quarta-feira, 10 de maio de 2023

Vera Magalhães – A insistência no caminho difícil

O Globo

Ação contra modelo de privatização da Eletrobras causa desconforto em ministros e é repetição de estratégia que levou a derrota no Congresso

Depois de sofrer sua primeira derrota no Congresso, na antessala da votação do novo marco fiscal, o que o governo Lula resolveu fazer? Tentar a sorte com o mesmo tipo de pauta do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Supremo Tribunal Federal.

O raciocínio da Ação Direta de Inconstitucionalidade contra aspectos da privatização da Eletrobras parece ser o seguinte: se não passa na Câmara nem no Senado, por que não tentar no STF, que tem sido mais “amigável” em relação ao governo?

Será esse um bom caminho? A julgar pela reação reservada que colhi de alguns ministros, não há garantia de sucesso na empreitada, pelo contrário. Esses integrantes do Supremo acham um erro primário de avaliação o governo abrir esse flanco de batalha enquanto sabe que a Corte está toda mobilizada pelo monumental trabalho, apenas no começo, de julgar os responsáveis pela tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Causou certa perplexidade entre os magistrados que não seja Lula o maior interessado em preservar os ministros — já superexpostos e enfrentando acusações por parte de parcela grande da sociedade de querer interferir em temas que não são da sua alçada e instituir uma “ditadura do Judiciário” — para que possam definir até a logística de um julgamento que, só de peixe pequeno, já tem mais de 550 réus.

Além desse aspecto político e estratégico do cenário, existe uma incompreensão primordial do governo, a mesma que apontei neste espaço na semana passada em relação ao Parlamento: o estatismo com que Lula vai querendo caracterizar seu terceiro mandato não é claramente majoritário no Supremo, como não é na Câmara e no Senado.

Buscar os ministros como atalho conveniente quando viu o caminho interditado no Congresso, portanto, é mais um erro elementar de avaliação da articulação política. E isso, ainda por cima, às vésperas da primeira indicação de Lula para a Corte, com a vaga aberta pela aposentadoria de Ricardo Lewandowski.

Para os ministros, há pouca chance de rever uma privatização que já foi concretizada, já surtiu efeitos nos campos jurídico e econômico e que foi, repito, aprovada pelo Legislativo. É espantoso que Lula ignore solene e arrogantemente todos os muitos sinais, alguns deles recados explícitos, de que vai se dar mal se insistir numa versão petista da reforma da natureza idealizada pela boneca Emília e descrita por Monteiro Lobato no volume com esse título.

Gostem o presidente e sua coalizão ou não, o Brasil viveu quatro anos de governo de direita. O eleitor não o chancelou, tanto é que elegeu um projeto radicalmente contrário. Mas também não o repeliu por completo, uma vez que Bolsonaro chegou a mais de 49% dos votos válidos, e o Congresso saiu das urnas com a cara que saiu.

O prudente e inteligente do ponto de vista político, diante desse duplo sinal, é revogar o que foram atos autocráticos de um presidente rechaçado pelas urnas, mas não comprar brigas com pautas que obtiveram o aval amplo do Congresso.

Isso se chama compreensão da lógica intrínseca à alternância de poder: não se reconstrói tudo a cada ciclo de quatro anos, e muitas vezes um governo de esquerda terá de seguir adiante aceitando que algumas decisões de cunho liberal foram tomadas.

Nessa lógica, é lícito que Lula não privatize mais nada. Ele avisou que sustaria o programa na campanha e foi eleito. O mesmo não se estende a rever o que foi aprovado antes, do marco do saneamento à privatização da Eletrobras. Ou ao menos não sem que o governo corra um risco imenso de sofrer derrotas em série.

Arthur Lira foi cristalino ao falar nisso ontem em Nova York: o Congresso resistirá à tendência de rever tudo que foi aprovado. O Supremo não pensa de forma muito diferente. Teria sido de bom alvitre sondar o humor da Corte antes de mandar a ação para lá.

 

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