O Estado de S. Paulo
É justo se indispor com a mania às vezes hipócrita do protocolo entre nações, mas em situações de confronto o clássico tem a força do romântico
Os países fundam seu direito na relação com
as nações segundo aspectos doutrinários e históricos que caracterizam sua
diplomacia. Documentos e fatos são fundamentais quando as nações buscam suas
reclamações, pois são os títulos que apresenta que podem colocar o interlocutor
num plano em que não haja dúvida sobre a legitimidade do que se pleiteia.
Segundo o embaixador e crítico literário Álvaro Lins, é com habilidade de
advogado que se conduz a argumentação nos fóruns internacionais, de etapa em
etapa, até a revelação final dos objetivos, para que o elemento irrefutável
seja uma surpresa e a habilidade técnica atinja todos os seus efeitos. Nesse
sentido, a profundidade de entendimento do negociador torna a diplomacia uma
obra-prima com técnica de grande advogado.
Para se colocar como árbitro de um litígio, é preciso estar no mesmo tempo histórico em que ele acontece e dispor de condições técnicas para acompanhar o mapa dos incidentes que o precederam. E deixando o estado de febre e a tensão política de fora da argumentação, pois é um dado irrefutável que uma nação tem mais interesses do que amigos. Assim, uma nação pode até querer colocar limites para a expansão da outra, definindo uma linha política de princípios e de tolerância. Isso, porém, não lhe dá o direito de estabelecer fronteiras, expandindo zonas territoriais, para além daquelas que já possui.
Embora expansões transbordantes de ânimo,
que bem caracterizam os povos latinos, não sejam capazes de tomar conta e
influenciar o ânimo alheio em todas as culturas, sinceridade e convicções são sempre
importantes em qualquer tempo e lugar. Mas, fora da forma concedida a uma
negociação grandiosa, produzem pouco efeito, como crenças arraigadas que acabam
por terminar grandes amizades e não conquistar adeptos para a causa que
postulam. Especialmente se a resolução de um problema for dada como fácil e
simples e as nações envolvidas não tenham tido o cuidado de analisar sua
capacidade de reivindicar o papel de fiadores no desempenho da responsabilidade
assumida.
A boa diplomacia não pede nem impõe, tira
todos os pretextos, contorna os embaraços, pavimenta o caminho para a recíproca
satisfação sem chamar a atenção para o musgo apegado aos nacionalismos e as
impertinências da política.
Nenhum país deve se autodepreciar. Entre
nós, é recorrente o exagero que é comparar nosso destino com o de um cachorro
magrinho, popular, sem raça definida e de porte, comportamento e traços
diversos, que vira a lata em busca de comida. Contém a impressão de que demos
cidadania à frustração. Depreciar o País por divergências políticas fortalece o
conceito que associa angústia a culpa, hereditariedade a pecado. Angústia é
sofrimento de sonhadores.
Observado bem, vemos que os dons de escolha
que caracterizam o ser humano são variados e distribuídos pelos diversos povos
do mundo e em nada se parecem com os instintos animais. Agora, em relação ao
bem e ao mal, estes sim foram igualmente distribuídos para todos. Nações
atentas a este fato humano conseguem produzir uma noção de justiça melhor. É
essa noção que impulsiona o progresso e a civilização.
O desafio das nações diante do progresso é
saber a causa principal que bloqueia o uso daqueles dons variados que
caracterizam cada povo. Sabedoria é saber falar com o intuito de dialogar e,
assim, poder fazer a apropriação correta do que se descreve. Muitas vezes nós
verificamos o pulso dos outros sem nos certificar de que estamos segurando o
próprio pulso. Filosoficamente, perde-se de vista a terra firme quando não se
sabe voltar para dentro de si e, com liberdade, saber do que é possível.
Uma diplomacia de repercussão pode produzir
antipatia quando subestima a angústia do outro, gerando uma possibilidade
imperfeita, acomodatícia. É justo se indispor com a mania às vezes hipócrita do
protocolo entre nações, mas em situações de confronto o clássico tem a força do
romântico.
Muitas vezes, apreensões sombrias dominam
as discussões sobre a paz entre as nações. O Acordo de Paz de Paris, que
pretendeu colocar fim à Guerra do Vietnã, por exemplo, teve até um precipitado
e contestado Prêmio Nobel da Paz para Henry Kissinger, dos EUA, que o aceitou,
e Le Duc Tho, do Vietnã do Norte, que o recusou por considerar a paz precária e
insuficiente.
Sorte melhor ocorreu em Belfast, onde foi
assinado o acordo da Sexta-Feira Santa estabelecendo compromissos recíprocos e
consentimentos mútuos entre a Irlanda do Norte, a República da Irlanda e o
governo britânico. Neste caso, o Nobel da Paz não foi para Tony Blair, o
primeiro-ministro britânico. E muito menos foi contestado quando deixou de fora
tanto o IRA (Exército Republicano Irlandês, na sigla em inglês) como EUA, que
presidiu as negociações. Foram os dois rivais políticos da Irlanda do Norte, o
protestante David Trimble e o católico John Hume, os escolhidos para dividir o
prêmio.
O presidente Lula sabe que a unilateralidade
serve pouco ao mundo da política. Abundância de bom senso e superior
entendimento é que poderão fazer sua diplomacia inspirar a nobreza de resolução
que a situação requer.
*É sociólogo
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