Arsenal comprado sob Bolsonaro ainda é ameaça
O Globo
A cada dia, três armas de fogo compradas
legalmente por CACs são extraviadas ou desviadas para o crime
É preocupante constatar que, a cada dia,
três armas de fogo compradas legalmente por colecionadores, atiradores
desportivos ou caçadores (os CACs) são extraviadas ou roubadas. No
ano passado, esse número bateu recorde. Foram 1.315 casos, de acordo com dados
do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, obtidos pelo
GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Casos de extravio podem ser atribuídos não só ao maior número de armas em circulação, mas também à simulação de furtos ou roubos para que as armas sejam desviadas para organizações criminosas. Tal fraude tem sido corroborada pelas apreensões policiais. Em março, a polícia do Espírito Santo descobriu que um fuzil apreendido com traficantes de Vila Velha constava como furtado no Exército. Estava registrado em nome de um CAC detido depois de investigações mostrarem que abastecia o crime com armas legais.
A facilidade para compra, posse e porte de
armamentos (mesmo de uso restrito como fuzis) no governo Jair Bolsonaro e as
falhas no controle desse arsenal criaram um ambiente propício a fraudes. É
inegável que a permissão para que um CAC tivesse até 60 armas — quem precisa de
60 armas? — facilitou a vida dos criminosos. Revólveres, pistolas e fuzis
comprados legalmente passaram a chegar rapidamente às mãos de traficantes,
milicianos e homicidas.
É verdade que o atual governo tenta conter
a farra dos CACs e clubes de tiro. Decretos de Bolsonaro que contribuíram para
promover o derrame de armas no mercado foram temporariamente suspensos. Foi
determinado um recadastramento cujo prazo terminou há uma semana. No dia
seguinte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, informou que
quase 1 milhão de armas (939.154) foram recadastradas. No mesmo dia, a PF prendeu
em vários estados do país 52 CACs com mandado de prisão em aberto que
não haviam recadastrado suas armas. São medidas sensatas, mas não resolvem o
problema: o arsenal comprado legalmente continua circulando por aí.
Seria ingenuidade imaginar que essas armas
estão bem guardadas e não correm risco de parar nas mãos de criminosos. A
realidade mostra o contrário. Mesmo que estejam em posse de cidadãos
bem-intencionados ou de agentes de segurança experientes, o risco é enorme.
Os tiroteios e os conflitos resolvidos à
bala se tornaram uma triste rotina nas cidades. Num único fim de semana no Rio,
sete cidadãos foram atingidos por balas perdidas em diferentes regiões — duas
mulheres e uma criança de 11 anos morreram. Uma das vítimas voltava de uma
festa com amigos por uma das avenidas mais movimentadas da cidade quando se viu
no meio de uma perseguição policial. Outras duas eram irmãos que estavam no
portão de casa numa comunidade da Zona Norte.
Pouco importa se os tiroteios aconteceram
entre quadrilhas rivais ou entre policiais e bandidos. Isso não aplaca a dor
das famílias. Claro, a falta de segurança não se resume ao excesso de armas.
Mas elas são personagem de destaque na barbárie. Num país com altos índices de
criminalidade, 1 milhão de armas em circulação — sabe-se lá nas mãos de quem —
é um cenário propício a novas tragédias.
Nova denúncia contra Codevasf expõe incúria
no uso de recursos públicos
O Globo
Fazenda ligada à Igreja Universal na Bahia
foi beneficiada de modo irregular, segundo auditoria da CGU
Às voltas com mais um escândalo, a
Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
(Codevasf) precisa explicar por que usou R$ 2,3
milhões de dinheiro público para beneficiar uma propriedade privada ligada
à Igreja Universal do Reino de Deus no município de Irecê, Bahia. Recursos para
obras de pavimentação, mostrou reportagem do GLOBO, foram destinados a pedido
do deputado Márcio Marinho (Republicanos-BA), bispo da Universal, por meio de
emenda da bancada baiana.
Conhecida no governo Bolsonaro como feudo
do Centrão e paraíso do orçamento secreto, destino de verbas obscuras para
obras não menos obscuras, a Codevasf se transformou numa fábrica de problemas.
Em julho do ano passado, a superintendência da estatal no Maranhão foi alvo de
uma operação da Polícia Federal que investigou fraudes em contratos de obras e
lavagem de dinheiro. Com a chegada de Lula ao governo, a Codevasf continuou em
seu caminho errático, servindo de cabide de empregos a apaniguados e parentes
de políticos influentes sem dar a mínima para o interesse público.
Agora, as denúncias recaem sobre a Fazenda
Canaã, registrada em nome da Associação Beneficente Projeto Nordeste, dirigida
por bispos da Universal. Ela foi comprada na década de 1990 por Marcelo
Crivella (Republicanos-RJ), ex-prefeito do Rio e atual deputado. Nas
propagandas políticas de Crivella, a Canaã sempre ocupou lugar de destaque,
tratada como exemplo que poderia servir a outras regiões.
Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro,
a Codevasf doou à associação que administra a propriedade uma retroescavadeira,
duas caminhonetes e uma van compradas com dinheiro público. O asfaltamento de
25 mil metros quadrados de ruas foi concluído em abril de 2022. Em março deste
ano, uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) detectou
irregularidade no uso de recursos do Orçamento para beneficiar uma fazenda
privada.
Os argumentos usados pela Codevasf não
convencem. A companhia alegou que a instituição beneficiada presta serviços
sociais, sem fins lucrativos, e “assemelha-se a caráter público”. O projeto
social, que oferece atividades educacionais e esportivas a crianças, é mantido
por instituto ligado a Edir Macedo, fundador e autoridade máxima da Universal.
Apesar da explicação, a própria Codevasf afirmou que “tal tipo de situação não
se repetirá”.
O governo deveria pedir ressarcimento dos recursos usados numa propriedade privada para que eles possam ser destinados a áreas onde são realmente necessários. Não se questiona o valor do trabalho social desenvolvido pela instituição, mas os administradores devem buscar outras formas de mantê-lo. O episódio expõe mais uma vez o problema das obras feitas sem transparência, caraterística que define a Codevasf, estatal voltada mais para atender a interesses paroquiais dos parlamentares — sabe-se lá a que custo — que às legítimas demandas dos contribuintes que a financiam.
BC sob lupa
Folha de S. Paulo
Cruzada populista de Lula alimenta dúvidas
sobre indicações para cúpula do órgão
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou uma
armadilha para seu governo ao insuflar uma cruzada
populista contra as taxas de juros e a autonomia do Banco Central:
doravante, todos os movimentos relacionados à política monetária serão
examinados com lupa e estarão sujeitos a reações de desconfiança.
É o que ocorre agora com as primeiras
indicações de Lula para a cúpula do BC —a do servidor Ailton Aquino dos Santos,
para a diretoria de Fiscalização, e, sobretudo, a do economista
Gabriel Galípolo para a de Política Monetária.
Em circunstâncias normais, escolhas do
gênero não despertariam maior preocupação. Trata-se, afinal, de apenas dois
nomes que, se aprovados pelo Senado, comporão um colegiado de nove com direito
a voto na definição dos juros.
Entretanto as atitudes de Lula, seguidas
por seu partido e boa parte de seu ministério, suscitam temores justificáveis
de que o Planalto queira impor seus interesses políticos na gestão do BC.
Ademais, Galípolo, com experiência no
mercado financeiro e hoje o número dois da pasta da Fazenda, já defendeu teses
heterodoxas no passado recente, embora venha adotando comportamento discreto
desde o início do governo.
O Brasil ainda engatinha na experiência de
autonomia formal do BC, instituída em 2021 com o objetivo de fortalecer o
controle da inflação —que, dos males econômicos, é o mais socialmente perverso.
Gestões anteriores, porém, já haviam
concedido autonomia na prática ao órgão, com bons resultados.
Entre eles destacam-se os do próprio Lula,
quando os juros, aliás, se mantiveram por anos acima dos patamares atuais. Só
um oportunismo rasteiro, portanto, explica a celeuma atual em torno do tema.
A definição das taxas, evidentemente,
merece questionamento e debate técnico especializado, que não deve estar
circunscrito à autoridade monetária. É também natural e mesmo desejável que
executivos com diferentes pontos de vista participem das deliberações.
Indicados pelo governo petista serão
maioria no Comitê de Política Monetária (Copom) a partir de 2025, quando também
será substituído o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Especula-se que
Galípolo poderá ocupar o posto.
Até lá, é possível que o surto
inflacionário herdado da pandemia de Covid-19 já esteja inteiramente superado,
o que tornará a missão do órgão menos controversa.
Em qualquer hipótese, convém que os
escolhidos zelem desde logo por sua credibilidade. Sinais de leniência com a
inflação, de submissão a pressões políticas ou de propensão a experimentalismos
temerários não raro resultam na necessidade de juros mais altos, como se viu
sob Dilma Rousseff (PT).
Literatura limitada
Folha de S. Paulo
Restrições a livros aumentam no mundo,
expondo preconceito ou hipersensibilidade
Conservadores radicais nos Estados
Unidos vêm
conseguido banir livros de bibliotecas e escolas públicas. Segundo
levantamento da ONG Pen America, mais de 2.500 proibições foram emitidas por
juntas escolares em 32 estados americanos no ano letivo de 2021-22.
A maioria das obras aborda questões de
gênero ou raciais. Com 801 proibições, o Texas lidera a lista deplorável,
seguido por Flórida (566) e Pensilvânia (457).
No Brasil, uma universidade privada de
Goiás retirou o
livro "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios", de
Marçal Aquino, da lista de obras indicadas para o vestibular. A
decisão veio após o deputado Gustavo Gayer (PL-GO) acusar a obra de
pornografia.
Mas a sanha restritiva não é exclusividade
da direita. Em 2019, a escola pública Tàber, em Barcelona, retirou 200 livros
destinados a alunos de até seis anos por reproduzirem padrões de comportamento
tachados de sexistas por militantes. Entre
as obras estavam clássicos como "Chapeuzinho Vermelho" e "A Bela
Adormecida".
Outro modo de interditar a arte literária é
a edição de trechos considerados ofensivos. Neste ano, no Reino Unido, livros
de Roald Dahl, autor de "A Fantástica Fábrica de Chocolate", tiveram
trechos alterados para atender ao público que achava sexistas e gordofóbicos
alguns dos termos usados.
Aqui, "A Menina do Narizinho
Arrebitado", de Monteiro Lobato, também foi reeditado para excluir
expressões de fato racistas.
Tais medidas perdem de vista que a
literatura é um modo de conhecer o passado e ferramenta poderosa de aprendizado
emocional.
Falas preconceituosas de séculos atrás
podem ser esclarecidas em notas de rodapé ou com a ajuda de pais e professores.
Da mesma forma, se determinadas palavras causam desconforto, trata-se de
oportunidade para que o leitor, seja criança ou não, aprenda a lidar com seus
sentimentos.
Com relação ao banimento, uma decisão da
Suprema Corte da Califórnia já em 1924 havia apontado a falta de sentido da
medida: o mero fato de um livro constar do acervo de uma biblioteca não implica
que seu conteúdo será aprovado ou adotado pelo leitor.
Passados quase cem anos, leitores à direita e à esquerda ainda precisam compreender que uma biblioteca ou um livro sempre poderá conter algo que desagrade a alguém —e que o escrutínio do debate público é preferível à exclusão.
O relógio de Lula
O Estado de S. Paulo
Ignorando o eleitor que votou nele apenas para
impedir a reeleição de Bolsonaro e desrespeitando decisões soberanas do
Congresso, o presidente quer fazer o Brasil voltar no tempo
O petista Lula da Silva parece não ter
entendido por que foi eleito presidente da República. Ao tentar reverter no
tapetão a privatização da Eletrobras, pouco depois de ter buscado, por decreto,
destruir o Marco do Saneamento para favorecer estatais ineficientes do setor,
Lula desrespeita ao mesmo tempo o Congresso e os muitos eleitores que nele
votaram não por simpatizarem com a embolorada agenda lulopetista, mas apenas
para impedir que Jair Bolsonaro se reelegesse.
No discurso, Lula da Silva se opõe às
privatizações porque as considera “um crime de lesa-pátria”, como classificou o
caso da Eletrobras, “um patrimônio deste país”, segundo disse. Na prática,
contudo, muitas estatais servem como cabide de emprego para arregimentar apoio
político, fundamental para um governo incompetente na articulação com o
Congresso, e de quebra para acomodar sindicalistas companheiros. Por isso,
quanto mais estatais, melhor para os estatólatras.
A afronta de Lula ao que foi decidido pelo
Congresso com relação à Eletrobras e ao setor de saneamento básico não passou
despercebida pelas lideranças parlamentares.
O presidente da Câmara, Arthur Lira,
classificou como “preocupante” a fixação do presidente em reverter a
privatização da Eletrobras no Supremo Tribunal Federal. À CNN Brasil, Lira
afirmou que Lula tem todo o direito de não propor mais privatizações em seu
governo, “mas mudar um quadro que já está jogado e definido, e com muitos
grupos, muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação
muito forte”. Trata-se de constatação óbvia: mudar as regras do jogo de
supetão, sem justificativa outra que não seja a adição petista à máquina
estatal, amplia a sensação de que contratos no Brasil não valem o papel em que
são escritos.
Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco,
lembrou que a privatização da Eletrobras “foi algo muito debatido na Câmara e
no Senado”, que o novo status da empresa “é uma realidade” e que seria “mais
útil ao Brasil” discutir reforma tributária e o novo regime fiscal.
Mas Lula é incapaz de vencer sua natureza
autoritária, convenientemente camuflada pelo figurino do democrata que se
apresentou como contraponto ao golpismo bolsonarista. Bastaram alguns meses de
governo para se perceber que Lula, sem qualquer pudor, quer impor o atraso
petista na marra, recorrendo ao Judiciário para tentar desfazer o que foi
decidido pelo Congresso, em particular no que diz respeito às estatais. Não foi
à toa que o lulopetismo, por meio de seus aliados, ajudou a fazer carga contra
a Lei das Estatais, que acabou com a esbórnia das nomeações políticas para
essas empresas, justamente em resposta aos escândalos da trevosa era petista.
Ademais, os brasileiros moderados que foram
decisivos para a vitória de Lula não votaram para reverter a reforma
trabalhista, como ainda acalentam os petistas, nem para enterrar a reforma do
ensino médio e, menos ainda, para fazer letra morta da Lei de Responsabilidade
Fiscal, como fica claro na proposta de novo regime fiscal.
Passar uma borracha por cima dessas conquistas,
é preciso deixar bem claro, é uma agenda histórica do PT e de partidos
coligados, não o desejo da maioria dos eleitores que votaram por uma composição
do Congresso que claramente não se coaduna com o ímpeto revisionista que anima
o Palácio do Planalto.
Lula nem ao menos pode dizer que as
“revisões” que ele propõe para marcos legislativos que mal se consolidaram,
como é o caso da privatização da Eletrobras, serviriam para melhorar esses
projetos, eliminando, por exemplo, muitos “jabutis” que foram aprovados a
reboque deles. Quando fala em reverter a privatização da Eletrobras, Lula está
movido apenas pelo desejo de desfazer tudo o que foi feito depois da
estrepitosa ruína petista, marcada por escândalos de corrupção, por uma brutal
recessão e pelo justíssimo impeachment de Dilma Rousseff. Lula quer fazer o
relógio do Brasil andar para trás. Cabe ao Supremo dizer a ele que isso não
pode.
A preservação da imunidade parlamentar
O Estado de S. Paulo
Projeto sobre plataformas digitais não cria
exceções a políticos. Só prevê, corretamente, que as prerrogativas
constitucionais dos parlamentares também devem valer nas redes sociais
Uma das frequentes críticas contra o
Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, sobre o novo marco regulatório para as plataformas
digitais, é a de que os parlamentares estariam criando uma lei que se aplica a
todos os brasileiros, exceto a eles próprios. Seria a prova irrefutável da
hipocrisia: os políticos defendem a urgente necessidade de estabelecer novos
limites para toda a sociedade – de forma a proporcionar, entre outros bens, um
debate público mais responsável e civilizado, menos dominado pela desinformação
–, mas eles mesmos não querem submeter-se às novas regras. Essa seria uma das
principais razões, dizem os críticos do projeto, para desmoralizá-lo.
No entanto, em vez de explicitar um defeito
estrutural do projeto de lei ou um generalizado mau caratismo dos políticos,
essa crítica expõe como o debate sobre tema vital para o País está sendo feito
não apenas em termos rasos, como tem sido descaradamente manipulado. O PL
2.630/2020 não cria exceções para políticos. O dispositivo tão criticado, que
supostamente privilegiaria os parlamentares, apenas dispõe que a imunidade
prevista no art. 53 da Constituição – “os deputados e senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e
votos” – também se aplica “aos conteúdos publicados por agentes políticos em
plataformas mantidas pelos provedores de redes sociais e mensageria privada”.
Nesse ponto em concreto, o PL 2.630/2020
não faz, portanto, nada além do que assegurar a vigência da Constituição nas
redes sociais. Tratase de objetivo adequado e estritamente necessário para um
projeto de lei que vem estabelecer um novo marco jurídico para as plataformas
digitais.
Na crítica à tal “exceção para os
políticos” do PL 2.630/2020, vislumbrase na verdade uma grande incompreensão
sobre as prerrogativas constitucionais dos parlamentares. Elas não constituem
privilégios pessoais nem criam uma categoria especial de cidadãos, sobre os
quais as leis aplicáveis a todos os demais não valeriam. Fossem assim as
imunidades parlamentares, o sistema constitucional seria incoerente e
disfuncional, já que o Estado Democrático de Direito se estrutura a partir do
princípio basilar da igualdade de todos perante a lei.
As prerrogativas parlamentares – entre as
quais se inclui, conforme o art. 53 da Constituição, a inviolabilidade civil e
penal por opiniões, palavras e votos – são uma proteção do regime democrático e
efetivo respeito aos direitos políticos de todos os cidadãos. Elas não foram
criadas por diletantismo. Como a história ensina, a perseguição contra
parlamentares costuma ser uma das primeiras medidas impostas por ditaduras. Às
vezes, é realizada diretamente, sem nenhum pudor; outras, por meio de processos
judiciais enviesados e parciais, cuja função é tão somente dar aparência de
legalidade aos desmandos do regime despótico.
Por isso, as prerrogativas parlamentares
não têm nada de imoral ou de antirrepublicano. Não são uma concessão à
impunidade nem representam uma espécie de legislação em causa própria. A
inviolabilidade de senadores e deputados por opiniões, palavras e votos ajuda a
construir as condições para um debate livre e plural de ideias, elemento
essencial do regime democrático.
Tal como o texto constitucional dispõe e a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece, essa
inviolabilidade não é autorização para a prática de crimes, também no ambiente
virtual. No ano passado, a condenação pelo STF do deputado federal Daniel
Silveira a oito anos e nove meses de prisão mostrou o equívoco de quem pensava
que o art. 53 da Constituição preservaria os parlamentares dos efeitos da lei –
em concreto, da lei penal.
Na verdade, o PL 2.630/2020 cria obrigações
adicionais aos políticos. Por exemplo, em suas contas oficiais, os
parlamentares “não poderão restringir a visualização de suas publicações”.
O País não pode ficar refém de narrativas
manipuladoras. É hora de debater responsavelmente, sem fantasmas, a necessária
regulação das plataformas digitais.
A reviravolta no Chile
O Estado de S. Paulo
Constituinte esquerdista malogrou por sua
vendeta contra a direita. Espera-se que a direita, vitoriosa, não cometa esse
erro
As eleições para a nova Assembleia
Constituinte chilena não deixam dúvida quanto ao derrotado: a coalizão
governista de esquerda obteve só 17 das 50 cadeiras. A vitória da oposição de
direita é mais relativa. A direita tradicional e moderada (a coalizão Chile
Seguro) obteve só 11 cadeiras. O triunfo indisputável foi da nova direita
radical, o Partido Republicano, com 22 cadeiras. O resultado, paradoxalmente
previsível e surpreendente, expõe as dimensões da instabilidade política
chilena e do desafio que as forças na Constituinte, no Parlamento e no
Executivo enfrentarão para levar a nova Carta a bom termo.
O resultado surpreende quando se considera
o giro de 180° em relação à onda refundacional que varreu o país após os
protestos massivos de 2019. Os líderes partidários se viram obrigados a ativar
um plebiscito e 78% dos eleitores votaram para substituir a Constituição
herdada da ditadura de Augusto Pinochet. Os progressistas surfaram nessa onda.
Primeiro, com a composição da primeira Constituinte, em 2020, fundamentalmente
com representantes das esquerdas (a nova e a radical) e candidatos
independentes. Depois, em 2021, o jovem progressista Gabriel Boric foi eleito presidente.
Por outro lado, o resultado é previsível
considerando o malogro da esquerda. A primeira proposta de Constituição
resultou numa lista hipertrofiada de desejos progressistas maximalistas que
acabou rechaçada por 62% dos eleitores. A popularidade de Boric derreteu com a
convergência de quatro crises: a migratória (de venezuelanos); a dos incidentes
violentos dos povos Mapuche; a econômica; e, sobretudo, a da segurança pública.
A direita radical aproveitou essa tempestade perfeita para retaliar. O paradoxo
é que ela se vê no comando de um processo constituinte ao qual se opôs.
A direita tradicional vive um aparente
dilema: pode se dobrar aos radicais, formando uma maioria qualificada apta a
aprovar o que quiser à revelia da esquerda, ou se opor a eles, aliando-se à
esquerda. Ocorre que a bancada radical tem poder para vetar o que bem entender.
O presidente Boric apelou aos vitoriosos
para que não cometam os mesmos erros de sua coalizão e “saibam escutar quem
pensa distintamente”. De fato, se os Republicanos extremarem posições,
provavelmente serão rechaçados no plebiscito de dezembro que aprovará ou não a
Carta.
O fiel da balança está no centro. Mas ele está esvaziado e precisará se recompor. Isso implica que a esquerda moderada (o Partido Socialista, com sete cadeiras) saiba construir pontes com a centro-direita, especialmente em relação a direitos sociais. Eles foram o motor que levou os chilenos a optar por uma nova Constituição. A atual garantiu as condições para um crescimento econômico robusto, mas falhou na distribuição dos dividendos. Na última Constituinte, correu-se o risco de jogar o bebê (do crescimento) junto com a água do banho. Na atual, se a direita reacionária não se moderar e se o centro não se entender, corre-se o risco inverso: de jogar fora a água do banho, deixando o bebê sujo.
Governo quer enquadrar BC e mudar política
monetária
Valor Econômico
O governo pretende subordinar o BC à sua
política, o que ampliará o fôlego da inflação, a instabilidade econômica e a
discórdia política
Precedida pela incessante retórica bélica
do presidente Lula contra o Banco Central, a indicação de Gabriel Galípolo,
número dois do Ministério da Fazenda, para a diretoria da instituição tem
apenas um sentido, independentemente das qualificações do candidato: a política
monetária terá de mudar para se adequar aos interesses políticos do governo,
favorecendo o crescimento da economia a qualquer custo. Pelas regras
estabelecidas para a autonomia do BC, é um direito legítimo do Executivo,
embora ele não defenda explicitamente uma visão alternativa para combater a
inflação. A rigor, nem se considera que ela seja um problema - Lula e o
ministro da Fazenda raramente mencionam a palavra.
Lula e o PT não gostam da autonomia do BC,
mas são impotentes para revogá-la, como tentam com a privatização da Eletrobras
e com o marco do saneamento, iniciativa a caminho da derrota no Congresso. Há
uma desonestidade intelectual nos argumentos do governo sobre o BC. No primeiro
mandato de Lula, a taxa de juro real foi maior que a de hoje para deter a
inflação, e a receita era tida como correta porque o presidente do BC fora
nomeado por Lula. Não é o caso de Campos Neto.
O Congresso aprovou a autonomia do BC e a
política monetário da atual gestão é ortodoxa, seguindo outra regra aprovada
pelo Legislativo: é preciso fazer tudo o que for possível para que a inflação
obedeça aos parâmetros das metas de inflação. O PT foi contra ambos: autonomia
e metas. Pode tentar mudá-las. No primeiro caso, terá de revogá-la no
Congresso, sem chances de sucesso. Para o segundo, basta uma decisão do Conselho
Monetário Nacional, no qual o governo tem maioria, mas o governo teme por
enquanto as repercussões. Lula disse que o BC “não tem compromisso com o
Brasil”, o que pressupõe que só quem concorda com o Executivo na questão o tem.
Quem melhor resumiu o objetivo do governo
com a indicação de Galípolo para a diretoria do BC foi a ministra do
Planejamento, Simone Tebet: “É uma pessoa que será a voz do governo federal, a
voz do Brasil dentro do Banco Central”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
preferiu a cantilena habitual: é preciso alinhar a política fiscal e a
monetária. Mas em qual direção: expansionista ou contracionista? Essa é a
questão central e a resposta do governo parece indicar a disposição de baixar
os juros na marra, como fez a presidente Dilma Rousseff, com consequências que
assolam a economia até hoje.
O governo não produziu até hoje um
diagnóstico coerente. Afirmar que a inflação não é de demanda, logo é de
oferta, não encontra respaldo nos fatos. Supô-la significa que o remédio dos
juros altos é incorreto e os preços virão abaixo de alguma outra forma. Se for
assim, qual é o sentido de baixar os juros e incentivar o consumo, se o
problema é, por definição, de gargalos de oferta?
Ironicamente, quando a inflação começou a
subir, antes no Brasil e depois nos países desenvolvidos, os BCs demoraram a
reagir. O BC brasileiro manteve juros baixos por bom tempo prevendo que a
inflação era provisória, argumentando em parte com a quebra de cadeias
produtivas e diminuição da disponibilidade de bens e serviços. O IPCA ficou
acima de 10% por mais de um ano, e recua lentamente desde então com forte
aperto monetário.
Por que a inflação não cai mais
rapidamente? Em atas, o Copom se debruça sobre esta questão há tempos e a
resposta mais verossímil está na alta demanda por serviços, que recompõe
salários um pouco acima da inflação, estimula o emprego, enquanto que os fortes
impulsos fiscais eleitorais de Bolsonaro incentivaram o consumo. Na ata
divulgada ontem, o BC perambula por caminhos outros, sem chegar a uma
conclusão. Especula, por exemplo, com o fato de os juros neutros terem subido
com a perspectiva de deterioração fiscal e de expectativas desancoradas,
motivos pelos quais a carga atual da Selic não estaria tendo todos os efeitos
esperados. Já o governo não apenas não tem uma resposta, mas sequer se coloca a
pergunta.
Com o esfriamento da economia e sem
descontrole fiscal, que o novo regime proposto ameniza, a inflação entrará no
intervalo das metas, próximo de 3%, no ano que vem. Se os juros forem mantidos,
prevê o Copom, o IPCA fecha 2024 em 2,9%. Com a Selic reduzida a 12,5%, a
inflação vai a 3,6% no fim de 2024. Os números indicam que os juros cairão no
segundo semestre.
O governo não pensa assim, por motivos que
não parecem técnicos, mas políticos. Um crescimento robusto permite gastos
maiores, receitas maiores e acomoda bem mais facilmente as demandas de
parlamentares, de oposição ou não. Esta foi a conjuntura que propiciou os bons
resultados dos primeiros mandatos de Lula. Ela não existe mais. A economia
global perde fôlego com o aumento de juros nos países desenvolvidos e há
dúvidas sobre a performance da China nos próximos anos. Para crescer, o Brasil
terá de pôr a casa em ordem. O governo pretende subordinar o BC à sua política,
o que ampliará o fôlego da inflação, a instabilidade econômica e a discórdia
política.
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