O Globo
Enxergar o planeta como sujeito, e não como
um objeto passivo e passível de implacável exploração, é o primeiro passo
Um bolsonarizado Lula defende ditadores
na Venezuela e
uma absurda relativização da democracia, mas bota o dedo na ferida quando
relaciona a “questão climática” à desigualdade.
A incompatibilidade entre um sistema motivado por um incremento ilimitado de produção e consumo e a destruição do planeta é certamente o maior conflito que devemos enfrentar. Enxergar o planeta como sujeito, e não como um objeto passivo e passível de implacável exploração, é o primeiro passo para equacionar esse conflito. O globo azul é a Mãe Terra que partejou todos os sistemas humanos e não humanos de vida conhecidos. Vale lembrar, ensina Thomas Mann, que não por acaso o homem se chama Homo humanus, como sinal de que vem do torrão materno, o húmus.
Não é possível discutir o clima, que não
tem intencionalidade nem fronteira, num planeta criteriosamente dividido por
povos territorializados em Estados nacionais soberanos e invioláveis, todos
impulsionados pelo modelo bíblico, em que o planeta que estava obviamente fora
do Jardim do Éden era um presente do Criador.
Um mundo aberto a todos os seus filhos, mas
que pode ser caracterizado por dois momentos. O primeiro, quando a Terra como
planeta englobava suas diversas humanidades; o segundo, quando uma variante de
suas humanidades — o Ocidente capitalista — começa a alienar o planeta de seus
direitos mais legítimos, pondo em risco sua sobrevivência com arsenais
nucleares e guerras.
“O direito do meio ambiente, de que tanto
se fala — adverte Lévi-Strauss — é um direito do meio ambiente sobre o homem,
não um direito do homem sobre o meio ambiente.” Fundado nessa visão, em que o
todo tem exigências que os sistemas de produção suprimiram e tornaram
universais, não é fácil harmonizar o projeto de “explorar as riquezas naturais”
sem afetar mortalmente o “meio ambiente”. Sem comprometer a totalidade
planetária onde todos (ricos e pobres, ateus ou crentes, democratas ou
autocratas) somos (como tribos, reinos, impérios, repúblicas, ditaduras,
potências mundiais nucleares) hóspedes temporários. Será preciso ouvir a
“natureza”, que não é concebida do mesmo modo em todas as culturas, para
dotá-la de condições que compensem a violência a ela aplicada pela
racionalidade utilitária e pelo consequente desencanto capitalista.
A questão da preservação da Amazônia,
de forma a conciliá-la com a fúria imposta pelo estilo de vida dominante, é
certamente o caso mais agudo — ao lado da desertificação, da poluição do ar e
dos oceanos e de outras formas de transformação da natureza — de uma
convivência com o meio ambiente por meio de um “utilitarismo autorregulado”,
que não contempla limites e somente agora toma consciência do elo contraditório
entre a Terra como planeta e como uma mera reserva destinada à desenfreada
exploração capitalista.
Foi com essa fúria que o West — o Ocidente
— fatiou partes do planeta em quintal colonial; e, depois, no “resto”. Mas e
quando esse “resto” ganha voz e, visto de fora para dentro, se conscientiza das
anormalidades reveladoras, em todo lugar, de uma ausência de limites e aponta
para uma eventual exaustão?
O que fazer senão discutir o tenebroso
abismo das desigualdades? Seja como um hóspede não desejado, seja como uma
dimensão ontológica da condição humana? Seria possível reunir toda a boa
vontade e boa-fé de nossas mil e uma humanidades e concepções de vida para, se
não liquidá-las como sempre quiseram os messiânicos, ao menos promover uma
benfeitoria universal? Uma dilatação de fronteiras ou desterritorialização. Um
desbastar de soberanias de modo a deixar de ter como foco nós — do país A, B ou
C — não em oposição e competição, mas com e ao lado dos outros?
Será que esses retornos reacionários ao
autoritarismo não estariam anunciando ou intuindo, a seu modo, essas mudanças
de patriotismo exclusivista para um nacionalismo mais inclusivo? Ou seriam eles
sinal de que estamos todos prisioneiros da famosa jaula de ferro weberiana?
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