O Globo
A ameaça à estabilidade não deveria servir
de pretexto para uma recusa a apurações mais profundas
O Supremo Tribunal Federal (STF)
começa a julgar na semana que vem os primeiros réus da intentona golpista do 8
de Janeiro. É um evento traumático, que abalou nossa democracia, por isso
necessita de punição profilática dos envolvidos. Desde que o Brasil se viu sob
a ameaça autoritária do bolsonarismo, inclusive, e sobretudo, durante o
processo eleitoral e as primeiras semanas do novo governo, a recuperação da
normalidade virou discurso prioritário das ditas instituições nacionais.
É justo e obrigatório. Mas a ameaça à estabilidade não deveria servir de pretexto para uma recusa a apurações mais profundas das responsabilidades sobre as próprias investidas antidemocráticas, num paradoxo apenas aparente.
Desde o fim da monarquia, as Forças
Armadas têm sido uma sombra sobre o poder civil democrático no
Brasil, quando não executoras de sua própria subversão. O período bolsonarista
foi notadamente o ápice nas últimas quatro décadas. Se é juridicamente
descabida, e mesmo logicamente injusta, a investigação de “pessoas jurídicas”,
será saudável para a democracia, e também para os militares, que a
responsabilidade de todos seja exaurida. A proteção, com consequente promoção,
de acampamentos às portas dos QGs do Exército que se revelaram incubadoras do
golpismo aponta a necessidade de aprofundar as apurações para além dos fardados
que estiveram presencialmente no quebra-quebra da Praça dos Três Poderes.
O traçado em curso, contudo, parece
circunscrever o campo de visão à insurreição do dia 8. Nas notícias de bastidor
político, nos caminhos dos responsáveis (jurídicos, policiais e parlamentares)
pelas investigações e mesmo nos movimentos do governo Lula, sobressai a
ansiedade por um apaziguamento sintomático da relação de temor que o poder
civil tem perante as Forças Armadas. Tem-se uma estrutura de nação descalibrada
se os militares são vistos como permanente ameaça velada. O exame rigoroso e
sem revanchismo da participação de cada um não deve ser visto como perigo à
estabilidade. É, pelo contrário, oportunidade: fortalecerá tanto as bases da
democracia como a credibilidade das instituições militares.
O rechaço ao golpismo, por sua vez, também
não é motivo para um salvo-conduto do novo governo ante o escrutínio público,
em nome de evitar um recrudescimento do risco à democracia, argumento por vezes
sacado a cada crítica ao terceiro mandato de Lula. O contraste com Bolsonaro no
respeito aos valores democráticos tem de ser sempre reconhecido, mas não deve
afrouxar a exigência sobre suas decisões, sobretudo em matérias republicanas.
Majoritariamente, a esquerda passou a criticar a indicação do ministro Cristiano
Zanin (só) quando seus primeiros votos frustraram a expectativa
de ter um novo membro mais progressista no STF. Nomear o próprio advogado para
a Suprema Corte, porém, foi um gol contra de Lula num momento importante de
desequilíbrio institucional.
Os próximos meses incluirão, naturalmente,
erros e críticas ao presidente, porque é inescapável ao ato de governar
escolher caminhos em bifurcações onde não haverá soluções pacificadoras ou que
agradem a uma frente muito ampla. O casamento à moda antiga com o Centrão
poderá ser visto como a reedição de um modelo que propicia desvios de dinheiro
público, como um pragmatismo necessário ou como uma condescendência
desnecessária a uma chantagem parlamentar. Avalizar a exploração de áreas sob
proteção ambiental, como a Foz do Amazonas, tem tudo para
ser um dilema recorrente.
Retomar a normalidade é ainda uma chance de
elevar o sarrafo da atuação independente e republicana dos constitucionalmente
incumbidos de todos os Poderes, de punir os que atentaram contra eles e de
reposicionar sua relação com os militares. Superar o trauma golpista será
tarefa mais bem executada, em vários sentidos, se desacompanhada do
brasileiríssimo hábito da contemporização.
*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO
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