quarta-feira, 10 de maio de 2023

Miguel Caballero* - Uma armadilha para Lula no Congresso

O Globo

Bolsonarismo deu as primeiras mostras de que poderá ser eficaz em atrapalhar o novo governo

A polarização ideológica decisiva para a vitória de Lula nas eleições ensaia se tornar uma armadilha para as propostas de seu governo no Congresso. À parte o desmonte do Estado e a ausência de projeto de sua gestão, Jair Bolsonaro foi o presidente que conduziu de forma criminosamente negacionista a pandemia. A condição de único oponente viável a ele foi a essência do triunfo lulista.

À diferença da disputa majoritária, o Congresso saído das urnas tem inclinação à direita, com forte tom antipetista. Jogado à oposição, o bolsonarismo tem como estratégia o acirramento da batalha de valores, e ela deu as primeiras mostras de que poderá ser eficaz em atrapalhar o novo governo.

O Planalto já acumula duas derrotas: o adiamento do PL das Fake News e a suspensão dos decretos do saneamento. Com maior ou menor frequência, virão outras, cada uma com enredo próprio, mas em todas será incluída na lista de culpados a debilidade da “articulação política” do governo. Ao menos no caso do projeto que visa a regulamentar as redes sociais, a capacidade da oposição de levar a discussão para o ringue da “guerra cultural” foi decisiva.

Derrotar o PT é um mote com aderência entre deputados, que pode gerar engajamento e derrubar mesmo projetos que não sejam propriamente de esquerda. Se, na eleição, partidos e eleitores de centro ou da direita democrática se sentiram moralmente compelidos a aderir a Lula, isso não ocorre mais. O aperto por que passa o colombiano Gustavo Petro — eleito numa frente ampla contra a extrema direita e logo isolado a uma raquítica base parlamentar — é um exemplo vizinho, guardadas as diferenças.

Não se trata de o Congresso ter virado um espaço onde ideologias se sobrepõem a interesses próprios e a bancada bolsonarista tem número limitado de parlamentares. Mas o debate de valores é útil também como refúgio de discurso aos fisiologistas, seja de olho em dividendos eleitorais pessoais ou em cobrar mais caro do governo.

Nesse contexto, a CPI dos Ataques Golpistas, apesar de poder dar mais visibilidade ao golpismo bolsonarista, torna-se perigosa também para o governo. O Planalto já parece preferir postergar a comissão para depois da votação do arcabouço fiscal. Ao cabo, há um Parlamento em maioria desejoso de que o governo Lula não dê certo, sentimento que pode ganhar combustível no ritmo dos debates agressivos de uma CPI.

Para garantir a aprovação do arcabouço e de outros projetos, Lula precisa do presidente da Câmara. A relação com Arthur Lira — e aqui vai uma aposta — será melhor do que em média se especula. Como em toda barganha, o jogo entre Planalto e chefe da Câmara é uma disputa sobre qual lado necessita mais (ou menos) do outro, e não raro o calo do presidente da República aperta primeiro.

Nessa contenda, contudo, foi boa para Lula a decisão do Supremo que extinguiu o orçamento secreto. Os R$ 19 bilhões previstos para emendas de relator foram divididos ao meio. A primeira parte retornou às mãos do Executivo, e sobre essa verba produziu-se acordo segundo o qual o governo atenderá a pleitos parlamentares, preferencialmente se alinhados com programas tocados pelos ministérios. A outra metade turbinou ainda mais as emendas individuais. Cada deputado dispõe sozinho neste ano de R$ 32 milhões para ordenar o destino. É um minimandato executivo.

A hipertrofia das emendas torna os parlamentares menos dependentes do governo. Mas também mais autônomos em relação aos caciques partidários. Por um lado, Lira viu ser reduzida, em favor do Executivo, sua ingerência na divisão dos recursos para emendas — Bolsonaro lhe havia doado a gestão dessa parte do Orçamento. Por outro, cada deputado ganhou mais independência. No PL das Fake News, o presidente da Câmara, recentemente reeleito “por aclamação”, foi incapaz de domar a batalha incendiária que forçou o adiamento. Não deixa de ser um alerta.

Os instrumentos de consolidação da base aliada mudaram um tanto. A supervalorização das emendas deixou a cessão de ministérios às cúpulas partidárias menos eficaz. Lula já percebeu. A abertura da torneira para pagar emendas e distribuir cargos secundários será mais generosa. É a injeção à mão do governo para servir de antídoto ao arrasto do jogo parlamentar para a arena ideológica, em que será minoritário. São milhões de reais de argumentos à mão para buscar a persuasão pragmática de um Parlamento conceitualmente rival. O grau de incerteza é maior, todavia, quando a realpolitik depende do pragmatismo alheio.

*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO

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