segunda-feira, 8 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Novo regime evita descontrole, mas não estabiliza a dívida

Valor Econômico

Crescimento da economia precisa ser superior a 2% para sustentar o ajuste fiscal

O novo regime fiscal proposto pelo governo Lula não será capaz de estabilizar nem a dívida bruta nem a dívida líquida pública até 2026. Mas, por outro lado, a evolução das dívidas será muito mais lenta caso a regra proposta não existisse - a expectativa, sem as mudanças, era de crescimento descontrolado. A redução das turbulências nos mercados financeiros se deve a essa perspectiva, enquanto que persistem as incertezas sobre a capacidade de o governo executar o que prometeu.

Há um virtual consenso entre os economistas de que o complexo desenho fiscal traçado só consegue entregar o resultado previsto se a arrecadação crescer bem, algo entre 1,5% e 2,3% do PIB até 2026. Esse esforço não é trivial, ainda mais quando o governo, reconhecendo as limitações que o Congresso certamente colocará, promete arrumar mais dinheiro sem aumentar os impostos existentes. Esse volume de recursos é ainda mais expressivo quando se considera que eles têm de ser líquidos, isto é, já descontadas as transferências para Estados e municípios.

Estudo de Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV-Ibre, estima que, em um cenário básico, com crescimento do PIB em 1,5% ao ano e juro real de 4,5%, a arrecadação precisaria em 2026 ser 1,51% do PIB superior ao do ano corrente - 0,49% agora, 0,24% em 2024, 0,58% em 2025 e 0,2% em 2026. Mesmo assim, em seus cálculos, durante o mandato de Lula nem a dívida bruta nem a líquida se estabilizariam. A dívida líquida só pararia de crescer e começaria a declinar a partir de 2027, em boa parte devido ao aumento das receitas advindas da exploração do petróleo (royalties, partilha etc).

O empenho do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem tido algum sucesso para angariar receitas pelas vias não tradicionais, de obter recursos fechando brechas possíveis, como a dos incentivos do ICMS para investimento, que empresas usaram em custeio e mesmo assim abateram de impostos federais. Houve uma vitória na Justiça, estimada pelo governo em R$ 93 bilhões, mas que a Receita avalia em R$ 47 bilhões. Nos planos estão também nova rodada de repatriação de dinheiro do exterior, taxação dos investimentos em fundos exclusivos (tentativa fracassada em 2017), alteração na cobrança do IR de quem tem aplicações no exterior etc.

Esses caminhos merecem ser explorados, mas são insuficientes. É preciso atacar a montanha de isenções fiscais, de R$ 486 bilhões este ano, uma batalha reconhecida como inglória. Haddad ameaçou divulgar o CNPJ das empresas que auferem essas isenções fiscais, mas as benesses são legais e foram aprovadas pelo Congresso. O Simples e a Zona Franca de Manaus somam R$ 154 bilhões e é improvável que o Congresso reduza esses benefícios. Outros R$ 82 bilhões são rendimentos isentos ou deduções do IR, enquanto mais R$ 57,3 bilhões são usufruídos pela agricultura e agroindústria.

Será necessário romper lobbies bem entrincheirados no Congresso para avançar neste campo, o que exige determinação de uma base governista com alguma solidez, o que não existe no momento. O governo Bolsonaro conseguiu aprovar um plano de redução gradual de 10% das isenções, que seriam determinados pelo Executivo, mas não o foram e não se falou mais nisso, não por acaso.

O regime fiscal proposto, por outro lado, pressupõe um crescimento contínuo das despesas, de mínimo de 0,65% real a 2,5%, a depender do cumprimento ou não das metas de superávit (de déficit de 0,5% em 2023, a 0% em 2024 até chegar a 1% em 2026). Há sérias dúvidas se os limites serão respeitados. O crescimento vegetativo dos gastos previdenciários, 43% das despesas, será de 2,3% no mandato de Lula, estima Borges, e nesse cálculo não estão incluídos os aumentos reais do salário mínimo que virão com projeto enviado pelo Executivo ao Congresso. A isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil, se cumprida, fará desaparecer cerca de R$ 100 bilhões de arrecadação por ano, em uma conta conservadora. Os reajustes salariais dos funcionários públicos não deverão ser contidos, como o foram até 2022.

A preservação dos investimentos, com correção da inflação a partir dos R$ 75 bilhões do orçamento de 2024 e com possibilidade de crescer mais R$ 25 bilhões em caso de excesso de arrecadação, é uma despesa que se justifica. Os investimentos deixam assim de ser a variável de ajuste do orçamento, mas com os demais gastos subindo, não se sabe como o orçamento se equilibrará. De qualquer forma, com o piso corrigido de 0,7% do PIB, o Executivo supera a taxa de depreciação do estoque de capital, afirma Manoel Pires, também pesquisador associado do FGV-Ibre.

O descumprimento das metas não prevê sanções, afora a diminuição da relação entre gastos e receitas. A lei de responsabilidade fiscal as previa e elas têm de ser mantidas. Uma variável chave será o crescimento do PIB, que precisaria ser superior a 2% para cumprir o que estipula o novo regime fiscal, propiciando aumento de despesas e de receitas. Talvez por isso, o presidente dia sim, outro também, pragueje contra a elevada taxa de juros - sem a qual, no entanto, a inflação não será domada.

MP de tributação no exterior desvia foco do principal

O Globo

Em vez de se ocupar da reforma tributária ampla, governo desperdiça capital político com mudança menor

Ao derrubar os decretos que afrouxavam o marco regulatório do saneamento, a Câmara deu um recado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: enquanto ele desperdiça tempo e capital político com questões de escassa relevância, cabe ao Parlamento restaurar o princípio da realidade econômica nos temas críticos.

A discussão sobre o arcabouço fiscal não decolou, e o debate sobre a reforma tributária ainda é uma abstração, mas os parlamentares terão agora de examinar a MP 1.171. O texto que ampliou a faixa de isenção do Imposto de Renda (IR) também alterou a tributação de aplicações financeiras no exterior. No discurso, cumpre duas promessas de campanha de Lula: corrigir a tabela do IR e “pôr os ricos no imposto”. Na prática, a arrecadação anual prometida é pífia, ao redor de R$ 3,5 bilhões.

A MP estabelece que lucros e dividendos de capital aplicado em entidades sediadas fora do país (offshore) e trustes (fundos que administram dinheiro de terceiros) serão tributados todo ano, mesmo que não tenham sido distribuídos. Tributaristas críticos à medida argumentam que esses lucros e dividendos não existem até que sejam resgatados. O mesmo raciocínio, contudo, vale para os fundos brasileiros sujeitos ao desconto periódico de IR conhecido como “come-cotas”. As novas regras, numa primeira leitura, promovem justiça tributária ao submeter a taxação do capital investido lá fora às mesmas regras que aqui dentro.

Do jeito como está, porém, a MP desequilibra a balança na outra direção. Todo ano o capital mantido no exterior será taxado pelo valor em reais, seguindo não apenas o lucro do investimento, mas também a flutuação cambial. Se o dólar cair até o momento em que o recurso for sacado, o investidor terá pagado imposto por um ganho que não auferiu. Além disso, se investir num fundo do exterior que aplica em ações brasileiras, estará sujeito a taxação. Mas, se investir num fundo brasileiro que aplica nas mesmas ações, não estará, pois fundo de ações não é sujeito a “come-cotas”. O ideal seria haver isonomia.

É inegável que investimentos em offshores e trustes são um expediente usado pelos mais ricos, que não dependem de retiradas periódicas. Não raro esse capital é alocado no exterior apenas para esconder o dinheiro do Fisco (estima-se que o total chegue a US$ 200 bilhões). Por isso vários países adotam estratégias para antecipar a cobrança do imposto, independentemente de haver resgate e repatriação. “As regras previstas na MP 1.171 não são uma invenção brasileira”, diz Vanessa Canado, coordenadora do Núcleo de Tributação do Insper.

Além disso, a OCDE reconhece que os impostos são um dos instrumentos mais eficazes para reduzir desigualdades e promover crescimento inclusivo. No caso da MP, tal constatação serve ao mesmo tempo para justificá-la e para criticá-la. Embora vá na direção certa e, com os ajustes necessários, devesse ser aprovada, ela é secundária no panorama tributário brasileiro. O mais urgente é promover a reforma que unifique impostos indiretos, criando o Imposto sobre Valor Agregado. Dois projetos estão em estágio avançado no Congresso e se ouviram muitas promessas do governo, mas até agora nada houve de concreto. Ao desviar o foco para uma mudança de impacto reduzido na arrecadação, a MP representa mais desperdício de capital político — recurso essencial na hora da reforma para valer.

Partidos têm de coibir fraudes em cotas eleitorais de mulheres e negros

O Globo

Tentativa pluripartidária de se conceder uma ‘autoanistia’ por meio de PEC não passa de escárnio

Parece escárnio a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9, tentativa de livrar de sanção os partidos que apresentaram irregularidades em suas contabilidades na última eleição, em especial por não terem cumprido as cotas de destinação de recursos a candidaturas femininas e negras. Pela lei, 30% dos recursos dos fundos partidário e eleitoral deveriam ter sido destinados à candidatura de mulheres e 5% a programas de promoção e difusão da participação feminina na política. Além disso, candidatos negros deveriam ter recebido recursos na proporção que representam no total de candidaturas.

No preenchimento da cota feminina, não faltaram fraudes. Em março, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o mandato de Egídio Beckhauser (Republicanos), ex-presidente da Câmara de Vereadores de Blumenau, por ter participado da candidatura fraudulenta de duas mulheres, que receberam cinco e sete votos. Além da baixa votação e do parentesco frequente com candidatos ao mesmo cargo, as candidatas laranjas costumam declarar poucos gastos em campanha, não comparecem a comícios ou passeatas, nem fazem propaganda na internet. Até o gasto excessivo de uma candidata novata pode levantar suspeita, pois ela pode estar repassando dinheiro a outros candidatos. Nada disso pode ser relevado.

A PEC 9, de autoria do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), concede uma anistia de caráter puramente corporativista a todas as irregularidade cometidas na campanha. Fora isso, ao permitir que pessoas jurídicas possam doar aos partidos para pagar dívidas, passa por cima da lei de 2015 que acabou com o financiamento corporativo a campanhas e partidos. A PEC conta com apoio em todos os campos ideológicos e partidários. Há assinaturas de 13 partidos. Parece que nunca tantos se uniram numa ação conjunta.

Não é a primeira vez que os políticos tentam promover uma “autoanistia”. Em 2022, a PEC 28 concedeu aos partidos o mesmo perdão, abrangendo todas as eleições anteriores, municipais, estaduais e gerais. De nada adiantou ter recebido fortes críticas num seminário organizado pela própria Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados. Relatora do projeto da PEC, a deputada Margarete Coelho (PP-PI) incluiu no seu parecer a manutenção das penalidades aos partidos que não cumpriram as cotas e, numa acrobacia hermenêutica, os perdoou de qualquer sanção. A PEC 9, que propõe basicamente o mesmo, segue impávida seu trâmite.

Os artifícios para driblar a lei eleitoral degradam a democracia representativa. Os partidos têm de coibi-los. Se enfrentam dificuldades para cumprir as cotas e querem mudar a regra, deveriam agir com honestidade e encontrar outras formas de incentivar candidaturas de minorias. Foi o próprio Congresso que introduziu o critério de cotas. Além das fraudes, não se sabe se a dificuldade para cumpri-lo resulta de descaso, de dificuldades inerentes ou do próprio machismo ou racismo. Em qualquer das hipóteses, porém, cabe a pergunta: se era para depois desfazer, então para que fez?

A hora do Senado

Folha de S. Paulo

Câmara avançou na defesa do marco do saneamento; senadores devem fazer o mesmo

Câmara dos Deputados deu o primeiro passo para proteger o marco legal do saneamento básico; agora, cabe ao Senado Federal ratificar o gesto e impedir o retrocesso que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende impor a essa política social aprovada em 2020.

Foi no começo de abril que Lula deslanchou sua iniciativa. Embotado pela ideologia e de olho nos interesses imediatos de políticos paroquianos, baixou decretos para modificar o marco legal em favor de empresas estatais ineficientes no campo do saneamento.

Nada justifica as medidas do petista, salvo o preconceito contra o setor privado. Num país em que cerca de 100 milhões de pessoas ainda se encontram ao largo da coleta de esgoto, deveria ser óbvio que os esforços precisam mirar mais eficiência, não menos.

Daí por que fizeram bem os deputados ao encaminhar um projeto de decreto legislativo que, se aprovado também pelo Senado, derruba trechos de dois dos decretos lulistas e resguarda, com isso, alguns dispositivos essenciais da lei.

Por exemplo, Lula reabriu prazos e facilitou condições para que empresas estaduais de saneamento apresentem garantias de capacidade técnica e financeira para cumprir a meta de universalização da coleta de esgoto até 2033.

O presidente também inseriu uma permissão para que companhias estaduais possam prestar serviços sem licitação em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões.

Os dois itens foram atacados na Câmara, e com bons motivos: eles premiam a baixa produtividade e reduzem os estímulos à qualidade daquilo que a população recebe.

Esses argumentos ajudam a explicar por que o debate entre os deputados terminou num dilatado placar de 295 a 136, com o governo amealhando a parcela minoritária dos votos em sua primeira derrota expressiva no Congresso.

Ao lado deles, enfileiram-se razões distantes do projeto em si, mas em tudo ligadas à dificuldade que Lula tem de montar uma base de apoio neste seu terceiro mandato.

Exemplo eloquente é a situação de MDB, União Brasil e PSD. A despeito de somarem nove ministérios, votaram em peso pela derrocada dos decretos de Lula.

Há, como sempre, reclamações sobre demora na distribuição de cargos e verbas —o que até pode ter contribuído para a retirada de pauta do projeto das fake news, outro tema de interesse do Planalto.

No presidencialismo de coalizão, porém, a afinidade ideológica e de projetos também cobra o seu quinhão. Se Lula quiser melhorar o diálogo no Congresso, não bastará sacar moedas de troca rasteiras; precisará incluir na negociação o direcionamento das pautas para o centro —sobretudo na economia, onde o PT tem muito a aprender.

Educação pelo ralo

Folha de S. Paulo

É escandaloso que alta no gasto por aluno no ensino médio tenha resultado pífio

São aterradores os dados que demonstram a ineficiência do gasto público brasileiro em educação, em particular no ensino médio, apresentados em artigo da pesquisadora Laura Machado, do Insper, publicado por esta Folha.

De acordo com estatísticas oficiais, o dispêndio médio por aluno do ensino médio mais que quadruplicou, em números corrigidos, de 2004 a 2018, passando de R$ 1.810 a R$ 8.003 (valores de 2018).

Em boa parte desse período, até 2010, houve considerável crescimento da economia e da arrecadação de impostos nos três níveis de governo —e os gastos mínimos em educação, por mandamento constitucional, são fixados em parcelas fixas de receitas da União, dos estados e dos municípios.

Além disso, as transformações demográficas do Brasil no período levaram à queda da população jovem e, consequentemente, do número de matrículas nas escolas.

Tamanha expansão do gasto por estudante, entretanto, não resultou em melhora do aprendizado. Segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), as notas médias de matemática permaneceram quase inalteradas e bem abaixo do nível tido como desejável —mesmo sem levar em conta o impacto devastador da pandemia.

É esperável que o Brasil apresente desempenho inferior ao de países ricos, que dispõem de mais dinheiro para aplicar no ensino. É escandaloso, porém, que um aumento contínuo de despesas ao longo de mais de uma década proporcione resultado tão pífio.

Urge, pois, uma revisão de políticas para esse setor essencial. Parece evidente que o modelo atual —baseado na garantia legal de recursos crescentes, em grande parte destinados a mais remuneração de professores— carece de cobranças e incentivos para a busca de melhor aprendizado.

O governo petista, infelizmente, é por demais permeável a interesses e pressões corporativistas, como se vê na hesitação diante dos problemas, que precisam ser superados, na reforma dos currículos do ensino médio com objetivo de reduzir as taxas de evasão.

Normas recentes que condicionam repasses de verbas para municípios ao desempenho dos alunos são um avanço, mas é preciso ir além. Trata-se de enfrentar o maior gargalo da educação, que contribui decisivamente para perpetuar nossa vergonhosa desigualdade.

Solidários na desfaçatez

O Estado de S. Paulo

Petistas e bolsonaristas esquecem as diferenças quando se trata de interesses em comum, como a PEC que anistia partidos que burlaram as regras do fundo eleitoral para mulheres e negros

Os petistas e os bolsonaristas esquecem as diferenças se os interesses são comuns.

Este jornal já chamou a atenção para um fato incontornável: os partidos políticos, como todas as organizações privadas, devem se sustentar por meio de recursos financeiros privados. Esse dinheiro pode vir de doações feitas por eleitores, além de filiados, que se sintam representados pelos valores e agendas programáticas que cada partido defende para o País. Tão mais vibrante será nossa democracia representativa quanto mais sólida for a conexão entre eleitores e legendas.

Os partidos, porém, são recalcitrantes em reconhecer a realidade. Essa postura pode ser motivada por comodismo. Afinal, para que trabalhar pela aproximação com eleitores que possam se tornar doadores no futuro se o dinheiro líquido e certo do Orçamento da União entrará na conta dos partidos, incondicionalmente, todos os meses? Pode, também, ser inspirada por interesses inconfessáveis.

O fato é que, historicamente, os partidos têm usado a força óbvia que têm no Congresso para apresentar, de tempos em tempos, projetos de lei e emendas à Constituição que não apenas mantêm o status quo, qual seja, a quase exclusividade de fontes de financiamento público para as legendas e as campanhas eleitorais, como aprofundam essa relação de dependência do erário por interesses paroquiais.

A mais nova ação de socorro financeiro aos partidos à custa dos contribuintes – e por “nova” entenda-se que decerto não será a última – uniu até petistas e bolsonaristas no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa união improvável revela que, quando se trata de salvaguardar o cofre dos partidos, não há ideologia no mundo capaz de distinguir os parlamentares brasileiros.

É na CCJ da Câmara que está em deliberação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que estende até as eleições gerais de 2022 a anistia concedida aos partidos que, nas eleições municipais de 2020, burlaram as regras de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre candidaturas de mulheres e negros. Caso esse autoperdão seja aprovado, os partidos ficarão isentos do pagamento de multas milionárias, além de outras punições que podem ser impostas a seus dirigentes.

É espantoso, mas não surpreende, que o PT, logo o partido que se apresenta à sociedade como o grande defensor das cotas para mulheres e negros nas mais variadas esferas da vida nacional, não só descumpriu a regra que previa a destinação de 30% dos recursos do fundo eleitoral para aquelas candidaturas, como agora, de mãos dadas com os bolsonaristas, não hesitou em pugnar pela manutenção da PEC 9/2023 na pauta da CCJ, um esforço concentrado multipartidário que garantiu a sobrevida da proposta por 38 votos a 12. “Não é apenas com multa e punições que será assegurada a participação de mulheres e negros (nas eleições)”, disse a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PT-PR).

A deputada petista está em perfeita sintonia com seu colega de Câmara e presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP). Em entrevista ao Valor, no dia 28 passado, Pereira construiu o argumento que decerto será seguido por seus pares que não tenham pruridos em manifestar misoginia e preconceito. Segundo ele, o “descumprimento de determinadas regras” ocorre porque, ora vejam, “não tem mulheres com voto, infelizmente, para poder disputar no nível que a legislação (eleitoral) exige”.

Outra aberração é o fato de a anistia, mais uma, recair sobre a burla de regras que os próprios congressistas aprovaram há não muito tempo em processo legislativo absolutamente regular.

A PEC 9/2023 é em tudo contrária ao interesse nacional. O perdão por irregularidades recorrentes cometidas pelas legendas na distribuição do fundo eleitoral entre grupos sociais sub-representados afasta o Congresso da realidade da sociedade brasileira. Ademais, é um prêmio à irresponsabilidade dos partidos e uma afronta ao Supremo Tribunal Federal ao permitir que as legendas possam arrecadar doações de empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, quando a Corte, em boa hora, proibiu doações de pessoas jurídicas para partidos e campanhas. Isso não pode prosperar.

Educação, chave para futuro do trabalho

O Estado de S. Paulo

Avanços tecnológicos estão por trás da criação e eliminação de empregos, um fenômeno mundial que requer trabalhadores cada vez mais preparados; o Brasil não pode ficar para trás

A educação é chave para o desenvolvimento, e o Brasil paga o preço dobrado de uma expansão tardia de matrículas no ensino básico somada a baixos índices de aprendizagem. As consequências de tais mazelas são amplamente conhecidas: baixa produtividade, oportunidades perdidas e fraco crescimento econômico. À luz da revolução tecnológica ora em curso, porém, o que era ruim tende a piorar. Afinal, a digitalização da economia tem provocado mudanças profundas no mercado de trabalho, abrindo caminho simultaneamente para a criação, transformação e extinção de empregos − algo que exigirá crescente adaptação e qualificação dos trabalhadores. Em outras palavras, mais educação.

O alerta para o papel central das políticas educacionais diante dos desafios do mercado de trabalho consta no relatório O Futuro do Trabalho 2023, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial com base em dados de 45 países, entre eles o Brasil. Como noticiou o Estadão, o estudo projeta que 23% dos atuais empregos sofrerão mudanças até 2027. Nesse mesmo período, 69 milhões de postos de trabalho deverão ser criados para atender novos mercados, ao passo que 83 milhões deverão ser eliminados. O saldo, portanto, tende a ser o desaparecimento de 14 milhões de vagas, o equivalente a 2% dos empregos no conjunto de países pesquisados.

De um lado, a aposta é que diversas carreiras deixarão de existir, com seus profissionais sendo substituídos por processos automatizados. É o caso, por exemplo, de quem trabalha como caixa de banco ou que exerce a função de cobrador. O mesmo vale para secretárias. De outro, o estudo aponta profissões com maior potencial de crescimento, como analistas de segurança da informação, cientistas de dados ou especialistas em inteligência artificial e aprendizagem de máquina. Em paralelo às mudanças tecnológicas, novas demandas ligadas à preservação ambiental também deverão interferir no perfil dos empregos. Não surpreende que um dos ramos em ascensão citados no estudo seja o de especialistas em sustentabilidade.

Vale notar que a equação entre vagas a serem criadas e extintas não é neutra. Cada vez mais, a inserção profissional exigirá mais preparo e qualificação. Isso já é realidade hoje, mas a transformação do mercado de trabalho deve aumentar a necessidade de formação específica e continuada, sob pena de que a extinção de empregos faça crescer o contingente de quem não consegue recolocação mesmo diante de novas oportunidades. O maior risco é que a educação − ou melhor, a falta dela − vire uma barreira intransponível neste século 21.

Num país com as desigualdades educacionais do Brasil, tal perspectiva é preocupante e deve ensejar respostas urgentes por parte das autoridades. Não à toa, o relatório do Fórum Econômico Mundial destaca a educação como um dos setores que tendem a crescer. O mundo inteiro tem o desafio de não deixar ninguém para trás.

Tudo começa, claro, pela oferta de educação básica de qualidade, com crianças e adolescentes tendo a chance de desenvolver habilidades e competências que servirão de base para a vida adulta. Mais que nunca, é essencial aprender a aprender. Mas não só. Embora o papel da escola vá muito além da preparação para o trabalho, essa é uma dimensão que o Brasil não pode continuar negligenciando. Até porque a maioria dos jovens que concluem o ensino médio não ingressa na universidade − e depende do que aprendeu na escola para conseguir emprego.

Eis um motivo a mais para que as redes de ensino, com apoio do Ministério da Educação (MEC), façam os devidos ajustes e avancem na implementação do Novo Ensino Médio − que, corretamente, prevê a oferta de ensino técnico como um de seus itinerários formativos. A educação profissional é um direito dos estudantes e deve estar alinhada às inovações tecnológicas. O País não pode permitir que a falta de formação adequada vire um abismo ainda maior a impedir que vastas parcelas da população contribuam para o desenvolvimento nacional.

A crise de confiança argentina

O Estado de S. Paulo

Desgaste peronista é oportunidade para a direita moderada, que precisa superar o populismo

Normalmente, a renúncia de um incumbente à reeleição seria surpreendente. Mas nas condições anormais de temperatura econômica e pressão política argentina, a desistência de Alberto Fernández não surpreendeu ninguém. Ele prometeu “pôr a Argentina de pé”, mas entregou um país na lona. A inflação de três dígitos segue galopante, o dólar sobe e as reservas evaporam.

Debacles econômicas são rotina na Argentina. A peculiaridade é que a atual exprime uma crise de confiança, ou mais, de identidade política. Sintomaticamente, dois ex-presidentes e presidenciáveis também renunciaram ao pleito de outubro: Mauricio Macri, líder da oposição de centro-direita, e a vice-presidente, Cristina Kirchner. Ou seja, os últimos três governantes do país não querem voltar a governá-lo.

Como toda crise, esta pode acarretar uma letargia prolongada ou uma deterioração acelerada, mas também oferece oportunidades de renovação.

Desde a década de 40, o núcleo duro do peronismo, o populismo nacionalista, é o fator dominante na política argentina. Mas ele passou por metamorfoses. A penúltima foi o viés liberalizante de Carlos Menem, nos anos 90. A última foi o kirchnerismo. A presidência de Néstor Kirchner e depois de sua mulher, hoje viúva, Cristina, revigorou a identidade original: estatismo, clientelismo e radicalismo. Quanto mais cresciam os gastos e subsídios com um Estado e empresas improdutivas, mais cresciam o déficit e a inflação. Hoje, 4 em 10 argentinos vivem na pobreza.

O descrédito atingiu um ponto de saturação. Nas eleições legislativas de meio de mandato, a coalizão peronista Frente de Todos tomou uma surra. O próprio Fernández e seu ministro da Economia, Sergio Massa, ensaiaram concessões à oposição. Mas, sem firmeza, foram facilmente sabotados por Cristina.

A coalizão de centro-direita Juntos Pela Mudança tem uma oportunidade rara. Não faltam recursos ao país. O agronegócio é forte, há abundantes reservas de gás e lítio e um setor promissor de serviços digitais. As reformas são conhecidas: redução do tamanho do Estado e implementação de uma gestão meritocrática. O maior desafio é político.

Será preciso neutralizar o direitista radical Javier Milei. Ainda que não enfatize a pauta de costumes nem tenha vínculos com a ditadura, Milei tem sido comparado a Jair Bolsonaro (e a Donald Trump) por sua razia antipolítica. Nada ilustra melhor o simplismo de suas políticas econômicas ultralibertárias que o nome de seu plano: “Motosserra”.

As chances da direita moderada estão em construir uma ampla concertação que garanta o apoio parlamentar que faltou a Macri. Ela precisará sanar suas próprias divisões e ser honesta com a população como um médico é com seu paciente: não haverá crescimento sem sacrifícios. Talvez mais importante será apresentar propostas consistentes com seus próprios ideais: reduzir a desigualdade, promover a competição e um sistema tributário justo. Sua inconsistência histórica com eles sempre abriu flancos ao populismo de esquerda e, agora, pode abri-los ao populismo de direita.

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