terça-feira, 5 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

No 7 de setembro, apartar a política dos quartéis

Correio Braziliense

Por suas vicissitudes de formação, Exército, Marinha e Aeronáutica são muito mais voltados para as questões internas do que para a projeção geopolítica de poder nacional, cujo protagonismo é da nossa diplomacia, desde o Barão do Rio Branco

O Dia da Independência traduz por tradição o protagonismo dos militares na vida nacional. Por suas vicissitudes de formação, Exército, Marinha e Aeronáutica são muito mais voltados para as questões internas do que para a projeção geopolítica de poder nacional, cujo protagonismo é da nossa diplomacia, desde o Barão do Rio Branco. Com exceção da Guerra do Paraguai e da participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, as Forças Armadas sempre atuaram no sentido de manter a segurança interna e a integridade territorial, como na Confederação do Equador, na Balaiada, na Cabanagem e na Revolução Farroupilha, ou impor a ordem política pela força, como na Revolução de 1930 e ou no golpe militar de 1964.

Por essa razão, apesar do apelo dos desfiles, o Dia da Independência é uma festa cívico-militar. Não é uma comemoração predominantemente civil, como deveria ser, pois é o sentimento de brasilidade o maior sustentáculo da identidade nacional. Durante o governo Bolsonaro, porém, as comemorações foram partidarizadas com intenções claramente golpistas. Predominavam o saudosismo do regime militar e a radicalização política de extrema-direita, sob liderança do próprio presidente da República, sob hegemonia dos que veem na democracia os males do Brasil e não o seu maior patrimônio institucional.

No 7 de setembro de 2021, por exemplo, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) convocou seus apoiadores a saírem às ruas e protestar contra o Congresso, o Poder Judiciário, a mídia e o Congresso Nacional, após semanas de tensão e especulações sobre a preparação de um golpe de estado. Essas intenções não se consumaram devido à forte reação da sociedade civil, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, além da péssima repercussão internacional.

Com a segunda maior força militar das Américas, o Brasil tem um efetivo de 344.500 militares. Não somos, porém, uma potência militar. Mantemos boa convivência com os nossos vizinhos, inclusive a Venezuela, com quem congelamos as relações durante o governo Bolsonaro. Somos signatários do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, embora tenhamos tecnologia nuclear própria, e somos contrários à militarização do Atlântico Sul, apesar do projeto de construção de um submarino nuclear para aumentar nossa capacidade de dissuasão.

A partir da Guerra das Malvinas, a velha doutrina de segurança nacional ancorada na guerra fria se tornou obsoleta, apesar dos saudosistas. Em seu lugar, uma nova política de defesa está em construção, com centralidade na defesa da Amazônia e das nossas águas territoriais, na modernização das Forças |Armadas e no desenvolvimento da nossa indústria de defesa. Entretanto, esses esforços foram minados pelo envolvimento dos militares com a política, um claro desvio de finalidade.

Corporativismo, sentimento de superioridade em relação aos civis, partidarismo e ambição de poder nunca devem ser cultivados nas Forças Armadas, mas foi o que aconteceu nos últimos anos. A forte presença dos militares no governo Bolsonaro reforçou esses sentimentos negativos, além de ter desgastado as Forças Armadas junto à sociedade civil, por causa de subserviência aos desmandos autoritários do então presidente da República e do triste papel desempenhado por alguns militares à frente do Ministério da Saúde, durante a pandemia. Três décadas de reconstrução de imagem pública foram desperdiçadas nesse período.

O 7 de Setembro deste ano é uma oportunidade de mudança de paradigma. Os militares podem ser protagonistas da consolidação do nosso Estado democrático de direito, seja pelo resgate da austeridade e das suas missões específicas, seja pelo reposicionamento como uma instituição de um Estado democrático. Para isso, é preciso afastar a política dos quartéis e aperfeiçoar a legislação que atribui aos militares o papel de garantir a lei e a ordem, quando solicitado pelos Poderes da República.

Ampliação do programa MEI agrava risco fiscal

O Globo

Ideia negociada com Congresso acarretará maior perda de foco e ampliará rombo previdenciário

Ao ser criado, em 2008, o programa de Microempreendedor Individual (MEI) visava a formalizar a vasta mão de obra de baixa renda sem acesso a aposentadoria nem benefícios previdenciários — profissionais como costureiras, vendedores de rua, pequenos artesãos, pedreiros etc. Desde então, o MEI perdeu o foco, tendo sido ampliado para todo tipo de atividade. A proposta de aumentar o limite do programa negociada entre governo e Congresso pode representar um alívio para quem passar a usufruir as vantagens do programa, mas acentua essa tendência, além de contribuir para ampliar o rombo previdenciário futuro. No curto prazo, ela também acarreta perda de arrecadação, num momento em que ampliá-la é crucial para cumprir as metas ambiciosas do novo arcabouço fiscal.

A ideia do governo é aumentar o limite de faturamento anual do MEI dos atuais R$ 81 mil para perto de R$ 145 mil. A previsão é que isso traga mais pelo menos 470 mil empresas para o cadastro de MEIs, hoje em quase 15,5 milhões. A nova faixa contribuiria com cerca de 1,5% além dos 5% adotados hoje para quem fatura até R$ 81 mil. Mas nem todos os cadastrados contribuem. “Apenas cerca de 38% dos trabalhadores registrados como MEI contribuem para a Previdência”, estima artigo dos economistas Fernando Veloso, Fernando de Holanda Barbosa Filho e Paulo Peruchetti, do Ibre-FGV. Só um de cada cinco trabalhadores por conta própria, dizem, contribui como MEI.

Ao analisar características desses profissionais, os pesquisadores concluíram que MEIs têm mais escolaridade que empregados formais (12,2 anos em média, ante 11,8). Três em cada quatro têm ensino médio completo, e mais de 31% têm diploma universitário, proporção superior à dos que têm carteira assinada. Isso sugere que, em vez de servir apenas para formalizar mão de obra de baixa renda, o programa se tornou um modo de aliviar a contribuição previdenciária dos mais qualificados. O aumento do limite de faturamento tende a acentuar a tendência.

A questão é crítica, pois o programa representa um subsídio generoso da sociedade. Hoje MEIs são em torno de um a cada dez contribuintes à Previdência, embora arquem com menos de 1% da receita previdenciária. Pelo cálculo dos pesquisadores, levando em conta uma taxa de juro real entre 4% e 5% nas próximas décadas, o subsídio da Previdência ao MEI representará mais de 80% do que ele receberá depois que se aposentar. Na conta dos economistas Rogério Nagamine Costanzi e Otávio Sidone, anterior ao aumento proposto pelo governo, o MEI representa um déficit atuarial de R$ 436 bilhões para a Previdência (ou R$ 781 bilhões supondo uma política de reajuste real do salário mínimo, que aumenta o benefício previdenciário).

Em estudo no livro “Para não esquecer”, sobre políticas públicas que deram errado e deveriam ser aperfeiçoadas, Nagamine e Sidone sugerem restringir as inscrições no MEI a trabalhadores comprovadamente informais, pobres, com baixa capacidade de contribuir — o contrário da intenção do governo. A não ser assim, Executivo e Legislativo precisam apontar caminhos para evitar rombos futuros. Como diz o estudo, “bondades de curto prazo são muitas vezes escolhidas por criarem benefícios imediatos e concentrados, ainda que acarretem elevados custos difusos para toda a sociedade no futuro”.

Calote da Venezuela revela risco de usar ideologia para conceder crédito

O Globo

Regime do ditador Nicolás Maduro continua devendo US$ 1,2 bilhão ao Brasil, sem contar multa e juros

Quando ideologia e afinidades pessoais se tornam decisivas na relação entre países, aumenta o risco de operações comerciais e financeiras darem errado. O exemplo mais eloquente é a Venezuela do ditador Nicolás Maduro. Em maio, ele fez uma viagem a Brasília considerada “histórica” pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas continua dando um calote no Brasil de pelo menos US$ 1,2 bilhão, sem contar multas e juros pelo atraso.

Ainda em maio, o governo brasileiro criou um grupo de trabalho para somar todos os atrasados e chegar ao total da dívida. Depois seria feita a programação de pagamentos para apresentar à Venezuela, dando início à renegociação propriamente dita. A abertura da “mesa técnica” estava prevista para 20 de julho. O Brasil queria começar a tratar do calote em agosto, mas a Venezuela pediu um tempo. A data da reunião ficou para ser remarcada. Nada garante que não haverá novos adiamentos, contra os quais, a depender de Lula, dificilmente o Brasil reagirá da forma incisiva como deveria.

Estão envolvidos na agenda os ministérios da Fazenda, das Relações Exteriores, do Desenvolvimento e o BNDES, usado nos governos anteriores do PT para financiar exportadores brasileiros de serviços para a Venezuela (construção de portos, metrôs, aeroportos etc.). O banco também é o principal financiador do Fundo de Garantia à Exportação (FGE), que ressarce empresas brasileiras em caso de atraso nos pagamentos. Funciona como uma seguradora, por isso é parte interessada em que as dívidas sejam pagas.

As mesuras ideológicas que Lula fez à Venezuela e a outras “ditaduras amigas” custaram caro ao Estado brasileiro. Um calote de Cuba de US$ 316,3 milhões já foi bancado pelo FGE. Ao todo, o BNDES concedeu US$ 641 milhões de financiamento ao grupo Odebrecht para construir o Porto de Mariel, em atividade já há algum tempo. Cuba se beneficia do aumento das transações comerciais permitido pelo novo terminal, mas não paga ao Brasil.

Outro custo indireto criado pela simpatia ideológica de Lula com a Venezuela é a refinaria Abreu e Lima, construída pela Petrobras em Pernambuco, a partir de uma conversa entre Lula e Hugo Chávez, antecessor de Maduro. Chávez se comprometera a financiar parte do empreendimento, mas nunca cumpriu a promessa. Sobrou para a estatal brasileira executar um projeto que custou em torno de dez vezes o previsto.

Sempre que decisões técnicas são substituídas por interesses políticos ou ideológicos surge uma conta que, cedo ou tarde, é cobrada do contribuinte na forma da falta de hospitais, de escolas, de sistemas de transporte eficientes e de outros serviços públicos que deixam de ser prestados. Tudo porque dinheiro do contribuinte é usado para compensar os efeitos desses calotes.

Reforma tributária redistribui receitas e favorece igualdade

Valor Econômico

Se não houver mudanças substanciais, 60% dos Estados e 82% dos municípios sairão ganhando receita

Apesar do barulho de alguns governadores e prefeitos contra a reforma tributária, estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê que a maior parte dos Estados e das cidades vai ganhar receita com a proposta de mudança de regras de cobrança dos impostos sobre o consumo já aprovada pela Câmara dos Deputados. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 agora está no Senado e, se não houver mudanças substanciais, 60% dos Estados e 82% dos municípios sairão ganhando receita. O principal motivo para o ganho de arrecadação em 78% de todas as unidades da federação é a aplicação da cobrança do tributo sobre o consumo no destino da transação e não mais na origem, como ocorre atualmente.

O Imposto sobre Circulação de Bens e Mercadorias (ICMS), de competência estadual, e o Imposto Sobre Serviços (ISS), municipal, fundidos em um único tributo, o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), será cobrado no local de consumo. Assim, mesmo com pouca ou nenhuma atividade econômica relevante, cidades e Estados vão arrecadar mais em função do consumo de seus habitantes. Já aquelas que abrigam grandes empreendimentos, mas têm relativamente menos habitantes, tendem a perder arrecadação.

O critério populacional para a distribuição dos recursos foi fortalecido por decisão da Câmara dos Deputados, que elevou seu peso entre os fatores de repasse do dinheiro arrecadado, de 60% para 85%. Outros 10% serão distribuídos com base no desempenho da educação de cada cidade, e os 5% restantes serão divididos igualmente entre todos. Essa mudança teve um efeito redistributivo importante, explicou Sérgio Gobetti, autor do estudo ao lado de Priscila Kaiser Monteiro. É inegável também o impacto na redução da desigualdade.

Não só os pequenos municípios serão beneficiados, mas também os mais pobres. No grupo de cidades ganhadoras, 98% têm PIB per capita abaixo da média nacional. Em relação à proposta original da PEC 45, a população beneficiada pelas mudanças subiu de 61% para 67%.

O estudo foi feito com base nos dados do ano passado, quando Estados e municípios arrecadaram R$ 801 bilhões em ICMS e ISS. Com o deslocamento do ponto de cobrança do tributo, R$ 54 bilhões passam a ser arrecadados no local de consumo, favorecendo unidades da federação que concentram 70% da população. No caso do imposto municipal, o estudo calcula que R$ 36 bilhões mudarão de mãos com a substituição do ISS na origem por um IBS no destino, sendo que dois terços desses recursos provêm de 45 cidades “muito ricas” de São Paulo, grandes e pequenas, e são redistribuídos para os demais municípios paulistas e o restante do país. O Estado de São Paulo como um todo perderia R$ 35 bilhões em arrecadação, prevê o estudo do Ipea.

Além de São Paulo, estão na lista dos Estados “perdedores” Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Roraima. Goiás, cujo governador Ronaldo Caiado é um dos maiores críticos da reforma, teria um ligeiro ganho, estimado pelo estudo em R$ 808 milhões. Além disso, a reforma deve reduzir bastante a desigualdade dentro do Estado: a diferença de receita per capita entre a cidade mais rica do Estado (Alto Horizonte) e a mais pobre (Santo Antônio do Descoberto) chega a 127 vezes. Com a reforma, cairá para quatro vezes. Outro exemplo de diminuição da desigualdade ocorre em São Paulo, onde a diferença de arrecadação por habitante entre Paulínia e Francisco Morato, o município mais rico e o mais pobre de São Paulo por esse critério, respectivamente, vai passar de 37,3 vezes para 6,3 vezes.

Gobetti pondera, no entanto, que a PEC prevê uma transição gradual, ao longo de 50 anos, período em que as regras irão mudando, dando tempo para a adaptação dos administradores. Paulatinamente, a distribuição da receita do IBS irá sendo alterada, com parcela crescente direcionada pelo princípio de destino e, no caso dos municípios, levando em conta a população. Em cinco anos, 90% das receitas do IBS ainda estarão sendo distribuídas pela regra antiga, e 10%, segundo a nova. No meio da transição, após 25 anos, metade das receitas ainda estará sendo distribuída de acordo com a regra atual.

Além disso, a PEC prevê a criação de um fundo, constituído com 3% das receitas de IBS, que funcionará como seguro-receita, e será repartido entre Estados e municípios com maior redução relativa de arrecadação, cuja receita per capita não exceda a três vezes a média nacional. Ou seja, um fundo que beneficia os entes cuja fatia no bolo estiver caindo em função das mudanças, excetuando o caso de municípios desproporcionalmente ricos, que terão direito de compensação, mas só até o teto de três vezes a receita média per capita.

Há ainda o efeito do esperado crescimento econômico produzido pela reforma tributária. Apesar de dado como certo, esse impacto é difícil de mensurar. De toda forma vai contribuir para mitigar o impacto da perda de receita onde ocorrer. Até mesmo o Estado de São Paulo chegará ganhando quando a reforma tributária entrar totalmente em vigor, prevê o estudo do Ipea. Para além dos resultados econômicos, os números também ressaltam as consequências positivas da redistribuição da receita de arrecadação com benefício para a população e redução da desigualdade.

Aflições paulistanas

Folha de S. Paulo

Reduzir a percepção de violência exige mais que combater o crime

Complexa e multifatorial, a percepção de insegurança em uma sociedade combina experiências pessoais e de seu círculo próximo; estereótipos e preconceitos sobre regiões e classes sociais; a amplitude do noticiário sobre violência na mídia; e, por óbvio, a constatação matemática dos atos criminosos.

Esse amálgama difuso está no cerne da pesquisa Datafolha que apontou a violência como a maior preocupação dos paulistanos.

Para 22% deles, a segurança pública é o maior problema da capital. São 10 pontos percentuais a mais em relação ao último levantamento, de 2020, e 6 pontos à frente da saúde —tema que liderou as aflições dos moradores nos últimos 11 anos. Vêm na sequência transporte coletivo (8%), educação (6%) e buracos na rua (6%). A margem de erro é de três pontos percentuais.

Estatísticas recentes da violência, embora não peremptórios, apontam possíveis explicações.

Dados do governo paulista sobre homicídios dolosos (alta de 2,3%) e roubos (queda de 2,4%) na capital mostram certa estabilidade entre o primeiro semestre deste ano e o de 2022. Já os latrocínios tiveram redução expressiva de 26,7%. Furtos (alta de 6,9%) e estupros (26%) são contraponto relevante —registre-se que este último delito é sempre passível de subnotificações.

Se as estatísticas são inconclusivas, o paulistano detecta a olhos vistos a multiplicação de usuários de drogas na cracolândia e a consequente dispersão geográfica após intervenções, até agora tumultuadas, do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Não à toa, o receio com a violência é ainda maior na região central, marcada nos últimos meses por tumultos, saques, protestos e recordes de furtos e roubos —notadamente de telefones celulares, prática disseminada por quadrilhas especializadas e que afeta, inclusive, as camadas mais pobres.

Nesse contexto, também não surpreende que 68% considerem ineficientes as medidas da prefeitura e do governo estadual para ao menos minimizar o descontrole do crack e suas consequências. Número similar (73%) vê como ruim ou péssimo o trabalho de Nunes no acolhimento dos moradores de rua.

Percepção e realidade podem se confundir, mas o tema da violência pode ser destaque nas eleições municipais de 2024 —ainda que policiamento ostensivo e investigação sejam de alçada estadual.

Há muito o que a prefeitura possa fazer. A insuspeita desordem urbana, como má zeladoria, iluminação pública precária e proliferação da população de rua, reduz o ir e vir e amplia a sensação de medo.

Para os que almejam comandar a capital a partir de 2025, resta observar que os paulistanos seguem resilientes —9 em 10 estão satisfeitos por morar na cidade—, mas apreensivos em relação a sua integridade física e de seus familiares.

Estudo desperdiçado

Folha de S. Paulo

Queda de renda dos mais escolarizados é efeito do declínio econômico em dez anos

Há maneiras diversas de descrever e mensurar o processo de empobrecimento vivido pelo Brasil ao longo dos últimos dez anos, bem como suas consequências.

O modo mais óbvio é observar a variação do Produto Interno Bruto, de míseros 5,3% de 2013 até 2022 —no mesmo período, a economia global teve expansão de 28,6%. A média anual brasileira, de 0,52%, nem mesmo chegou a acompanhar o aumento da população.

Não por acaso, a renda per capita declinou ao longo do decênio, de R$ 47.457,80 estimados em 2012 para R$ 46.154,56 no ano passado. Os valores deverão mudar com novos dados demográficos apurados pelo censo de 2022, mas o desempenho trágico não será apagado.

Ele ganha contornos mais palpáveis em trabalho recém-concluído pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), com base em pesquisas amostrais do IBGE,

Constatam-se perdas nos rendimentos do trabalho notavelmente concentradas entre os mais escolarizados. Em cifras corrigidas pela inflação, a renda média dos trabalhadores com 16 ou mais anos de estudo caiu de R$ 7.211 mensais, no segundo trimestre de 2012, para R$ 6.008 no período correspondente deste ano; com 12 a 15 anos, a queda foi de R$ 2.630 para R$ 2.336.

Houve ao menos ganhos nas faixas de menor escolaridade, o que contribui para a redução da desigualdade. Mas os dados evidenciam a escassa criação de vagas mais bem remuneradas para os mais qualificados, entre os quais se elevou a informalidade. Trata-se de mau sinal para a produtividade.

O decênio observado começa com o declínio do boom de commodities, que até ali impulsionara o crescimento do PIB nacional. O governo Dilma Rousseff (PT) tentava estimular a economia à base de gasto público e intervencionismo, mas só conseguiu produzir a brutal recessão de 2014-16.

Desde então vivemos às voltas com tentativas acidentadas de reequilibrar o Orçamento do governo. Depois do impacto da pandemia, ao menos, a atividade vem se expandido em ritmo mais acelerado.

As melhores esperanças agora residem em uma reforma tributária que encoraje investimentos, nas concessões ao setor privado em infraestrutura e num ajuste fiscal que favoreça a queda dos juros.

Uma verdadeira reforma administrativa

O Estado de S. Paulo

Como disse Lira, governo Lula precisa reconhecer a necessidade de uma reforma administrativa, mas tratar o tema apenas sob o viés fiscal e sem enfrentar as reais distorções é um erro

A promessa do governo Lula de zerar o déficit primário em 2024 trouxe novamente à luz o problema do financiamento dos gastos públicos. Ao enviar a proposta de Orçamento ao Legislativo na semana passada, o Executivo apresentou uma lista de medidas para arrecadar R$ 168 bilhões, incluindo propostas que ainda dependem da aprovação do Congresso para entrar em vigor.

A essa pressão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, respondeu com uma cobrança. O deputado passou a exigir publicamente do governo um esforço pela aprovação da reforma administrativa que tramita na Casa – a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020. De forma coordenada, 23 frentes parlamentares do Congresso manifestaram apoio à proposta, entre elas as que representam o comércio, serviços e agronegócio.

É raro que se diga, mas tanto o governo quanto a Câmara têm alguma dose de razão. Diante de um déficit estrutural no Orçamento, é evidente que o Executivo federal precisa buscar novas receitas. Da mesma forma, cabe ao Congresso aprovar o Orçamento, e todos sabem que os servidores representam boa parte das despesas da União.

Problemas complexos, no entanto, requerem soluções complexas, bem articuladas. Reportagens que expõem os privilégios do funcionalismo escandalizam trabalhadores com rendimentos estagnados há anos e corroídos pela inflação. Aos altos salários acumulados pelos servidores públicos, somam-se muitas vezes penduricalhos, bons planos de saúde, aposentadorias generosas e a garantia da estabilidade.

Há, no entanto, certa incompreensão sobre as carreiras de Estado. As enormes desigualdades da sociedade brasileira refletem-se, também, no setor público. A elite do funcionalismo, que consegue driblar o teto salarial de R$ 41,6 mil, representa um universo de cerca de 25,3 mil pessoas, segundo o Centro de Liderança Pública (CLP).

Uma verdadeira reforma administrativa, por óbvio, deveria enfrentar essas regalias. Mas o fato é que a PEC 32/2020 não resvala nesses aspectos. Ela trata apenas das carreiras do Executivo, enquanto os salários mais elevados são pagos a juízes, procuradores e promotores. Já o projeto de lei que combate os supersalários, já aprovado na Câmara, está há dois anos parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, à espera de um relator.

Mais de 70% dos servidores recebem até R$ 5 mil mensais, segundo o CLP. E são eles os que estão na linha de frente do serviço público. A imensa maioria deles está nos Estados e municípios, onde são responsáveis pela prestação de serviços de saúde, educação e segurança. Juntos, eles representam um contingente de quase 7 milhões de pessoas. Outros 4 milhões ganham ainda menos, sobretudo professores temporários na educação municipal e estadual.

Se tratar todo o funcionalismo da mesma forma não é o melhor caminho para enfrentar a questão, ignorar as deficiências que marcam a gestão pública tampouco é aceitável. O Estado pode e deve entregar mais e melhor do que tem entregado à sociedade, mas cumprir esse objetivo sem recompor o quadro técnico de servidores, desmantelado após quatro anos de bolsonarismo, é virtualmente impossível. Autorizar concursos de forma desenfreada, prática de administrações petistas anteriores, tampouco é desejável.

Algumas premissas já contam com algum consenso. Uma reforma administrativa deve, necessariamente, reduzir desigualdades e rever parte dessas benesses, especialmente os altos salários pagos já no início de algumas carreiras. Nem todas as funções precisam ter estabilidade. É urgente criar mecanismos para avaliar o desempenho dos servidores e garantir flexibilidade para remanejamento entre os órgãos e ministérios.

O esforço pela melhoria da gestão do Estado deve ser contínuo, não errático. Como disse Arthur Lira, o governo Lula precisa reconhecer essa necessidade. Não há dúvida de que o País necessita de uma reforma administrativa, mas tratá-la unicamente sob o viés fiscal e sem encarar as verdadeiras distorções do setor público é um erro que não precisa ser repetido.

Os desafios do emprego

O Estado de S. Paulo

Dados do IBGE revelam menor taxa de desemprego em 9 anos, mas crescimento da ocupação é sustentado pela informalidade. Precarização do mercado de trabalho inspira cuidado

A taxa de desemprego no País, que há um ano se mantém abaixo de dois dígitos, de acordo com o monitoramento da média móvel trimestral pelo IBGE, parece confirmar o avanço da economia revelado pela instituição na semana passada. Os dados revelaram que o índice de 7,9% registrado no trimestre maio-junho-julho é o menor para trimestres terminados em julho desde 2014. E a tendência continua a ser de queda.

Diante das explicações dos técnicos do IBGE de que o desemprego não caiu, como em ocasiões recentes, pelo efeito de cálculo de menos pessoas estarem procurando trabalho, mas sim pelo aumento real da ocupação, não há como contestar o sinal positivo, mesmo que a desocupação ainda esteja em patamar muito alto. Afinal, o Brasil, que chegou a contabilizar mais de 14 milhões de desempregados em 2021, consequência direta da pandemia, agora conta menos 5,5 milhões de pessoas neste saldo.

Os 8,5 milhões de hoje formam o menor contingente de desempregados desde 2015. Mas a evolução está centrada na criação de postos de trabalho sem carteira assinada. Ainda não se pode cravar se esta é mais uma onda de informalidade da economia ou uma mudança de padrão que está sendo formada a partir das novas relações de trabalho pós-pandemia e do avanço tecnológico que surgiu a reboque do isolamento social do período mais crítico.

Celso Ming, no Estadão, chamou a atenção para a necessidade de incorporar às análises do mercado de trabalho o impacto da revolução provocada pela tecnologia da informação no mundo todo. E citou o desempenho insatisfatório da geração de empregos em indicadores da Confederação Nacional da Indústria e da Federação do Comércio do Estado de São Paulo como exemplos do descasamento dos resultados do emprego formal e dados gerais captados pelo IBGE.

Modelos de home office, trabalho híbrido, empreendimentos digitais, prestação de serviços online, entre outras atividades desenvolvidas a distância, não foram exatamente novidades surgidas na pandemia. Mas sua potencialização no período mais crítico da doença, que levou à adoção de novas dinâmicas sociais, promoveu uma transformação inédita no mercado de trabalho.

Diante da possibilidade de uma alteração duradoura no panorama do emprego, torna-se premente examinar a fundo o que está ocorrendo com vistas a melhorar sua configuração. Frear a precarização do mercado de trabalho é tarefa inadiável e talvez uma das principais metas, diante do aumento do emprego sem a proteção dos direitos trabalhistas. Ampliar a capacitação profissional, principalmente para a população jovem, é um caminho para vagas de mais qualidade.

A evolução do emprego é uma notícia sempre positiva. Mas não se pode ignorar os sinais que indicam a manutenção de problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro. A melhora não teve trajetória constante nos últimos trimestres, embora o índice de desemprego tenha permanecido em um dígito. A taxa de participação no mercado, que compara o total de ocupados e desocupados e é um indicador importante usado por economistas, também não voltou aos níveis pré-pandemia. Mas o motivo principal de alerta é a baixa qualidade que vem sendo constatada no emprego.

Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE mostram que a informalidade representa 39,1% do mercado de trabalho. Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indica que 93% do emprego informal no mundo está em países emergentes e em desenvolvimento, o que comprova o que a prática já demonstra: a educação é o principal fator a afetar o nível de informalidade.

Políticas públicas para reduzir a taxa de desemprego devem levar em conta o momento atual de transição do mercado de trabalho, cuja face mais visível são as novas relações em vigor nos aplicativos digitais. O setor de informação e comunicação é um dos três destaques apontados pelo IBGE para o crescimento recente da ocupação. Os outros dois são serviços domésticos e administração pública. Mais uma vez se comprova que qualificar é fundamental.

Cedo demais para soltar rojão

O Estado de S. Paulo

Lula usa alta de 0,9% do PIB para levantar bandeira de incentivo a mais consumo. País precisa de investimento

O bom e surpreendente avanço de 0,9% da economia no segundo trimestre, quando as apostas giravam em torno de 0,3%, puxou para cima as projeções para o desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. Como revela o Relatório Focus – compilação das expectativas do mercado financeiro elaborada pelo Banco Central –, o crescimento do PIB estimado para 2023 passou para 2,56%. No boletim anterior estava em 2,31%; e há um mês, em 2,26%. Ótima notícia.

Mas a redução do crescimento previsto para 2024, de 1,33% para 1,32%, indica que ainda é cedo para soltar rojão. Por isso, o discurso político do presidente Lula incentivando a aceleração do crédito como forma de distribuir o crescimento do PIB soa não apenas como populismo de ocasião, mas extrapola o próprio cálculo do IBGE sobre o comportamento da economia. Um discurso, aliás, encampado por auxiliares diretos, como o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que chegou a profetizar alta maior do PIB no ano que vem, como efeito do PAC.

Mais cautela e menos elucubração permitiriam perseguir o crescimento sustentável a longo prazo. É disso que a economia brasileira precisa, e não o desempenho errático constatado há anos. Crescimento puxado pelo consumo, como foi o do segundo trimestre, sempre traz um grande risco embutido. Pelo lado do governo, denota que as despesas públicas continuam aumentando. Num momento em que o governo busca zerar o déficit fiscal em 2024 – meta de extrema dificuldade –, o sinal é preocupante.

Pelo lado das famílias, a alta do consumo é consequência direta de fatores como a alta do salário mínimo, novo valor do Bolsa Família, aumento do nível de ocupação e renegociação de dívidas. Os dois primeiros representam, também, mais gastos públicos. Os dois últimos são um bom sinal, mas uma alta do emprego não baseada no mercado formal tem sempre suas fragilidades. E estimular o consumo de uma população ainda excessivamente endividada – apesar da contribuição positiva da renegociação – também eleva incertezas futuras.

Bons resultados devem ser comemorados, é claro. Qualquer governo explora, com razão, dados positivos. Mas um comportamento desalinhado do contexto real é atitude inadequada para qualquer governante. A dificuldade extrema de prever o rumo dos indicadores econômicos, mesmo para especialistas acostumados ao confuso cenário brasileiro, é indício de que o caminho está sendo traçado pelo governo quase ao acaso, a reboque das circunstâncias.

Os resultados do primeiro e do segundo trimestres foram positivos. Mas, a bem da verdade, desde 2020 o comportamento do PIB tem surpreendido positivamente, ora pelo boom do agronegócio, ora pelo consumo maior do que o esperado. Enquanto o investimento, este sim um indicador seguro a longo prazo, diminui de maneira perigosa.

A taxa de investimento, que no segundo trimestre de 2022 estava em 18,4%, caiu mais um pouco, para 17,2%. Com isso, o País distancia-se ainda mais da taxa de 25% necessária para garantir avanço econômico real, contínuo e fincado em bases sustentáveis.

 

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