quarta-feira, 10 de maio de 2023

Paulo Delgado* - A diplomacia como angústia

O Estado de S. Paulo

É justo se indispor com a mania às vezes hipócrita do protocolo entre nações, mas em situações de confronto o clássico tem a força do romântico

Os países fundam seu direito na relação com as nações segundo aspectos doutrinários e históricos que caracterizam sua diplomacia. Documentos e fatos são fundamentais quando as nações buscam suas reclamações, pois são os títulos que apresenta que podem colocar o interlocutor num plano em que não haja dúvida sobre a legitimidade do que se pleiteia. Segundo o embaixador e crítico literário Álvaro Lins, é com habilidade de advogado que se conduz a argumentação nos fóruns internacionais, de etapa em etapa, até a revelação final dos objetivos, para que o elemento irrefutável seja uma surpresa e a habilidade técnica atinja todos os seus efeitos. Nesse sentido, a profundidade de entendimento do negociador torna a diplomacia uma obra-prima com técnica de grande advogado.

Para se colocar como árbitro de um litígio, é preciso estar no mesmo tempo histórico em que ele acontece e dispor de condições técnicas para acompanhar o mapa dos incidentes que o precederam. E deixando o estado de febre e a tensão política de fora da argumentação, pois é um dado irrefutável que uma nação tem mais interesses do que amigos. Assim, uma nação pode até querer colocar limites para a expansão da outra, definindo uma linha política de princípios e de tolerância. Isso, porém, não lhe dá o direito de estabelecer fronteiras, expandindo zonas territoriais, para além daquelas que já possui.

Embora expansões transbordantes de ânimo, que bem caracterizam os povos latinos, não sejam capazes de tomar conta e influenciar o ânimo alheio em todas as culturas, sinceridade e convicções são sempre importantes em qualquer tempo e lugar. Mas, fora da forma concedida a uma negociação grandiosa, produzem pouco efeito, como crenças arraigadas que acabam por terminar grandes amizades e não conquistar adeptos para a causa que postulam. Especialmente se a resolução de um problema for dada como fácil e simples e as nações envolvidas não tenham tido o cuidado de analisar sua capacidade de reivindicar o papel de fiadores no desempenho da responsabilidade assumida.

A boa diplomacia não pede nem impõe, tira todos os pretextos, contorna os embaraços, pavimenta o caminho para a recíproca satisfação sem chamar a atenção para o musgo apegado aos nacionalismos e as impertinências da política.

Nenhum país deve se autodepreciar. Entre nós, é recorrente o exagero que é comparar nosso destino com o de um cachorro magrinho, popular, sem raça definida e de porte, comportamento e traços diversos, que vira a lata em busca de comida. Contém a impressão de que demos cidadania à frustração. Depreciar o País por divergências políticas fortalece o conceito que associa angústia a culpa, hereditariedade a pecado. Angústia é sofrimento de sonhadores.

Observado bem, vemos que os dons de escolha que caracterizam o ser humano são variados e distribuídos pelos diversos povos do mundo e em nada se parecem com os instintos animais. Agora, em relação ao bem e ao mal, estes sim foram igualmente distribuídos para todos. Nações atentas a este fato humano conseguem produzir uma noção de justiça melhor. É essa noção que impulsiona o progresso e a civilização.

O desafio das nações diante do progresso é saber a causa principal que bloqueia o uso daqueles dons variados que caracterizam cada povo. Sabedoria é saber falar com o intuito de dialogar e, assim, poder fazer a apropriação correta do que se descreve. Muitas vezes nós verificamos o pulso dos outros sem nos certificar de que estamos segurando o próprio pulso. Filosoficamente, perde-se de vista a terra firme quando não se sabe voltar para dentro de si e, com liberdade, saber do que é possível.

Uma diplomacia de repercussão pode produzir antipatia quando subestima a angústia do outro, gerando uma possibilidade imperfeita, acomodatícia. É justo se indispor com a mania às vezes hipócrita do protocolo entre nações, mas em situações de confronto o clássico tem a força do romântico.

Muitas vezes, apreensões sombrias dominam as discussões sobre a paz entre as nações. O Acordo de Paz de Paris, que pretendeu colocar fim à Guerra do Vietnã, por exemplo, teve até um precipitado e contestado Prêmio Nobel da Paz para Henry Kissinger, dos EUA, que o aceitou, e Le Duc Tho, do Vietnã do Norte, que o recusou por considerar a paz precária e insuficiente.

Sorte melhor ocorreu em Belfast, onde foi assinado o acordo da Sexta-Feira Santa estabelecendo compromissos recíprocos e consentimentos mútuos entre a Irlanda do Norte, a República da Irlanda e o governo britânico. Neste caso, o Nobel da Paz não foi para Tony Blair, o primeiro-ministro britânico. E muito menos foi contestado quando deixou de fora tanto o IRA (Exército Republicano Irlandês, na sigla em inglês) como EUA, que presidiu as negociações. Foram os dois rivais políticos da Irlanda do Norte, o protestante David Trimble e o católico John Hume, os escolhidos para dividir o prêmio.

O presidente Lula sabe que a unilateralidade serve pouco ao mundo da política. Abundância de bom senso e superior entendimento é que poderão fazer sua diplomacia inspirar a nobreza de resolução que a situação requer.

*É sociólogo

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