —denunciado também por varejistas
brasileiros.
À medida que a ideia se propagava, a
repercussão na opinião pública se tornava mais negativa. Tratava-se, afinal, de
tributar transações às quais recorrem consumidores pobres e remediados.
Na semana passada, o governo mobilizou até
influenciadores aliados nas redes sociais para defender a proposta, que nem
sequer havia sido formalizada. Mas haveria mais trapalhadas pela frente.
Dizendo ter recebido explicações de Haddad,
a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, aventurou-se a dizer a
taxação seria sobre empresas, não consumidores —como se não fossem estes a
pagar preços mais elevados.
O próprio Haddad, em viagem à China, achou
por bem esclarecer que não conhecia a Shein, uma das empresas visadas, mas
apenas a Amazon, pela qual, gabou-se, compra ao menos um livro a cada dia. Dias
depois, na terça (18), coube ao ministro anunciar que o Palácio do Planalto
desistira de pôr fim à brecha tributária.
Restou minimizar danos: o governo fez saber que Janja teria tido grande influência no recuo; enfim apresentado à Shein, Haddad divulgou o que seriam planos da empresa para gerar empregos no Brasil. Para a credibilidade dos objetivos oficiais de arrecadação, porém, não se encontrou paliativo.
Basta de segredos
O Estado de S. Paulo
A crise gerada pelo vazamento de imagens do
8 de Janeiro, que derrubou o ministro do GSI, expõe as consequências da cultura
da opacidade. O sigilo generalizado nesse caso é inaceitável
A revelação, pela CNN, de imagens de
câmeras de segurança do Palácio do Planalto nas quais aparece o então
ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves
Dias, durante a invasão de bolsonaristas da sede do Executivo no 8 de Janeiro
precipitou um turbilhão político. Os trechos divulgados mostram agentes
acompanhando Dias no terceiro andar enquanto os invasores circulam sem serem
detidos.
O agora ex-ministro alega que atuou para
conduzi-los ao segundo andar, onde, com o reforço da PM, as prisões foram
realizadas. É plausível, mas, na prática, o estrago político está feito –
afinal, desde aquele fatídico dia, os bolsonaristas se empenham em emplacar a
tese de que a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes foram
facilitadas e lideradas por “infiltrados” do governo e do PT.
No meio político, as versões abundam e se
chocam. Membros do governo alegam que os agentes do GSI seriam bolsonaristas e
estariam apoiando o vandalismo até a chegada de Dias, homem de confiança do
presidente Lula da Silva, para impor a ordem. A oposição reavivou teorias
conspiratórias e questionou a parcialidade da Justiça na condução dos processos.
Tornou-se insustentável a posição do ministro, que se demitiu, e o governo,
antes refratário à instalação de uma CPI sobre o 8 de Janeiro, por temer que se
transformasse em ribalta para a oposição, passou a apoiá-la.
Há muitas questões no ar. Se os agentes
foram coniventes, por que não foram denunciados pelo ministro? Se o presidente
sabia dessa conduta, por que não demitiu todos antes? Por que a
Procuradoria-Geral da República não os denunciou e o Supremo Tribunal Federal
não os indiciou?
São indagações cujas respostas são
urgentes, sem tergiversações, mas isso só será possível se e quando se levantar
o sigilo de todas as imagens daquele dia trágico em Brasília, para que sejam
escrutinadas pela sociedade. Sem isso, todas as teorias podem fazer sentido,
ainda mais quando vêm acompanhadas de imagens cuja autenticidade se desconhece
e que podem ter sofrido toda sorte de manipulações.
Tudo isso expõe – in nuce, mas de maneira
explosiva – um vício de origem, com todas as suas consequências nefastas: a cultura
da opacidade entranhada em Brasília.
Todo poder emana do povo. Os membros dos
Três Poderes são mandatários, o povo é seu mandante. E, no entanto, o mandante
tem sido mantido no escuro por seus mandatários. Na coisa pública, a
transparência é a regra, e o sigilo, a exceção, como está na Constituição.
Por que, então, três meses após as
invasões, as cenas registradas pelas câmeras dos Três Poderes ainda não estão
disponíveis para exame da população? Pode haver maior interesse público que a
verificação dos fatos ocorridos durante o maior atentado à democracia desde o
fim da ditadura? Se há trechos que põem em risco a segurança nacional ou dados
constitutivamente sigilosos, que sejam mantidos sob segredo, devidamente
justificado. Mas, obviamente, eles são exceção. O resto já deveria estar à
disposição dos cidadãos.
No entanto, não só as gravações, mas todos
os inquéritos são mantidos sob sigilo. E não há meses, mas há anos, já que as
investigações sobre o 8 de Janeiro foram incorporadas ao inquérito secreto das
fake news aberto em 2019.
Essa situação sombria, além de ser, por
princípio, inaceitável, é contraproducente para os próprios Poderes. Governo e
Congresso se veem colhidos pela turbulência quando têm pautas importantíssimas
a avançar, como o arcabouço fiscal ou a reforma tributária. A Justiça,
justamente no momento em que inicia o julgamento dos acusados pelas invasões, é
enredada por suspeitas e pressões políticas de todos os lados. Ela está
colhendo o que plantou. Mas os frutos são amargos para a população. O sigilo
fere justamente o bem que supostamente deveria preservar: a normalidade
institucional.
Para resgatá-la, não é preciso mais que
seguir a Constituição: a publicidade é a regra. O Brasil não pode ficar refém
das versões fabricadas nos desvãos de Brasília. Transparência já!
O vespeiro dos ‘jabutis tributários’
O Estado de S. Paulo
Renúncias fiscais garantem vantagens a
setores beneficiados, mas não se sabe se trazem resultados efetivos para o País
nem se esses resultados poderiam ser obtidos a custo mais baixo
No anúncio do novo arcabouço fiscal, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reconheceu que o governo precisa elevar
receitas para reduzir o déficit no Orçamento e retomar o equilíbrio das contas
públicas nos próximos anos. Segundo o ministro, atingir esse objetivo não
requer aumentar a carga tributária, mas enfrentar as renúncias fiscais. O alvo
do ministro são as medidas que reduzem a arrecadação da União em favor de um
setor ou contribuinte por meio de subsídios, isenções, anistias, desonerações
ou créditos presumidos, e que ele tem chamado de “jabutis tributários”.
Entre contemplados por essas medidas, há de
tudo um pouco. Estão enquadrados na categoria de gastos tributários o Simples
Nacional, os incentivos para as fábricas que se instalam na Zona Franca de
Manaus, os benefícios concedidos a entidades filantrópicas, a renúncia de
tributação de lucros e dividendos distribuídos a pessoas jurídicas, as
remissões concedidas por meio do Refis, a desoneração da folha de pagamento
para setores específicos e o Rota 2030. Também integram a lista, entre muitos
outros exemplos, as deduções de despesas de pessoas físicas com saúde e
educação e a isenção dos itens da cesta básica.
Apesar de todas as restrições e
dificuldades orçamentárias, ao menos nesse aspecto o Estado brasileiro tem sido
bastante generoso. Ao longo do ano passado, o governo federal abriu mão de R$
367 bilhões em receitas com os gastos tributários, o equivalente a 4% do
Produto Interno Bruto (PIB).
Quem desfruta dessas condições julga
merecer o tratamento diferenciado que conquistou, ao passo que os excluídos costumam
considerá-las uma verdadeira regalia.
O histórico mostra que, uma vez concedida,
dificilmente a benesse é revista. Algumas não têm prazo definido para vigorar;
outras são sucessivamente renovadas. A perenidade dessas medidas estimula uma
prática perniciosa. Os setores costumam pedir benefícios ao governo federal,
mas, em caso de insucesso, recorrem ao Legislativo, ambiente em que a defesa do
lobby se dá de maneira mais difusa e opaca. Diante do protagonismo que o
Congresso conquistou na definição do Orçamento e da própria agenda do País,
discutir os gastos tributários tornou-se o mesmo que mexer em um vespeiro. Na
teoria, é uma agenda muito fácil de defender. Na prática, é a mais difícil de
colocar em prática.
Um exemplo que ilustra essa situação é a Emenda
Constitucional 109/2021. Conhecida por autorizar o pagamento de um auxílio
emergencial a vulneráveis no segundo ano da pandemia de covid-19, ela
estabelecia, também, uma obrigação ao governo: elaborar um plano de corte de
gastos tributários com vistas a reduzi-los de 4% para 2% do PIB ao longo de
oito anos. Como muitas outras metas anunciadas pelo ministro Paulo Guedes, esse
compromisso ficou no papel, desmoralizando o governo Jair Bolsonaro e a própria
Constituição.
Nada disso, no entanto, deve ser motivo
para o governo de Lula da Silva não encampar esse necessário desafio como um
plano de remodelação do Estado. Para isso, será preciso aprender com os erros
cometidos no passado e não apostar em estratégias que já fracassaram. Nesse
sentido, mais do que simplesmente calcular os custos dessas medidas e expor os
favorecidos para isolá-los, o governo seguiria um bom caminho se se dedicasse a
ir além do mérito de cada setor e levantasse o que essas políticas têm trazido
ao País em termos de crescimento do PIB, geração de empregos, redução de preços
e benefícios aos que realmente dependem do Estado para sobreviver.
Passou da hora de o governo fazer uma
análise realista sobre o custo-benefício dessas medidas, com base em dados
concretos levantados pelo próprio corpo técnico do setor público, que tem plena
capacidade para fazer este trabalho. Não há dúvida de que essas políticas
proporcionam vantagens aos setores abarcados. A questão é se trazem, também,
resultados para o País e a sociedade, e se estes mesmos resultados não poderiam
ser atingidos de formas mais transparentes, eficientes e, sobretudo, menos
onerosas ao Estado.
Em favor do crédito
O Estado de S. Paulo
Pacote do governo vem em boa hora, diante
da escassez de crédito e do alto endividamento
Caminha na direção correta o pacote de
estímulo ao crédito lançado pelo governo federal nesta semana, no momento em
que a alta dos juros e da inadimplência provocou retração acentuada da oferta
de financiamento. Algumas das medidas poderão ser implementadas a curto ou
médio prazo; outras precisarão do aval do Congresso.
Em seu conjunto, as medidas podem dar fôlego
aos brasileiros endividados e ajudar a deslanchar as tão propaladas Parcerias
Público-Privadas (PPPs) de Estados e municípios, que evoluem de forma muito
lenta. O mercado de capitais também mereceu atenção com medidas que protegem os
acionistas minoritários de eventuais malfeitos de controladores e sócios
majoritários. E ainda tenta acelerar a tramitação de normas que mudam a forma
de resgate de bancos sem o uso de dinheiro público.
Para os considerados superendividados – as
famílias que destinam 50% ou mais da sua renda para pagar juros e
financiamentos –, o alívio virá com o aumento do valor do chamado mínimo
existencial. A partir da nova regulamentação, nas negociações com credores, a
quantia que não pode ser tirada da renda dos cidadãos para o pagamento da
dívida salta de R$ 303 para R$ 600, como forma de garantir sua sobrevivência.
Pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de 2022 apurou que 17,6% dos
entrevistados se declararam muito endividados. Cerca de 15 milhões de pessoas
poderão ser beneficiadas.
Alterações importantes estão sendo
propostas no sistema de garantia de crédito. Será possível usar um mesmo bem
como garantia de mais de um empréstimo. Se um imóvel for avaliado em R$ 200 mil
e R$ 50 mil foram financiados, R$ 150 mil poderão lastrear outras operações.
Outra medida possibilita que, ao tomar um crédito, as pessoas deem como
garantia os recursos aplicados na Previdência complementar aberta, seguros de
pessoas e títulos de capitalização. Cerca de R$ 1,2 trilhão poderá ser
utilizado como garantia dessa forma. Também estão previstas a simplificação da
emissão de debêntures e a redução de exigências burocráticas na concessão de
crédito.
Nem todo o pacote terá que passar pelo
crivo dos congressistas – quatro das medidas são infralegais. O governo deverá
encaminhar ao Parlamento seis projetos de lei e dá seu apoio formal a três
medidas já em tramitação no Congresso. É possível que a implementação das
resoluções seja mais rápida do que o usual porque muitas das decisões
anunciadas pela Fazenda eram reivindicações antigas do setor bancário
(interessado em especial em modernizar o sistema de garantia de crédito) e há
grande preocupação nas empresas com a inadimplência dos clientes. Governadores
e prefeitos também devem pressionar a favor das decisões que facilitam as PPPs.
É salutar que o governo não tenha se
acanhado em manifestar seu apoio a medidas que já estavam no Congresso,
enviadas por outros governos, mesmo que eles tenham defendido uma política
econômica muito diferente da que se desenha agora na administração de Lula da
Silva. Decisões simples que ajudem a melhorar a oferta de crédito, num ambiente
de retração, são bem-vindas.
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