quarta-feira, 5 de julho de 2023

Martin Wolf* - A volta da inflação muda o mundo

Valor Econômico

Uma combinação de pressão inflacionária com fragilidade financeira não existia na década de 1970

Nos países de alta renda a inflação dos preços ao consumidor alcança taxas não observadas nas últimas quatro décadas. Pelo fato de a inflação ter deixado de seguir baixos patamares, o mesmo ocorreu com as taxas de juros. A era dos juros “baixos por muito tempo” acabou, pelo menos por enquanto. Por que isso ocorreu? Será uma mudança duradoura? Qual deveria ser a reação da política pública?

Nas últimas duas décadas, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) ofereceu um ponto de vista diferente do da maioria das organizações internacionais e bancos centrais de peso. Enfatizou os perigos de uma política monetária ultraexpansiva, do endividamento elevado e da fragilidade financeira. Sempre valeu a pena considerar sua posição, caracterizada por certo catastrofismo.

O relatório resume a recente experiência como de “inflação alta, resiliência surpreendente da atividade econômica e os primeiros sinais de estresse grave no sistema financeiro”. Destaca a opinião defendida em amplos círculos de que a inflação vai diminuir e desaparecer. Em contraposição, observa que a porcentagem de itens da cesta de consumo com altas anuais dos preços de mais de 5% alcançou mais de 60% nos países de alta renda. Enfatiza também que os salários reais caíram significativamente neste episódio de inflação. “Seria pouco razoável prever que os assalariados não tentarão recuperar o poder de compra perdido, até porque os mercados de trabalho permanecem muito apertados”, afirma. Os trabalhadores poderiam reaver parte dessas perdas, sem manter a inflação em níveis elevados, desde que os lucros fossem comprimidos. Nas economias resilientes de hoje, no entanto, uma disputa distributiva parece muito mais provável.

A fragilidade financeira torna as reações de política pública mais difíceis de calibrar. Segundo o Instituto de Finanças Internacionais, a relação dívida bruta global sobre PIB estava 17% maior no começo de 2023 do que pouco antes de o Lehman falir, em 2008, apesar das quedas pós-covid-19 (ajudadas pela inflação). Taxas de juros já em alta e corridas aos bancos causaram episódios de desestruturação.

Se a era de taxas de juros reais ultrabaixas não acabou, houve mesmo um abalo apenas passageiro. Nesse caso, teremos estresses significativos pela frente, já que as altas taxas de juros tornam os atuais níveis de endividamento difíceis de sustentar

Novos problemas são passíveis de ocorrer, diante do acúmulo de prejuízos nas instituições mais expostas a riscos imobiliários, de juros e de vencimento. Com o passar do tempo, também, as famílias tendem a sofrer em decorrência da alta dos custos de tomada de empréstimos. Os bancos cujos preços das ações estão abaixo do valor contábil terão dificuldades em captar mais capital. A situação de instituições financeiras não bancárias é ainda menos transparente.

Uma combinação desse gênero, de pressão inflacionária com fragilidade financeira, não existia na década de 1970. Em parte por causa disso, “o último quilômetro” da jornada desinflacionária pode ser o mais difícil, sugere o BIS. Isso é plausível por motivos econômicos e políticos.O BIS não acrescenta o populismo à sua lista de preocupações. Mas esse fator deveria fazer parte dela.

Como chegamos a essa confusão? Todos sabemos dos choques de abastecimento pós-covid e da guerra na Ucrânia. Mas, observa o BIS, “o extraordinário estímulo monetário e fiscal mobilizado durante a pandemia, justificado na época, parece grande demais, amplo demais e duradouro demais”.

Por outro lado, a fragilidade financeira, sem dúvida, aumentou durante o longo período de baixas taxas de juros. O ponto no qual discordo do BIS é se a era dos juros “baixos por muito tempo” poderia ter sido evitada. O Banco do Japão (o BC do país) bem que tentou, no início da década de 1990, e o Banco Central Europeu também, em 2011. Ambos fracassaram.

O que vivenciamos agora será uma mudança duradoura do ambiente monetário ou apenas temporária? Simplesmente não sabemos. Isso depende do grau pelo qual a inflação elevada se limitou a ser o produto de choques de oferta. Depende também de as sociedades, há muito tempo pouco acostumadas à inflação, decidirem ou não que reduzi-la é tarefa árdua demais, como ocorreu em tantos países na década de 1970. Depende também de até que ponto a fragmentação da economia mundial reduziu permanentemente ou não as elasticidades da oferta. Depende, principalmente, de se a era de taxas de juros reais ultrabaixas acabou ou não.

Se não acabou, este foi mesmo um abalo apenas passageiro. Nesse caso, teremos estresses significativos pela frente, já que as altas taxas de juros tornam os atuais níveis de endividamento difíceis de sustentar.

Finalmente, o que se pretende fazer? O BIS acredita na doutrina dos velhos tempos. Argumenta que depositamos um grau de confiança elevado demais nas políticas fiscal e monetária e baixo demais nas políticas estruturais. Em parte por esse motivo, empurramos nossas economias para o que chama de “região de estabilidade”, nas quais as expectativas (principalmente a de inflação) são, em grande medida, autoestabilizantes. A distinção que faz entre a maneira pela qual as pessoas se comportam em ambientes de inflação baixa e de inflação alta é valiosa. Corremos agora o risco de transitar de forma duradoura entre uma e outra. Os desdobramentos ao longo do curto intervalo dos próximos anos serão decisivos. É por isso que os bancos centrais têm de ser bastante corajosos.

Mas eu continuo pouco convencido por todos os dogmas dessa doutrina. O BIS argumenta, por exemplo, que os formuladores de políticas públicas deveriam ter tratado com mais serenidade a inflação persistentemente baixa. Mas isso teria aumentado significativamente as chances de que a política monetária se mostrasse impotente em uma grave recessão. Argumenta também que a estabilização macroeconômica não é tão importante assim. Mas recessões prolongadas e inflação alta são, no mínimo, igualmente intoleráveis. Além disso, um ambiente macroeconômico estável é, ao menos, proveitoso para o crescimento, ao facilitar tanto o planejamento das empresas.

Sobretudo, continuo pouco convencido de que o objetivo dominante da política monetária deveria ser a estabilidade financeira. Como alguém pode argumentar que as economias têm de ser mantidas permanentemente fracas a fim de impedir que o setor financeiro as faça ir pelos ares? Se esse é o perigo, vamos encará-lo de frente. Devemos começar por eliminar a dedutibilidade fiscal dos juros, aumentar as sanções pecuniárias sobre pessoas que levam empresas financeiras ao colapso e fazer com que a resolução [ou seja, a reestruturação, recapitalização e liquidação] de instituições financeiras falidas funcione.

Mas o BIS sempre levanta grandes problemas. Isso é de valor inestimável, mesmo quando a pessoa não concorda. (Tradução de Rachel Warszawski)

*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

 

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