O Estado de S. Paulo
Quantas gerações de leitores não tiveram sua preocupação com a coisa pública despertada pela leitura diária dos editoriais?
Recentemente, Wilson Gomes, professor
titular de Teoria da Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
questionou a publicação dos editoriais nos dias de hoje. “Considerando como os
novos leitores julgam a cobertura pelos editoriais, que não têm valor factual,
não seria mais vantajoso para o jornalismo acabar com o editorial?”
Jornalismo não é um fato da natureza. É
construção humana, fenômeno histórico, com muitas possibilidades de
configuração. A pergunta é, portanto, válida. Faz sentido que um jornal
continue publicando, hoje em dia, sua opinião?
Certamente, se os editoriais fossem uma opinião arbitrária, similar ao polegar do imperador nas arenas romanas, eles não teriam muita utilidade. Mas os editoriais dos grandes jornais nunca quiseram ser isso. Nunca pretenderam ser apenas voto opinativo, sem fundamentação.
Aqui está o primeiro aspecto a destacar. O
editorial não é mera expressão da opinião dos donos do jornal, como também não
exprime o ponto de vista pessoal do diretor de Opinião ou dos editorialistas.
Um editorial que expressasse a opinião de uma pessoa física, seja ela quem for,
não teria relevância pública. Não seria, a rigor, um editorial. Por isso,
editoriais não levam assinatura.
O diferencial do editorial está em sua
institucionalidade. Trata-se de um juízo construído a partir de valores e
critérios institucionais, previamente fixados. Um editorial tem estrutura
similar a uma sentença judicial. Contém a exposição de determinados fatos e a
aplicação da lei sobre esses fatos. No caso do jornal, a lei são seus
princípios editoriais.
Os editoriais oferecem um bem escasso nos
dias de hoje: reflexão institucional, elaborada a partir de critérios públicos.
Essa é a razão pela qual os editoriais do Estadão sempre foram extensos. Eles
nunca pretenderam ser mera opinião, mera parte dispositiva da sentença. Eles
são – pretendem ser sempre – argumentação e diálogo. Mais do que ditar aos
leitores o que pensar, o objetivo é apresentar uma trajetória reflexiva, um
modo de olhar a realidade com razões públicas.
A opinião do jornal não reduz a
credibilidade da reportagem. São esferas diversas. De toda forma, uma vez que
expõem fatos, os editoriais têm também valor factual. Se há algum equívoco nos
fatos, deve haver pronta retificação.
Mas os editoriais dão um passo além.
Apresentam uma compreensão específica dos fatos – tarefa que não compete à
reportagem –, mostrando ao leitor que não basta ter acesso à notícia. O melhor
uso do jornalismo demanda reflexão. E é justamente a essa reflexão pessoal que
o editorial convida. Nada disso é uma teoria. Quantas gerações de leitores não
tiveram sua preocupação com a coisa pública despertada pela leitura diária dos
editoriais do Estadão?
Aqui, entramos noutro tema. O valor do
editorial não depende do grau de concordância dos leitores com a opinião nele
contida. Não é uma dinâmica de simpatia e antipatia. Mais do que obter aplausos
pela conclusão, o fundamental é expor o processo argumentativo, para depois
apresentar, com firmeza e coragem, sem medo de ir contracorrente, seu
veredicto.
É um enorme bem para o debate público
dispor da opinião de instituições que vivenciaram períodos sociais e políticos
muito distintos aos atuais. O tempo adquire outro peso. O poder estatal é visto
noutra perspectiva. Tudo ganha uma saudável relativização. O marco temporal
contemporâneo é despido de seu pretenso caráter absoluto. Excluir do debate
público a voz das instituições deixaria tudo achatado no presente.
Se um jornal abdicasse de publicar
editoriais, sua área de notícias seria prejudicada. A editoria de Opinião
permite que a redação atue no seu âmbito, estritamente factual. É muito bom
para a credibilidade da notícia que o leitor saiba que há uma área específica
de opinião. Essa separação permite ao jornalismo cumprir sua missão. Ele nunca
foi mera produção de fatos. Sempre foi também produção de sentido, sob as
óticas individual (com os artigos e colunas) e institucional (com os
editoriais). O prestígio dos grandes jornais sempre esteve vinculado, entre
outros aspectos, à capacidade de oferecer uma compreensão crítica da sociedade.
A editoria de Opinião confere identidade e
transparência institucionais. O caráter de um jornal é diariamente exposto em
seus editoriais. Lá está, para a avaliação de todos, sua visão de sociedade e
de país, sua compreensão de mundo e de jornalismo, sua aptidão em analisar os
fatos além do valor de face, sua capacidade de articular sentido entre eles.
Em vez de acabar com os editoriais, o
debate público ganharia muito se mais instituições e organizações sociais
publicassem habitualmente sua análise dos fatos, articulada a partir de sua
específica compreensão de mundo. Ao longo dos anos, esse exercício constante de
reflexão institucional geraria não apenas um plural e espetacular acervo, mas
contribuiria para desenvolver uma cultura de diálogo, em que a opinião não é
mero palpite, não é mera ilha, mas um olhar inquieto e compartilhado sobre a
realidade.
*Advogado
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