Folha de S. Paulo
Por que a democracia era essencial em
janeiro, virou secundária para Lula?
Lula, sabidamente um
democrata, vem arriscando de forma consistente a própria reputação, no
limite da inconsequência, apenas para não abandonar velhos companheiros dos sonhos da
esquerda latino-americana unida, mesmo os que se colocaram fora da órbita
da democracia.
Ele o faz mesmo ao custo de ignorar
circunstâncias, como a brasileira neste momento, em que flexibilizar a
democracia não parece ser bom negócio.
Convenhamos que repartir o pão com ditador
"bróder" e partidos que sustentam ditaduras, como
no Foro de São Paulo, porque se considera que ser de esquerda é bem mais
importante do que ser democrata, é um insulto desnecessário à parte ainda
lúcida do país que
saiu em socorro da democracia em 8 de janeiro. Ou
que votou em Lula por saber que um segundo mandato de Bolsonaro e a
democracia seriam incompatíveis.
É mais forte do que Lula, porém, e lá estava ele de novo na semana passada respondendo com destemor à candente questão sobre "ditaduras legais". "A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil", dizia.
Na voz do interlocutor, o que resta de
lucidez ao país objeta: "Eleições não garantem democracias, não é
presidente?".
Veemente, Lula revela no vídeo a doutrina
que segue: "Deixa eu lhe falar uma coisa, o
conceito de democracia é relativo, para você e para mim".
Em vez de perceber o desastre e colocar
panos quentes, como era de se esperar, o
ministro-chefe da Secom dobrou o tempero. "Os EUA invadirem o
Iraque e o Kuwait em nome da democracia é legítimo? [...] Sim, presidente Lula,
democracia é um conceito relativo e existem visões teóricas distintas sobre
ele", disse Pimenta num tuíte.
Sim, há distintos modelos de democracia,
com ênfase em um aspecto ou outro da experiência democrática; mas todos
refletem consenso mínimo e sólido sobre o que a democracia é. Em nenhum é
possível confundir democracia e ditadura.
Mas como num ritual repetido há anos, de um
lado, arregalaram os olhos os que já balançam a cabeça quando Lula volta ao
tema das ditaduras de esquerda, jamais condenadas com clareza, sempre
justificadas em virtude de algum mal maior praticado por países de constituição
democrática, acolhidas com base no raciocínio de que se são de esquerda, algum
mérito hão de ter.
De outro lado, as incansáveis tropas que
defendem Lula, tanto os que o defenderiam não importa o que fizesse, quanto os
que pensam exatamente como ele nesse tópico.
Antigamente, quando a esquerda se permitia
falar mal da democracia, dizia-se que como países de constituição democrática
fizeram o diabo mundo afora, este regime não é tão bom assim e
que o socialismo pelo menos resolvia o problema da injustiça social.
Desta vez, contentam-se em dizer que se nas
democracias há tanta coisa errada, o conceito de democracia é complacente com
horrores, de modo que o horror que você condena pode muito bem ser visto como
compatível com um regime que, segundo o seu critério, é ditadura, enquanto no
meu é só mais uma espécie de democracia. E gritam xeque-mate.
O argumento é ordinário, no duplo sentido
da expressão, mas neste momento é também perigoso. Se democracia é conceito
subjetivo, golpe também não é relativo? E afinal, estamos defendendo a
democracia ou simplesmente colocamos para brigar o conceito dos bolsonaristas e o de
Alexandre de Moraes? E na campanha, quando Lula prometeu devolver o país
aos trilhos da democracia, nessa democracia cabe uma ditadura?
Se Bolsonaro foi condenado por violar as
regras do jogo democrático, mas cada um tem um conceito válido de democracia,
mais razão teriam os bolsonaristas para dizer que o Judiciário violou nesse
julgamento a regra de neutralidade de perspectivas que deve orientar os
processos judiciais.
Se o conceito de democracia for relativo,
igualmente será o conceito oposto, de forma que não há terreno objetivo para
negar a validade do argumento bolsonarista de que estava na verdade numa
revolução para enfrentar uma ditadura de toga a meio caminho de uma ditadura
comunista.
Lula e o PT precisam no mínimo explicar por
que a democracia que era essencial, absoluta e inegociável em janeiro,
tornou-se secundária, discutível e relativa no final de junho.
E tudo isso para quê? Lula precisa decidir
suas prioridades e dizer até onde pode chegar para
proteger Maduro da acusação de ditador. No momento, nos levou a lugar
inquietante, onde a democracia é relativa, Bolsonaro pode dormir sossegado e os
brasileiros, intranquilos. Vale a pena?
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
3 comentários:
Nós não podemos mais deixar que agentes políticos e sociais desacreditem a democracia e que coloquem nosso projeto de democracia em risco.
Democracia é construção social, portanto, democracia é processo.
Há democracia sempre que houver meios livres de expressão de divergências políticas:: contando com liberdade para se expressar e praticar a democracia, o tamanho que essa democracia vai ter é aquele que se conquista.
Quando conquistarmos um pouco mais de democracia, o próximo passo é a conquista de mais democracia ; quando ainda não tivermos melhor justiça distributiva e de salários, mas tivermos espaço e liberdade para reivindicá-lo, é esse o avanço que precisaremos fazer na nossa democracia para aprimorá-la ; enquando subsistir manifestações de racismo, homofobia, misogia ou qualquer outro preconceito econômico-social, estes serão também avanços a serem conquistados em uma democracia.
Mas democracia não é um valor relativo senão quando é relativo à próprua democracia:: democracia é a que se conquista!
Os que ameaçam a nossa democracia aplicam o falso argumento do relativismo, fingidamente encontrando contradições e vulnerabilidades para com isso negarem a democracia. As alternativas que os relativistas apontam como sua proposta de democracia são as experiências truculentas e fracassadas dos Estados Policiais que se constituiram sob a forma de ditadura. Nesses Estados, repetem-se as mesmas mazelas que se apresentam na democracia, mas com a desvantagem de a sociedade perder a liberdade e nunca ser permitido que se organize para fazer reivindicações. A consequência é viver uma vida nestes Estados autoritários sem ter direito sequer a reivindicar direitos, normalmente sendo aprofundada nesses Estados a miséria que reivindicam combater como uma marca de superioridade moral.
São tão inconsistentes os argumentos de quem ameaça a democracia disfarçando suas intenções com a máscara do relativismo que eu me pergunto se a defesa que fazem de ditaduras e seus ataques permanentes às democracias são ignorância ou má-intenção ; ou se são estas duas coisas somadas!
O bolsonarismo se assanhou e se reaglutinou assim que viu uma brecha na democracia para dar a sua contribuição para solapá-la.
A brecha em nossa democracia foi reaberta entre 2007 e 2013, com as horríveis práticas, por quem detinha o poder nessa época, de aparelhamento de órgãos públicos, de busca de hegemonia no processo político por meio da instrumentalização de instituições e de movimentos sociais, da adoção de política fiscal de ampliação de gastos sem receita potencial prevista e falsificação do orçamento para esconder a irresponsabilidade fiscal dessa prática*, de muita produção e espalhamento de ódio, mentiras e meias-mentiras pré-bolsonarismo, quando ódio e mentiras era praticado só pelo lulismo, e por outras práticas que esgarçaram a sociedade.
Em todas as pesquisas o povo brasileiro se posiciona em sua maioria pela democracia, porém, a história de nosso país como república é uma história de descompromisso com a democracia por parte de setores políticos fundamentalistas. E em nossa história política sempre se repete de corrida para ver quem vai conseguir dar o golpe primeiro. Até hoje, nessa corrida, o fundamentalismo político associado ao populismo sempre venceu e nós passamos mais períodos sob ditadura ou sendo governados por estes fundamentalistas e/ou populistas que sob democracia.
*Esse artifício, de falsificação de orçamento para esconder déficit fiscal, teve como consequência o impeachment de Dilma, que embora tenha sido feito com intenção de golpe por parte de atores políticos e empresariais encrencados na Operação Lava Jato, que queriam ter o poder diretamente via Michel Temer, que assumiria por ser o vice-presidente, para usarem a presidência da república para tentarem se proteger das investigações, o imoeachtment só pôde ser feito porque havia a pré-condição jurídica da falsificaçào de orçamento para motivá-lo.
Posteriormente o mesmo juiz que liderou a Operação Lava Jato no combate à corrupção deixou de ser juiz e, ao virar político, foi, ele mesmo, se ligar ao corrupto Jair Bolsonaro.
No episódio do impeachment de Dilma, reconheça-se a qualidade política e moral de deputados federais como Roberto Freire e Miro Teixeira, do senador Cristóvam Buarque e de mais alguns, que votaram pela cassação do mandato de Dilma pelos motivos corretos, de prátuca de irresponsabilidade fiscal no seu governo, e não com a intenção de golpe, que foi o que motivou a maioria dos que cassaram o mandato de Dilma.
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