Correio Braziliense
O paradoxo da brasilidade é que para
eliminar a brutal desigualdade social é preciso oferecer educação com a mesma
qualidade para todos: implantar em todo o país um sistema único público
Os gregos chamavam de paideia a educação que seus cidadãos recebiam desde a infância para formar a mente de seu povo. A paideia brasileira forma nossas mentes para se acostumarem e conviver com a desigualdade social e para não perceberem que ela decorre da inequidade como a qualidade da escola é distribuída, conforme a classe social do brasileiro. O paradoxo da brasilidade é que para eliminar a brutal desigualdade social é preciso oferecer educação com a mesma qualidade para todos: implantar em todo o país um sistema único público. Para tanto, será necessário mudar o sentimento geral de aceitação da desigualdade que dribla as leis que tentam superá-la.
Quando, no século 19, o avanço técnico
forçou a política a aceitar a Lei do Ventre Livre, a cultura entranhada foi
mais forte do que a lei: negou escola aos recém nascidos. O filho da escrava
foi solto, mas não libertado, por não dispor de mapa que lhe permitisse
escolher um destino e conhecer o caminho. A falta da escola impôs uma algema
invisível que driblou a lei. Anos depois, a Lei Áurea soltou os escravos, mas
outra vez, negou-se escola para eles. Ficaram soltos, não livres. Ficou ilegal
vendê-los ou compra-los. Mas, por falta de escolaridade, até hoje seus
descendentes sociais se oferecem à escravidão moderna nas esquinas das cidades.
Foi preciso esperar até o século 21 para a
política assegurar o direito à matrícula para todos, mas em escolas com
qualidade diferente, implantando um sistema com “escolas senzala” e “escolas
casa grande”. Porque matrícula não significa frequência todos os dias, nem
assistência ao longo do dia; não representa permanência até o final da educação
de base, o que não é sinônimo de aprendizado para formar o aluno no
entendimento do mundo contemporâneo, dando-lhe o mapa necessário para facilitar
sua busca de felicidade pessoal e para construir um país melhor e mais belo. Da
mesma maneira que “soltar” não é “libertar”, “matricular” não é “ensinar”, e
ensinar não é aprender. O resultado é que quase todos já se matriculam, mas
poucos são alfabetizados plenamente para a contemporaneidade.
A lei da Abolição foi corrompida pela
última trincheira da escravidão: a desigualdade da educação conforme a renda e
o endereço da criança. Essa realidade social é aceita com naturalidade,
inclusive pelos políticos progressistas. Até hoje, os descendentes sociais dos
escravos levam algemas sociais inivisíveis, e os militantes de esquerda usam
algemas ideológicas invisíveis, vindas de um mundo passado e de teorias
importadas.
As forças de esquerda defendem distribuição
de terra e aumento de salários, mas não defendem para o filho do trabalhador
escola igual à escola do filho do patrão. Os movimentos negros defendem cotas
para os que concluíram o ensino médio ingressarem no ensino superior, mas não
lutam pela erradicação do analfabetismo, nem pela igualdade na qualidade da
educação de base, independentemente da renda, da raça e do endereço do aluno.
Promovem alforrias para alguns, não a abolição para todos.
O pensamento progressista brasileiro
acredita que é preciso igualdade social para assegurar educação de qualidade
para todos, e não o contrário: a igualdade na qualidade educacional é uma
condição preliminar para a quebra da desigualdade social. Defende a
distribuição de renda para melhorar educação, mas se recusa a entender que a
educação de qualidade para todos é o caminho para distribuir renda: não defende
que o Brasil implante um sistema nacional único público de educação de base sem
desigualdade na qualidade. Nossa esquerda foi formada na paideia brasileira, e
seus lideres e famílias são beneficiários da desigualdade educacional. Por isso
defendem estatizar bancos e indústrias mas aceitam a privatização do ensino.
Não defendem fazer público todo sistema educacional com a mesma qualidade.
No tempo da escravidão, a negação de escola
era indecente, agora ela é também estúpida, obscena na moral e obtusa na
lógica. Porque além de ser a ferramenta para quebrar a desigualdade, é também o
vetor da eficiência, da inventividade, da competitividade que a economia
moderna requer, e o caminho para distribuir o resultado obtido. Mas isso não é
percebido pelo pensamento progressista aprisionado também por uma algema ideológica.
Este é o problema central do Brasil: a formação, ao longo de séculos, de uma
mente nacional educada naturalmente para aceitar a desigualdade social e para
não entender que a fábrica da iniquidade está na desigualdade escolar.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Um comentário:
Esse texto é de uma lucidez sem precedentes!
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