Professor e diretor da FGV Direito SP relança livro sobre limites a reformas da Constituição
Uirá Machado / Folha de S. Paulo
SÃO
PAULO - Oscar Vilhena vive uma situação
inusitada: está relançando um livro publicado em 1999 que soa mais atual hoje
do que 24 anos atrás.
"A Constituição e sua Reserva de Justiça", agora
reeditado, analisa até onde é possível reformar a Carta Magna brasileira
e como a democracia pode se defender de ataques feitos
de dentro do próprio sistema.
Na virada do século, esse era um problema apenas teórico no
Brasil: "Havia um otimismo em relação à estabilização da democracia
brasileira", afirma o professor e diretor da FGV Direito SP. "Hoje nós enfrentamos a fera de frente; naquela
época, era uma fera hipotética", completa.
Quem saiu na linha de frente da defesa da
democracia foi o STF (Supremo Tribunal Federal), nem sempre
com o aplauso da comunidade jurídica e quase sempre sob vaias do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados.
Para Vilhena, que é colunista da Folha, é possível apontar
exageros pontuais, mas, de forma geral, ele aprova a atuação do STF dentro do conceito de "democracia
militante", que ele explica na entrevista a seguir.
Nesta quinta-feira (11), Vilhena participa de debate de lançamento
do livro no auditório da FGV Direito (rua Rocha, 233, Bela Vista, em São
Paulo). O evento será das 17h às 20h. A entrada é gratuita, com inscrições pelo
site da faculdade (direitosp.fgv.br/eventos).
Como foi perceber que esse livro, publicado originalmente em 1999,
soa muito mais atual hoje do que naquela época?
Naquele momento, havia um otimismo em relação à estabilização da
democracia brasileira. Os temores de regressão a um regime autoritário não
estavam no horizonte.
Com a experiência de instabilidade que surge a partir de 2013 no
Brasil, culminando com a eleição de Bolsonaro, nós
passamos a ver que a democracia poderia sofrer um processo de erosão a partir
de dentro.
E o livro trata disso. O exemplo de Weimar estava na minha mente
[referência o período de 1919 a 1933 na Alemanha, conhecido como República de
Weimar, quando a Constituição passou por reformas que favoreceram a ascensão do
nazismo]. O que nós experimentamos a partir de 2018 levou meu colega Dimitri
Dimoulis a dizer: "Esse livro não pode ficar sem uma reedição, porque ele
demonstra o quanto é importante a democracia criar mecanismos de
autodefesa".
Como mostram os exemplos da Venezuela, da Hungria, da Turquia e da Índia, uma das
formas de erosão é o que se chama hoje de constitucionalismo abusivo: alterar cláusulas centrais da Constituição para
que o poder domestique a ordem constitucional. Hoje nós enfrentamos a fera de
frente; naquela época, era uma fera hipotética.
No livro, o sr. também analisa o caso da Constituição americana, em geral apontada como exemplo de estabilidade.
O caso americano demonstra o quanto a hiper-rigidez da
Constituição pode levar a crises. Na Alemanha, era um sistema flexível em que
não havia ferramentas para impedir o processo de mudança constitucional
colocado em marcha. Nos Estados Unidos, é o contrário: a hiper-rigidez
constitucional impediu o fim da escravidão, e esse conflito terminou resolvido
por uma guerra.
O constituinte brasileiro talvez tenha encontrado uma solução
pouco convencional, mas bastante eficaz: hiper-rigidez sobre o núcleo e
flexibilidade sobre a periferia da Constituição.
Uma discussão bastante atual, mas que já aparecia nesses casos
históricos, diz respeito ao poder das cortes supremas. O que justifica que
ministros do STF possam barrar a vontade de congressistas, que representam o
conjunto da população?
Democracia e Constituição não dizem respeito à mesma coisa. A
democracia diz respeito sobretudo ao voto da maioria. A Constituição, desde o
final do período medieval, é vista como forma de contenção do poder.
O convívio entre democracia e Constituição sempre foi tenso, e
alguns autores americanos começaram a perceber que era necessária uma
justificativa robusta para que um grupo não eleito de juízes pudesse exercer
controle sobre a vontade democrática.
O que esse livro busca é uma solução para o problema. E os autores
mais relevantes para mim foram Stephen Holmes e John Hart Ely. Eles falam que é
possível fazer essa conciliação [entre democracia e Constituição], desde que
aquilo que a Suprema Corte limite seja o indispensável para que a democracia
sobreviva.
Daí falar em limitações habilitadoras: desde que eu me limite a
restringir decisões da maioria que possam colocar em risco a continuidade da
própria democracia ou as pré-condições para que a democracia funcione bem, o
controle de constitucionalidade não tem contradição com a democracia.
No Brasil, a área penal é outra fonte de questionamentos à atuação
do STF. O PT já vocalizou muitas dessas
críticas, mas hoje as principais reclamações vêm do campo bolsonarista,
sobretudo em relação ao ministro Alexandre de Moraes. Como o sr. avalia as
ações dele?
Em 1937, surgiu a teoria da democracia militante, do [alemão Karl]
Loewenstein. O nome é ruim, porque a palavra "militante" é muito
ambígua. Mas a democracia militante trata não só de uma caixa de ferramentas de
autodefesa, mas também de uma postura institucional de autodefesa.
Ou seja, não se trata só de ter cláusula pétrea [na
Constituição], lei de defesa da democracia e uma série
de autorizações de restrição, inclusive à liberdade de expressão. Trata-se também
de um reposicionamento daqueles que habitam as instituições –eles têm que ter a
disposição de defendê-las militantemente.
O que me parece ter acontecido no Brasil foi uma percepção, por
parte do Supremo, de que havia um risco bastante concreto de ataque à corte. É
isso que enseja aquele primeiro inquérito, 4.781, que gerou
perplexidade na comunidade jurídica. Eles foram buscar uma norma regimental muito esquisita e
que nunca tinha sido aplicada, mas a norma estava lá.
Poucos meses depois, a Rede questiona o caso. E o Supremo, ao
julgar esse processo [arguição de descumprimento de preceito fundamental 572],
em junho de 2020, estabeleceu a sua doutrina da democracia militante.
O que ela diz?
O ministro [Edson] Fachin, que foi o relator desse
processo, apontou algumas coisas. Primeiro, que a democracia não pode ficar sem
defesa. Em segundo lugar, ele detecta que há um risco real –e diz que,
em havendo risco real, o Supremo pode tomar as medidas necessárias para
proteger a democracia.
Terceiro, ele diz que o sistema de acusação, o sistema de
investigação e o sistema de controle não funcionaram. Ou seja, a Polícia Federal não está investigando,
a Abin não está trazendo as informações, a
Procuradoria-Geral da República não está processando.
A questão, então, é como proceder nessas circunstâncias. Nessa
situação, o Supremo tem que assumir a responsabilidade. Dos 11 ministros, 10
endossaram a tese. Só o ministro Marco Aurélio ficou contra.
E o ministro Fachin criou uma série de condicionantes para a ação do
Supremo. A questão é se cada ato do ministro Alexandre está de
acordo com isso.
Está?
Eu acho que o Supremo agiu corretamente. Esse é meu julgamento
sobre o fato de o Supremo ter assumido a responsabilidade de investigar atos
antidemocráticos. Mas existem atos dentro desses processos que exorbitam.
Por exemplo, por que afastou o governador Ibaneis [Rocha] quando
já havia uma intervenção no Distrito Federal? Não me parece adequado. Por que
manter pessoas presas por tanto tempo? É a mesma crítica que se fez ao [Sergio]
Moro [na Lava Jato], de manutenção de prisões para ver se conseguia algum tipo
de delação premiada.
Há várias decisões que eu acho inadequadas e que deveriam ser
corrigidas pelo plenário. Mas isso não significa, de modo algum, que eu não
veja como muito positivo o Supremo ter assumido a responsabilidade de barrar
grupos extremistas que queriam se apropriar da democracia brasileira.
Esse tipo de atuação não pode parecer partidarização e minar a
credibilidade do STF?
Pode gerar risco de credibilidade, sim. Mas eu não vejo como
partidarização o fato de alguns ministros terem assumido uma posição militante.
Defender o "core" [essencial] da democracia não é partidarização, embora
seja assim que os grupos de extrema direita colocam, da mesma forma que os
grupos de esquerda colocaram após condenações do mensalão.
Outra fonte de críticas ao Supremo são as nomeações dos ministros.
Atualmente há a discussão sobre Cristiano Zanin, advogado pessoal do presidente
Lula. A indicação de alguém muito alinhado ao presidente afeta a
credibilidade da corte?
De todos os casos que eu estudei, em todos os regimes
presidenciais é o presidente que escolhe o ministro. E o critério de escolha é
mais ou menos o mesmo: ilibada reputação e notório saber. O sistema brasileiro
não difere dos demais sistemas presidencialistas; a politização na indicação de
ministros eu também diria que é muito parecida em todo o mundo.
O que me parece mais complicado no Brasil é a omissão do Senado em
fazer o devido controle das indicações. Esse é um problema grave pelo fato de que
os senadores são julgados pelo Supremo. Ou seja, que disposição tem um senador
de escorraçar um candidato que depois vai julgar um caso dele?
Agora, é evidente que o presidente escolher pessoas da sua
proximidade fere o artigo 37 da Constituição, o princípio da impessoalidade. O
presidente indicar seu advogado pessoal me parece inadequado.
Muitos setores defendem que Lula nomeie uma mulher negra.
Bolsonaro nomeou um ministro "terrivelmente evangélico",
nas palavras dele. Qual é sua opinião sobre esses critérios?
Uma corte constitucional deve ter certa identidade com a
sociedade. Até porque são pontos de vista que se agregam. Isso é interessante
em qualquer ambiente de trabalho: na editoria de um jornal, numa escola de
direito ou no Supremo Tribunal Federal.
Mas isso desde que sejam cumpridos os critérios de notório saber e
ilibada reputação. E a reputação ilibada é inclusive sobre a missão que a
pessoa vai ter de cumprir. No caso do André Mendonça, ele foi ministro da Justiça do
Bolsonaro, um governo muito hostil à Constituição. Esse era o problema.
O sr. teve participação ativa no ato pela democracia em 11 de agosto do
ano passado e no pós-8 de janeiro. Passada a turbulência, o Comitê de Defesa da
Democracia já cumpriu sua função?
O risco imediato à democracia hoje é menor. Mas o que fica para o
Comitê de Defesa da Democracia ou para a Comissão Arns é o fato de que muitas
das condições que levaram a um ressentimento com a democracia brasileira
continuam presentes, que são a desigualdade ou mesmo a ineficiência do Estado.
Quando uma democracia não cumpre as suas promessas, ela cria um
forte ressentimento contra ela. Então uma das nossas missões é criticar essa
situação e buscar soluções para as promessas não cumpridas.
Além disso, os grupos de extrema direita e os radicais
permanecerão. Lógico que, sem o apoio do presidente da República, a gravidade é
muito menor. Então a outra missão é fazer uma discussão institucional para
resolver os furos que percebemos ao longo da crise. Por exemplo, não pode ter
um procurador-geral que tenha controle monocrático sobre a defesa da
democracia.
*Oscar Vilhena, 57. Professor
fundador e diretor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade
Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de
"Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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