O Estado de S. Paulo
Toda a sociedade brasileira precisa estar imbuída de solidariedade e amor ao próximo para que se possa dar um teto a cada brasileiro
Neste estágio que estamos de agravamento de
alguns problemas sociais, é fundamental – eu diria ser uma questão de
humanidade – nós não nos deixarmos tomar pela inércia. Aliás, ela é um dos
fatores responsáveis pelo crescimento dessas mazelas que nos acompanham parece
que desde sempre. Quero me referir à inércia que nos levou e leva a conviver
com tragédias que atingem milhões de brasileiros, sem esboçarmos respostas
eficazes e efetivas.
Claro que quando falo nós eu me escuso pela generalização. Há na sociedade brasileira – e não são poucos – os que se sensibilizam e agem. Ações meritórias, porém insuficientes. A grande parcela dessa responsabilidade nós devemos atribuir ao Estado. Não nos isentemos, mas o chamemos às falas.
Entre as angustiantes questões sociais, eu
desejo destacar a da população que vive nas ruas. Má distribuição de renda,
perda e ausência de empregos, aluguéis elevados, baixa escolaridade, a terrível
pandemia de covid-19, entre outros fatores, expeliram milhões de pessoas das
suas moradias, e elas passaram a habitar as ruas. Essa população cresce e,
claro, tem o seu sofrimento aumentado pela crônica desigualdade social marcada
por carências já históricas nos campos da saúde, da habitação, da alimentação, do
ensino, do saneamento, do transporte e tantas outras.
É necessário realçar um aspecto que está
sendo olvidado. A falta de teto para os que estão nas ruas e as suas
consequências têm trazido graves constrangimentos e incômodos aos que residem
ou têm comércio ou emprego nas regiões habitadas pelos sem-teto – e que ainda
podem ter como seus vizinhos os viciados em crack. Esse segmento da sociedade
precisa também de atenção e de cuidados.
Os constrangimentos não se devem a nenhuma
conduta dos que foram impelidos à rua. Em regra, são pacíficos cidadãos:
idosos, crianças, mulheres grávidas, exercentes de atividades precárias e até
recémnascidos que foram jogados ao léu e tentam sobreviver. Basta que se diga
que a sua simples permanência nas ruas, por si só, já provoca incômodo,
desconforto, dificuldade ao livre trânsito e, mesmo, desperta um sofrimento
advindo do sofrimento alheio. Repita-se: não se pode responsabilizar nem os que
estão nas ruas nem, obviamente, os habitantes das imediações que estão
abrigados em suas casas.
A amarga situação dos moradores de rua, na
verdade, não pode ser descrita com fidelidade pelo mais arguto e atento
observador. Por outro lado, tenho a impressão de que boa parte dos integrantes
da sociedade não assimila o sofrimento dos milhares daqueles que são carentes
de habitação. Melhor dizendo, não se sensibiliza com essa tragédia. A falta do
sentimento de solidariedade, o egoísmo, as comodidades da sua própria vida e,
acima de tudo, a ausência de amor ao próximo criam uma barreira que os cega e
anestesia. Enquanto esse problema não os atinge, pouco se lhes dá se há ou não
habitação para todos. Estando os moradores de rua fora do seu campo de visão, o
que importa mesmo é a sua própria vida, e nada mais.
Essa calamidade humana igualmente pouco
atinge os órgãos gestores do Estado. E é claro que não, pois são seus membros,
em sua maioria, oriundos desta mesma parcela de insensíveis e despreocupados
com as questões sociais.
Um exemplo do descaso estatal nós encontramos
nas medidas que estão sendo adotadas na Praça da Sé e, creio, nas suas
imediações. Para dar uma resposta às incessantes cobranças de alguns setores da
sociedade e à mídia, todas as manhãs as barracas ali instaladas são retiradas
para que os locais passem por um processo de limpeza. Chamam essa operação de
zeladoria. Durante o dia a praça fica sem as barracas. À noite elas são
repostas. O grave problema foi reduzido a uma questão estética, plástica,
visual. Durante o dia, a praça está limpa; à noite... Perguntase: para onde vão
essas pessoas durante 12 horas do dia? Com certeza, perambulam pelas ruas.
Mulheres, grávidas, homens, velhos, crianças, doentes, viciados, todos os que
compõem este vergonhoso universo de desvalidos.
É preciso realçar a existência de inúmeros
segmentos e entidades privadas mobilizados para minimizar o angustiante
problema. Organizações voltadas para a defesa dos direitos humanos, como a
Comissão Arns, estão empreendendo estudos e ações concretas em busca de meios
que minimizem o sofrimento destes brasileiros que vivem nas ruas. Os que sofrem
com a situação devem tentar despertar os sentimentos de solidariedade, piedade
e compaixão daqueles que vivem sob um teto.
Do Estado se espera que coloque recursos a
serviço da redenção desta vergonhosa situação e construa casas, loque imóveis,
legalize a ocupação de propriedades abandonadas, enfim, que forneça um teto a
quem não o tem. Um bom exemplo de ação estatal foi dado pelo ministro Alexandre
de Moraes ao impor aos órgãos públicos que atuem em prol dos que habitam as
ruas, cumprindo legislação já existente.
Em verdade, toda a sociedade brasileira
precisa estar imbuída de solidariedade e amor ao próximo para que se possa dar
um teto a cada brasileiro.
*Advogado
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