Valor Econômico
Uma combinação de pressão inflacionária com
fragilidade financeira não existia na década de 1970
Nos países de alta renda a inflação dos
preços ao consumidor alcança taxas não observadas nas últimas quatro décadas.
Pelo fato de a inflação ter deixado de seguir baixos patamares, o mesmo ocorreu
com as taxas de juros. A era dos juros “baixos por muito tempo” acabou, pelo
menos por enquanto. Por que isso ocorreu? Será uma mudança duradoura? Qual
deveria ser a reação da política pública?
Nas últimas duas décadas, o Banco de
Compensações Internacionais (BIS) ofereceu um ponto de vista diferente do da
maioria das organizações internacionais e bancos centrais de peso. Enfatizou os
perigos de uma política monetária ultraexpansiva, do endividamento elevado e da
fragilidade financeira. Sempre valeu a pena considerar sua posição,
caracterizada por certo catastrofismo.
O relatório resume a recente experiência como de “inflação alta, resiliência surpreendente da atividade econômica e os primeiros sinais de estresse grave no sistema financeiro”. Destaca a opinião defendida em amplos círculos de que a inflação vai diminuir e desaparecer. Em contraposição, observa que a porcentagem de itens da cesta de consumo com altas anuais dos preços de mais de 5% alcançou mais de 60% nos países de alta renda. Enfatiza também que os salários reais caíram significativamente neste episódio de inflação. “Seria pouco razoável prever que os assalariados não tentarão recuperar o poder de compra perdido, até porque os mercados de trabalho permanecem muito apertados”, afirma. Os trabalhadores poderiam reaver parte dessas perdas, sem manter a inflação em níveis elevados, desde que os lucros fossem comprimidos. Nas economias resilientes de hoje, no entanto, uma disputa distributiva parece muito mais provável.
A fragilidade financeira torna as reações
de política pública mais difíceis de calibrar. Segundo o Instituto de Finanças
Internacionais, a relação dívida bruta global sobre PIB estava 17% maior no
começo de 2023 do que pouco antes de o Lehman falir, em 2008, apesar das quedas
pós-covid-19 (ajudadas pela inflação). Taxas de juros já em alta e corridas aos
bancos causaram episódios de desestruturação.
Se a era de taxas de juros reais
ultrabaixas não acabou, houve mesmo um abalo apenas passageiro. Nesse caso,
teremos estresses significativos pela frente, já que as altas taxas de juros
tornam os atuais níveis de endividamento difíceis de sustentar
Novos problemas são passíveis de ocorrer,
diante do acúmulo de prejuízos nas instituições mais expostas a riscos
imobiliários, de juros e de vencimento. Com o passar do tempo, também, as
famílias tendem a sofrer em decorrência da alta dos custos de tomada de
empréstimos. Os bancos cujos preços das ações estão abaixo do valor contábil
terão dificuldades em captar mais capital. A situação de instituições
financeiras não bancárias é ainda menos transparente.
Uma combinação desse gênero, de pressão
inflacionária com fragilidade financeira, não existia na década de 1970. Em
parte por causa disso, “o último quilômetro” da jornada desinflacionária pode
ser o mais difícil, sugere o BIS. Isso é plausível por motivos econômicos e
políticos.O BIS não acrescenta o populismo à sua lista de preocupações. Mas
esse fator deveria fazer parte dela.
Como chegamos a essa confusão? Todos
sabemos dos choques de abastecimento pós-covid e da guerra na Ucrânia. Mas,
observa o BIS, “o extraordinário estímulo monetário e fiscal mobilizado durante
a pandemia, justificado na época, parece grande demais, amplo demais e
duradouro demais”.
Por outro lado, a fragilidade financeira,
sem dúvida, aumentou durante o longo período de baixas taxas de juros. O ponto
no qual discordo do BIS é se a era dos juros “baixos por muito tempo” poderia
ter sido evitada. O Banco do Japão (o BC do país) bem que tentou, no início da
década de 1990, e o Banco Central Europeu também, em 2011. Ambos fracassaram.
O que vivenciamos agora será uma mudança
duradoura do ambiente monetário ou apenas temporária? Simplesmente não sabemos.
Isso depende do grau pelo qual a inflação elevada se limitou a ser o produto de
choques de oferta. Depende também de as sociedades, há muito tempo pouco
acostumadas à inflação, decidirem ou não que reduzi-la é tarefa árdua demais,
como ocorreu em tantos países na década de 1970. Depende também de até que
ponto a fragmentação da economia mundial reduziu permanentemente ou não as
elasticidades da oferta. Depende, principalmente, de se a era de taxas de juros
reais ultrabaixas acabou ou não.
Se não acabou, este foi mesmo um abalo
apenas passageiro. Nesse caso, teremos estresses significativos pela frente, já
que as altas taxas de juros tornam os atuais níveis de endividamento difíceis
de sustentar.
Finalmente, o que se pretende fazer? O BIS
acredita na doutrina dos velhos tempos. Argumenta que depositamos um grau de
confiança elevado demais nas políticas fiscal e monetária e baixo demais nas
políticas estruturais. Em parte por esse motivo, empurramos nossas economias
para o que chama de “região de estabilidade”, nas quais as expectativas
(principalmente a de inflação) são, em grande medida, autoestabilizantes. A
distinção que faz entre a maneira pela qual as pessoas se comportam em
ambientes de inflação baixa e de inflação alta é valiosa. Corremos agora o
risco de transitar de forma duradoura entre uma e outra. Os desdobramentos ao
longo do curto intervalo dos próximos anos serão decisivos. É por isso que os
bancos centrais têm de ser bastante corajosos.
Mas eu continuo pouco convencido por todos
os dogmas dessa doutrina. O BIS argumenta, por exemplo, que os formuladores de
políticas públicas deveriam ter tratado com mais serenidade a inflação
persistentemente baixa. Mas isso teria aumentado significativamente as chances
de que a política monetária se mostrasse impotente em uma grave recessão.
Argumenta também que a estabilização macroeconômica não é tão importante assim.
Mas recessões prolongadas e inflação alta são, no mínimo, igualmente
intoleráveis. Além disso, um ambiente macroeconômico estável é, ao menos,
proveitoso para o crescimento, ao facilitar tanto o planejamento das empresas.
Sobretudo, continuo pouco convencido de que
o objetivo dominante da política monetária deveria ser a estabilidade financeira.
Como alguém pode argumentar que as economias têm de ser mantidas
permanentemente fracas a fim de impedir que o setor financeiro as faça ir pelos
ares? Se esse é o perigo, vamos encará-lo de frente. Devemos começar por
eliminar a dedutibilidade fiscal dos juros, aumentar as sanções pecuniárias
sobre pessoas que levam empresas financeiras ao colapso e fazer com que a
resolução [ou seja, a reestruturação, recapitalização e liquidação] de
instituições financeiras falidas funcione.
Mas o BIS sempre levanta grandes problemas.
Isso é de valor inestimável, mesmo quando a pessoa não concorda. (Tradução de Rachel Warszawski)
*Martin Wolf é editor e
principal analista de economia do Financial Times
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