terça-feira, 5 de setembro de 2023

Carlos Andreazza - O futuro a Deus pertence

O Globo

Gastos públicos aumentarão; com eles, a tentação dos puxadinhos

‘Recebi, pelo sistema oficial do governo, receitas suficientes para zerar o déficit fiscal, sejam já realizadas, sejam as que estão por vir. O futuro a Deus pertence. Nós não sabemos, diante do imponderável. Mas tem de ser algo imponderável.’

A declaração é de Simone Tebet, ministra do Planejamento. Que planeja com fé. Faz sentido, se olharmos para o Orçamento apresentado e considerarmos tudo quanto se lhe promete pendurar até dezembro. As “receitas que estão por vir” terão de ser divinais. Disso sabemos. Haja Deus na causa.

Imponderável, tendo a ver com peso, é aquilo que ora não se pode medir. Um elemento — de carga indefinível — que influenciará; que talvez condene.

Imponderável é o imprevisível. Certo sendo que o governo remeteu ao Congresso o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2024 sem que a LDO tenha sido votada e dependente de que nela se embuta a previsão de teto solar para despesas condicionadas de pelo menos R$ 30 bilhões — há quem as estime em R$ 40 bilhões. Sabe-se como começa. E como termina.

Do imponderável, a multiplicação dos mensuráveis. O imponderável como certeza. Gastos aumentarão; com eles, a tentação das exceções-puxadinhos. A carne é fraca. Assim vai desafiado, de largada, o arcabouço fiscal. Carcaça cujo voo curto talvez seja ainda menor.

É inquietante que a titular do Planejamento fale em Deus ao tratar do porvir do Orçamento. Não que esteja errada. Recorre ao Senhor para não se referir à proposta orçamentária como peça de ficção — com viés para o fantástico. Certo sendo — se o aumento das despesas é uma constante e se cortar gastos não compõe a fé — que a conta só fechará com baita crescimento de arrecadação.

O déficit zero, cartaz da nova regra fiscal, depende de dinheiros — muitos dinheiros — ainda em via de fabricação. Depende da boa vontade do Parlamento. Tudo mui ponderável. Não barato. O futuro a Lira pertencendo. Haja Deus.

Deus já deve estar de saco cheio — cantou Almir Guineto. Cantou Arthur Lira que “o Brasil não pode ter medo da reforma administrativa”. Tem cantado neste tom:

— Eu não estou pautando, mas há duas maneiras de equilibrar suas contas: ou aumenta a arrecadação ou diminui as suas despesas. A única maneira de controlar os seus gastos é com a reforma administrativa.

Claro que está pautando. Ou tentando. Tentando dirigir a agenda. A opção do governo é pelo equilíbrio via crescimento de receitas. Ele, sob pressão, contrapõe-se — solando a grupos específicos — como agente pela austeridade nas despesas. Agente, no mundo real, contrário à taxação das offshores. Sendo também falso que a reforma administrativa — necessária, mas que nunca integrou o conjunto de compromissos da chapa presidencial eleita — consista no único jeito de conter gastos.

O futuro a Lira pertence. E ele é perdulário com foco, zelador cioso dos tesouros do Parlamento.

Veja-se o capítulo das emendas parlamentares. A previsão está em R$ 37,6 bilhões. Montante exclusivamente posto para impositivas. Liristas e outros elmares, daqui até o fim do ano, pelejarão para ter ao menos mais R$ 20 bilhões — trabalharão ao menos pela manutenção daquela massa que era do orçamento secreto e que, disfarçando-se, foi redistribuída em 2023. Boa parte da qual despachada autoritariamente, à revelia de políticas públicas e à margem dos mecanismos de fiscalização.

De uma reforma das emendas alcolúmbricas os senhores do Congresso, pachecos incluídos, não querem cuidar.

Não desistirão dessa grana nem dos modos de dela dispor. E o Planalto sabe. Joga o jogo da carochinha. Não à toa tendo lançado para baixo — pela metade — o orçamento do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. É a casa do espólio do orçamento secreto — cujo baque orçamentário será compensado pela derrama de emendas nas codevasfs. Uma certeza — mais uma — que materializa o Orçamento como obra de ficção. Vai inchar. Sem vítimas, senão o povo.

(Já que falei em Codevasf e certeza, não terá sido por falta de alertas: por meio de Juscelino Filho, o ministro das Comunicações e dos Leilões Equestres, Lula levou o orçamento secreto para dentro do governo. Não o fez inconscientemente.)

Outro exemplo de por que o Orçamento para 2024 é exercício ficcional a desafiar o madeiramento do arcabouço fiscal? Considere-se o inscrito para o Fundo Eleitoral em ano de eleições municipais: R$ 939,4 milhões. Foram R$ 4,9 bilhões para 2022. E, não existindo regra fiscal — teto de gastos — para partidos políticos, jogue-se a inflação e saia seguro de que não serão menos do que R$ 5,5 bilhões. Vai inchar.

Sim, o governo baixou o valor de modo a que a ficção orçamentária forçasse o Congresso ao ônus de subir a régua. É certo que não haverá constrangimentos para fazê-lo. O Planalto simulará resistência. Etc. O futuro a Lira pertence. Deus nos proteja.

 

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