Novo regime evita descontrole, mas não estabiliza a dívida
Valor Econômico
Crescimento da economia precisa ser
superior a 2% para sustentar o ajuste fiscal
O novo regime fiscal proposto pelo governo
Lula não será capaz de estabilizar nem a dívida bruta nem a dívida líquida
pública até 2026. Mas, por outro lado, a evolução das dívidas será muito mais
lenta caso a regra proposta não existisse - a expectativa, sem as mudanças, era
de crescimento descontrolado. A redução das turbulências nos mercados
financeiros se deve a essa perspectiva, enquanto que persistem as incertezas
sobre a capacidade de o governo executar o que prometeu.
Há um virtual consenso entre os economistas
de que o complexo desenho fiscal traçado só consegue entregar o resultado
previsto se a arrecadação crescer bem, algo entre 1,5% e 2,3% do PIB até 2026.
Esse esforço não é trivial, ainda mais quando o governo, reconhecendo as
limitações que o Congresso certamente colocará, promete arrumar mais dinheiro
sem aumentar os impostos existentes. Esse volume de recursos é ainda mais
expressivo quando se considera que eles têm de ser líquidos, isto é, já
descontadas as transferências para Estados e municípios.
Estudo de Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV-Ibre, estima que, em um cenário básico, com crescimento do PIB em 1,5% ao ano e juro real de 4,5%, a arrecadação precisaria em 2026 ser 1,51% do PIB superior ao do ano corrente - 0,49% agora, 0,24% em 2024, 0,58% em 2025 e 0,2% em 2026. Mesmo assim, em seus cálculos, durante o mandato de Lula nem a dívida bruta nem a líquida se estabilizariam. A dívida líquida só pararia de crescer e começaria a declinar a partir de 2027, em boa parte devido ao aumento das receitas advindas da exploração do petróleo (royalties, partilha etc).
O empenho do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, tem tido algum sucesso para angariar receitas pelas vias não
tradicionais, de obter recursos fechando brechas possíveis, como a dos
incentivos do ICMS para investimento, que empresas usaram em custeio e mesmo
assim abateram de impostos federais. Houve uma vitória na Justiça, estimada
pelo governo em R$ 93 bilhões, mas que a Receita avalia em R$ 47 bilhões. Nos
planos estão também nova rodada de repatriação de dinheiro do exterior, taxação
dos investimentos em fundos exclusivos (tentativa fracassada em 2017),
alteração na cobrança do IR de quem tem aplicações no exterior etc.
Esses caminhos merecem ser explorados, mas
são insuficientes. É preciso atacar a montanha de isenções fiscais, de R$ 486
bilhões este ano, uma batalha reconhecida como inglória. Haddad ameaçou
divulgar o CNPJ das empresas que auferem essas isenções fiscais, mas as
benesses são legais e foram aprovadas pelo Congresso. O Simples e a Zona Franca
de Manaus somam R$ 154 bilhões e é improvável que o Congresso reduza esses
benefícios. Outros R$ 82 bilhões são rendimentos isentos ou deduções do IR,
enquanto mais R$ 57,3 bilhões são usufruídos pela agricultura e agroindústria.
Será necessário romper lobbies bem
entrincheirados no Congresso para avançar neste campo, o que exige determinação
de uma base governista com alguma solidez, o que não existe no momento. O
governo Bolsonaro conseguiu aprovar um plano de redução gradual de 10% das
isenções, que seriam determinados pelo Executivo, mas não o foram e não se
falou mais nisso, não por acaso.
O regime fiscal proposto, por outro lado,
pressupõe um crescimento contínuo das despesas, de mínimo de 0,65% real a 2,5%,
a depender do cumprimento ou não das metas de superávit (de déficit de 0,5% em
2023, a 0% em 2024 até chegar a 1% em 2026). Há sérias dúvidas se os limites
serão respeitados. O crescimento vegetativo dos gastos previdenciários, 43% das
despesas, será de 2,3% no mandato de Lula, estima Borges, e nesse cálculo não
estão incluídos os aumentos reais do salário mínimo que virão com projeto
enviado pelo Executivo ao Congresso. A isenção do IR para quem ganha até R$ 5
mil, se cumprida, fará desaparecer cerca de R$ 100 bilhões de arrecadação por
ano, em uma conta conservadora. Os reajustes salariais dos funcionários
públicos não deverão ser contidos, como o foram até 2022.
A preservação dos investimentos, com
correção da inflação a partir dos R$ 75 bilhões do orçamento de 2024 e com
possibilidade de crescer mais R$ 25 bilhões em caso de excesso de arrecadação,
é uma despesa que se justifica. Os investimentos deixam assim de ser a variável
de ajuste do orçamento, mas com os demais gastos subindo, não se sabe como o
orçamento se equilibrará. De qualquer forma, com o piso corrigido de 0,7% do
PIB, o Executivo supera a taxa de depreciação do estoque de capital, afirma
Manoel Pires, também pesquisador associado do FGV-Ibre.
O descumprimento das metas não prevê
sanções, afora a diminuição da relação entre gastos e receitas. A lei de
responsabilidade fiscal as previa e elas têm de ser mantidas. Uma variável
chave será o crescimento do PIB, que precisaria ser superior a 2% para cumprir
o que estipula o novo regime fiscal, propiciando aumento de despesas e de
receitas. Talvez por isso, o presidente dia sim, outro também, pragueje contra
a elevada taxa de juros - sem a qual, no entanto, a inflação não será domada.
MP de tributação no exterior desvia foco do
principal
O Globo
Em vez de se ocupar da reforma tributária
ampla, governo desperdiça capital político com mudança menor
Ao derrubar os decretos que afrouxavam o
marco regulatório do saneamento, a Câmara deu um recado ao presidente Luiz
Inácio Lula da Silva: enquanto ele desperdiça tempo e capital político com
questões de escassa relevância, cabe ao Parlamento restaurar o princípio da
realidade econômica nos temas críticos.
A discussão sobre o arcabouço fiscal não
decolou, e o debate sobre a reforma tributária ainda é uma abstração, mas os
parlamentares terão agora de examinar a MP 1.171. O texto que ampliou a faixa
de isenção do Imposto de Renda (IR) também alterou a tributação de aplicações
financeiras no exterior. No discurso, cumpre duas promessas de campanha de
Lula: corrigir a tabela do IR e “pôr os ricos no imposto”. Na prática, a
arrecadação anual prometida é pífia, ao redor de R$ 3,5 bilhões.
A MP estabelece que lucros e dividendos de
capital aplicado em entidades sediadas fora do país (offshore) e trustes
(fundos que administram dinheiro de terceiros) serão tributados todo ano, mesmo
que não tenham sido distribuídos. Tributaristas críticos à medida argumentam
que esses lucros e dividendos não existem até que sejam resgatados. O mesmo
raciocínio, contudo, vale para os fundos brasileiros sujeitos ao desconto periódico
de IR conhecido como “come-cotas”. As novas regras, numa primeira leitura,
promovem justiça tributária ao submeter a taxação do capital investido lá fora
às mesmas regras que aqui dentro.
Do jeito como está, porém, a MP
desequilibra a balança na outra direção. Todo ano o capital mantido no exterior
será taxado pelo valor em reais, seguindo não apenas o lucro do investimento,
mas também a flutuação cambial. Se o dólar cair até o momento em que o recurso
for sacado, o investidor terá pagado imposto por um ganho que não auferiu. Além
disso, se investir num fundo do exterior que aplica em ações brasileiras,
estará sujeito a taxação. Mas, se investir num fundo brasileiro que aplica nas
mesmas ações, não estará, pois fundo de ações não é sujeito a “come-cotas”. O
ideal seria haver isonomia.
É inegável que investimentos em offshores e
trustes são um expediente usado pelos mais ricos, que não dependem de retiradas
periódicas. Não raro esse capital é alocado no exterior apenas para esconder o
dinheiro do Fisco (estima-se que o total chegue a US$ 200 bilhões). Por isso
vários países adotam estratégias para antecipar a cobrança do imposto,
independentemente de haver resgate e repatriação. “As regras previstas na MP
1.171 não são uma invenção brasileira”, diz Vanessa Canado, coordenadora do
Núcleo de Tributação do Insper.
Além disso, a OCDE reconhece que os
impostos são um dos instrumentos mais eficazes para reduzir desigualdades e
promover crescimento inclusivo. No caso da MP, tal constatação serve ao mesmo
tempo para justificá-la e para criticá-la. Embora vá na direção certa e, com os
ajustes necessários, devesse ser aprovada, ela é secundária no panorama
tributário brasileiro. O mais urgente é promover a reforma que unifique
impostos indiretos, criando o Imposto sobre Valor Agregado. Dois projetos estão
em estágio avançado no Congresso e se ouviram muitas promessas do governo, mas
até agora nada houve de concreto. Ao desviar o foco para uma mudança de impacto
reduzido na arrecadação, a MP representa mais desperdício de capital político —
recurso essencial na hora da reforma para valer.
Partidos têm de coibir fraudes em cotas
eleitorais de mulheres e negros
O Globo
Tentativa pluripartidária de se conceder
uma ‘autoanistia’ por meio de PEC não passa de escárnio
Parece escárnio a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 9, tentativa de livrar de sanção os partidos que
apresentaram irregularidades em suas contabilidades na última eleição, em
especial por não terem cumprido as cotas de destinação de recursos a
candidaturas femininas e negras. Pela lei, 30% dos recursos dos fundos
partidário e eleitoral deveriam ter sido destinados à candidatura de mulheres e
5% a programas de promoção e difusão da participação feminina na política. Além
disso, candidatos negros deveriam ter recebido recursos na proporção que
representam no total de candidaturas.
No preenchimento da cota feminina, não
faltaram fraudes. Em março, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o
mandato de Egídio Beckhauser (Republicanos), ex-presidente da Câmara de
Vereadores de Blumenau, por ter participado da candidatura fraudulenta de duas
mulheres, que receberam cinco e sete votos. Além da baixa votação e do parentesco
frequente com candidatos ao mesmo cargo, as candidatas laranjas costumam
declarar poucos gastos em campanha, não comparecem a comícios ou passeatas, nem
fazem propaganda na internet. Até o gasto excessivo de uma candidata novata
pode levantar suspeita, pois ela pode estar repassando dinheiro a outros
candidatos. Nada disso pode ser relevado.
A PEC 9, de autoria do deputado Paulo
Magalhães (PSD-BA), concede uma anistia de caráter puramente corporativista a
todas as irregularidade cometidas na campanha. Fora isso, ao permitir que
pessoas jurídicas possam doar aos partidos para pagar dívidas, passa por cima
da lei de 2015 que acabou com o financiamento corporativo a campanhas e
partidos. A PEC conta com apoio em todos os campos ideológicos e partidários.
Há assinaturas de 13 partidos. Parece que nunca tantos se uniram numa ação
conjunta.
Não é a primeira vez que os políticos
tentam promover uma “autoanistia”. Em 2022, a PEC 28 concedeu aos partidos o
mesmo perdão, abrangendo todas as eleições anteriores, municipais, estaduais e
gerais. De nada adiantou ter recebido fortes críticas num seminário organizado
pela própria Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados. Relatora do projeto
da PEC, a deputada Margarete Coelho (PP-PI) incluiu no seu parecer a manutenção
das penalidades aos partidos que não cumpriram as cotas e, numa acrobacia
hermenêutica, os perdoou de qualquer sanção. A PEC 9, que propõe basicamente o
mesmo, segue impávida seu trâmite.
Os artifícios para driblar a lei eleitoral degradam a democracia representativa. Os partidos têm de coibi-los. Se enfrentam dificuldades para cumprir as cotas e querem mudar a regra, deveriam agir com honestidade e encontrar outras formas de incentivar candidaturas de minorias. Foi o próprio Congresso que introduziu o critério de cotas. Além das fraudes, não se sabe se a dificuldade para cumpri-lo resulta de descaso, de dificuldades inerentes ou do próprio machismo ou racismo. Em qualquer das hipóteses, porém, cabe a pergunta: se era para depois desfazer, então para que fez?
A hora do Senado
Folha de S. Paulo
Câmara avançou na defesa do marco do
saneamento; senadores devem fazer o mesmo
A Câmara dos
Deputados deu o primeiro passo para proteger o marco legal do saneamento básico;
agora, cabe ao Senado Federal ratificar o gesto e impedir o retrocesso que o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende impor a essa política social
aprovada em 2020.
Foi no começo de abril que Lula deslanchou
sua iniciativa. Embotado pela ideologia e de olho nos interesses imediatos de
políticos paroquianos, baixou decretos para modificar o marco legal em favor de
empresas estatais ineficientes no campo do saneamento.
Nada justifica as medidas do petista, salvo
o preconceito contra o setor privado. Num país em que cerca de 100 milhões de
pessoas ainda se encontram ao largo da coleta de esgoto, deveria ser óbvio que
os esforços precisam mirar mais eficiência, não menos.
Daí por que fizeram bem os deputados ao
encaminhar um projeto de decreto legislativo que, se aprovado também pelo
Senado, derruba trechos de dois dos decretos lulistas e resguarda, com isso,
alguns dispositivos essenciais da lei.
Por exemplo, Lula reabriu prazos e
facilitou condições para que empresas estaduais de saneamento apresentem
garantias de capacidade técnica e financeira para cumprir a meta de
universalização da coleta de esgoto até 2033.
O presidente também inseriu uma permissão
para que companhias estaduais possam prestar serviços sem licitação em regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões.
Os dois itens foram atacados na Câmara, e
com bons motivos: eles premiam a baixa produtividade e reduzem os estímulos à
qualidade daquilo que a população recebe.
Esses argumentos ajudam a explicar por que
o debate entre os deputados terminou num dilatado placar de 295 a 136, com o
governo amealhando a parcela minoritária dos votos em sua primeira derrota
expressiva no Congresso.
Ao lado deles, enfileiram-se razões
distantes do projeto em si, mas em tudo ligadas à dificuldade
que Lula tem de montar uma base de apoio neste seu terceiro mandato.
Exemplo eloquente é a situação de MDB,
União Brasil e PSD. A despeito de somarem nove ministérios, votaram em peso
pela derrocada dos decretos de Lula.
Há, como sempre, reclamações sobre demora
na distribuição de cargos e verbas —o que até pode ter contribuído para a
retirada de pauta do projeto das fake news, outro tema de interesse do
Planalto.
No presidencialismo de coalizão, porém, a
afinidade ideológica e de projetos também cobra o seu quinhão. Se Lula quiser
melhorar o diálogo no Congresso, não bastará sacar moedas de troca rasteiras;
precisará incluir na negociação o direcionamento das pautas para o centro
—sobretudo na economia, onde o PT tem muito a aprender.
Educação pelo ralo
Folha de S. Paulo
É escandaloso que alta no gasto por aluno
no ensino médio tenha resultado pífio
São aterradores os dados que demonstram a
ineficiência do gasto público brasileiro em educação, em particular no ensino
médio, apresentados em artigo da pesquisadora Laura Machado, do Insper,
publicado por esta Folha.
De acordo com estatísticas oficiais, o dispêndio
médio por aluno do ensino médio mais que quadruplicou, em números corrigidos,
de 2004 a 2018, passando de R$ 1.810 a R$ 8.003 (valores de 2018).
Em boa parte desse período, até 2010, houve
considerável crescimento da economia e da arrecadação de impostos nos três
níveis de governo —e os gastos mínimos em educação, por mandamento
constitucional, são fixados em parcelas fixas de receitas da União, dos estados
e dos municípios.
Além disso, as transformações demográficas
do Brasil no período levaram à queda da população jovem e, consequentemente, do
número de matrículas nas escolas.
Tamanha expansão do gasto por estudante,
entretanto, não resultou em melhora do aprendizado. Segundo o Sistema de
Avaliação da Educação Básica (Saeb), as notas médias de matemática permaneceram
quase inalteradas e bem abaixo do nível tido como desejável —mesmo sem levar em
conta o impacto devastador da pandemia.
É esperável que o Brasil apresente
desempenho inferior ao de países ricos, que dispõem de mais dinheiro para
aplicar no ensino. É escandaloso, porém, que um aumento contínuo de despesas ao
longo de mais de uma década proporcione resultado tão pífio.
Urge, pois, uma revisão de políticas para
esse setor essencial. Parece evidente que o modelo atual —baseado na garantia
legal de recursos crescentes, em grande parte destinados a mais remuneração de
professores— carece de cobranças e incentivos para a busca de melhor
aprendizado.
O governo petista, infelizmente, é por
demais permeável a interesses e pressões corporativistas, como se vê na
hesitação diante dos problemas, que precisam ser superados, na reforma dos
currículos do ensino médio com objetivo de reduzir as taxas de evasão.
Normas recentes que condicionam repasses de verbas para municípios ao desempenho dos alunos são um avanço, mas é preciso ir além. Trata-se de enfrentar o maior gargalo da educação, que contribui decisivamente para perpetuar nossa vergonhosa desigualdade.
Solidários na desfaçatez
O Estado de S. Paulo
Petistas e bolsonaristas esquecem as diferenças
quando se trata de interesses em comum, como a PEC que anistia partidos que
burlaram as regras do fundo eleitoral para mulheres e negros
Os petistas e os bolsonaristas esquecem as
diferenças se os interesses são comuns.
Este jornal já chamou a atenção para um
fato incontornável: os partidos políticos, como todas as organizações privadas,
devem se sustentar por meio de recursos financeiros privados. Esse dinheiro
pode vir de doações feitas por eleitores, além de filiados, que se sintam
representados pelos valores e agendas programáticas que cada partido defende
para o País. Tão mais vibrante será nossa democracia representativa quanto mais
sólida for a conexão entre eleitores e legendas.
Os partidos, porém, são recalcitrantes em
reconhecer a realidade. Essa postura pode ser motivada por comodismo. Afinal,
para que trabalhar pela aproximação com eleitores que possam se tornar doadores
no futuro se o dinheiro líquido e certo do Orçamento da União entrará na conta
dos partidos, incondicionalmente, todos os meses? Pode, também, ser inspirada
por interesses inconfessáveis.
O fato é que, historicamente, os partidos
têm usado a força óbvia que têm no Congresso para apresentar, de tempos em
tempos, projetos de lei e emendas à Constituição que não apenas mantêm o status
quo, qual seja, a quase exclusividade de fontes de financiamento público para
as legendas e as campanhas eleitorais, como aprofundam essa relação de
dependência do erário por interesses paroquiais.
A mais nova ação de socorro financeiro aos
partidos à custa dos contribuintes – e por “nova” entenda-se que decerto não
será a última – uniu até petistas e bolsonaristas no âmbito da Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa união improvável
revela que, quando se trata de salvaguardar o cofre dos partidos, não há
ideologia no mundo capaz de distinguir os parlamentares brasileiros.
É na CCJ da Câmara que está em deliberação
a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que estende até as eleições
gerais de 2022 a anistia concedida aos partidos que, nas eleições municipais de
2020, burlaram as regras de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre
candidaturas de mulheres e negros. Caso esse autoperdão seja aprovado, os
partidos ficarão isentos do pagamento de multas milionárias, além de outras
punições que podem ser impostas a seus dirigentes.
É espantoso, mas não surpreende, que o PT,
logo o partido que se apresenta à sociedade como o grande defensor das cotas
para mulheres e negros nas mais variadas esferas da vida nacional, não só
descumpriu a regra que previa a destinação de 30% dos recursos do fundo
eleitoral para aquelas candidaturas, como agora, de mãos dadas com os
bolsonaristas, não hesitou em pugnar pela manutenção da PEC 9/2023 na pauta da
CCJ, um esforço concentrado multipartidário que garantiu a sobrevida da
proposta por 38 votos a 12. “Não é apenas com multa e punições que será
assegurada a participação de mulheres e negros (nas eleições)”, disse a
presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PT-PR).
A deputada petista está em perfeita
sintonia com seu colega de Câmara e presidente do Republicanos, Marcos Pereira
(SP). Em entrevista ao Valor, no dia 28 passado, Pereira construiu o argumento
que decerto será seguido por seus pares que não tenham pruridos em manifestar
misoginia e preconceito. Segundo ele, o “descumprimento de determinadas regras”
ocorre porque, ora vejam, “não tem mulheres com voto, infelizmente, para poder
disputar no nível que a legislação (eleitoral) exige”.
Outra aberração é o fato de a anistia, mais
uma, recair sobre a burla de regras que os próprios congressistas aprovaram há
não muito tempo em processo legislativo absolutamente regular.
A PEC 9/2023 é em tudo contrária ao
interesse nacional. O perdão por irregularidades recorrentes cometidas pelas
legendas na distribuição do fundo eleitoral entre grupos sociais
sub-representados afasta o Congresso da realidade da sociedade brasileira.
Ademais, é um prêmio à irresponsabilidade dos partidos e uma afronta ao Supremo
Tribunal Federal ao permitir que as legendas possam arrecadar doações de
empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, quando a Corte, em boa hora,
proibiu doações de pessoas jurídicas para partidos e campanhas. Isso não pode
prosperar.
Educação, chave para futuro do trabalho
O Estado de S. Paulo
Avanços tecnológicos estão por trás da
criação e eliminação de empregos, um fenômeno mundial que requer trabalhadores
cada vez mais preparados; o Brasil não pode ficar para trás
A educação é chave para o desenvolvimento,
e o Brasil paga o preço dobrado de uma expansão tardia de matrículas no ensino
básico somada a baixos índices de aprendizagem. As consequências de tais
mazelas são amplamente conhecidas: baixa produtividade, oportunidades perdidas
e fraco crescimento econômico. À luz da revolução tecnológica ora em curso,
porém, o que era ruim tende a piorar. Afinal, a digitalização da economia tem
provocado mudanças profundas no mercado de trabalho, abrindo caminho
simultaneamente para a criação, transformação e extinção de empregos − algo que
exigirá crescente adaptação e qualificação dos trabalhadores. Em outras
palavras, mais educação.
O alerta para o papel central das políticas
educacionais diante dos desafios do mercado de trabalho consta no relatório O
Futuro do Trabalho 2023, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial com base em
dados de 45 países, entre eles o Brasil. Como noticiou o Estadão, o estudo
projeta que 23% dos atuais empregos sofrerão mudanças até 2027. Nesse mesmo
período, 69 milhões de postos de trabalho deverão ser criados para atender
novos mercados, ao passo que 83 milhões deverão ser eliminados. O saldo,
portanto, tende a ser o desaparecimento de 14 milhões de vagas, o equivalente a
2% dos empregos no conjunto de países pesquisados.
De um lado, a aposta é que diversas
carreiras deixarão de existir, com seus profissionais sendo substituídos por
processos automatizados. É o caso, por exemplo, de quem trabalha como caixa de
banco ou que exerce a função de cobrador. O mesmo vale para secretárias. De
outro, o estudo aponta profissões com maior potencial de crescimento, como
analistas de segurança da informação, cientistas de dados ou especialistas em
inteligência artificial e aprendizagem de máquina. Em paralelo às mudanças
tecnológicas, novas demandas ligadas à preservação ambiental também deverão
interferir no perfil dos empregos. Não surpreende que um dos ramos em ascensão
citados no estudo seja o de especialistas em sustentabilidade.
Vale notar que a equação entre vagas a
serem criadas e extintas não é neutra. Cada vez mais, a inserção profissional
exigirá mais preparo e qualificação. Isso já é realidade hoje, mas a
transformação do mercado de trabalho deve aumentar a necessidade de formação
específica e continuada, sob pena de que a extinção de empregos faça crescer o
contingente de quem não consegue recolocação mesmo diante de novas
oportunidades. O maior risco é que a educação − ou melhor, a falta dela − vire
uma barreira intransponível neste século 21.
Num país com as desigualdades educacionais
do Brasil, tal perspectiva é preocupante e deve ensejar respostas urgentes por
parte das autoridades. Não à toa, o relatório do Fórum Econômico Mundial
destaca a educação como um dos setores que tendem a crescer. O mundo inteiro
tem o desafio de não deixar ninguém para trás.
Tudo começa, claro, pela oferta de educação
básica de qualidade, com crianças e adolescentes tendo a chance de desenvolver
habilidades e competências que servirão de base para a vida adulta. Mais que
nunca, é essencial aprender a aprender. Mas não só. Embora o papel da escola vá
muito além da preparação para o trabalho, essa é uma dimensão que o Brasil não
pode continuar negligenciando. Até porque a maioria dos jovens que concluem o
ensino médio não ingressa na universidade − e depende do que aprendeu na escola
para conseguir emprego.
Eis um motivo a mais para que as redes de
ensino, com apoio do Ministério da Educação (MEC), façam os devidos ajustes e
avancem na implementação do Novo Ensino Médio − que, corretamente, prevê a
oferta de ensino técnico como um de seus itinerários formativos. A educação
profissional é um direito dos estudantes e deve estar alinhada às inovações
tecnológicas. O País não pode permitir que a falta de formação adequada vire um
abismo ainda maior a impedir que vastas parcelas da população contribuam para o
desenvolvimento nacional.
A crise de confiança argentina
O Estado de S. Paulo
Desgaste peronista é oportunidade para a direita moderada, que precisa superar o populismo
Normalmente, a renúncia de um incumbente à
reeleição seria surpreendente. Mas nas condições anormais de temperatura
econômica e pressão política argentina, a desistência de Alberto Fernández não
surpreendeu ninguém. Ele prometeu “pôr a Argentina de pé”, mas entregou um país
na lona. A inflação de três dígitos segue galopante, o dólar sobe e as reservas
evaporam.
Debacles econômicas são rotina na
Argentina. A peculiaridade é que a atual exprime uma crise de confiança, ou
mais, de identidade política. Sintomaticamente, dois ex-presidentes e
presidenciáveis também renunciaram ao pleito de outubro: Mauricio Macri, líder
da oposição de centro-direita, e a vice-presidente, Cristina Kirchner. Ou seja,
os últimos três governantes do país não querem voltar a governá-lo.
Como toda crise, esta pode acarretar uma
letargia prolongada ou uma deterioração acelerada, mas também oferece
oportunidades de renovação.
Desde a década de 40, o núcleo duro do
peronismo, o populismo nacionalista, é o fator dominante na política argentina.
Mas ele passou por metamorfoses. A penúltima foi o viés liberalizante de Carlos
Menem, nos anos 90. A última foi o kirchnerismo. A presidência de Néstor
Kirchner e depois de sua mulher, hoje viúva, Cristina, revigorou a identidade
original: estatismo, clientelismo e radicalismo. Quanto mais cresciam os gastos
e subsídios com um Estado e empresas improdutivas, mais cresciam o déficit e a
inflação. Hoje, 4 em 10 argentinos vivem na pobreza.
O descrédito atingiu um ponto de saturação.
Nas eleições legislativas de meio de mandato, a coalizão peronista Frente de
Todos tomou uma surra. O próprio Fernández e seu ministro da Economia, Sergio
Massa, ensaiaram concessões à oposição. Mas, sem firmeza, foram facilmente
sabotados por Cristina.
A coalizão de centro-direita Juntos Pela
Mudança tem uma oportunidade rara. Não faltam recursos ao país. O agronegócio é
forte, há abundantes reservas de gás e lítio e um setor promissor de serviços
digitais. As reformas são conhecidas: redução do tamanho do Estado e
implementação de uma gestão meritocrática. O maior desafio é político.
Será preciso neutralizar o direitista
radical Javier Milei. Ainda que não enfatize a pauta de costumes nem tenha
vínculos com a ditadura, Milei tem sido comparado a Jair Bolsonaro (e a Donald
Trump) por sua razia antipolítica. Nada ilustra melhor o simplismo de suas
políticas econômicas ultralibertárias que o nome de seu plano: “Motosserra”.
As chances da direita moderada estão em construir uma ampla concertação que garanta o apoio parlamentar que faltou a Macri. Ela precisará sanar suas próprias divisões e ser honesta com a população como um médico é com seu paciente: não haverá crescimento sem sacrifícios. Talvez mais importante será apresentar propostas consistentes com seus próprios ideais: reduzir a desigualdade, promover a competição e um sistema tributário justo. Sua inconsistência histórica com eles sempre abriu flancos ao populismo de esquerda e, agora, pode abri-los ao populismo de direita.
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