Recuo do Brasil no combate a corruptos tem efeito global
O Globo
OCDE manifesta preocupação com decisão do STF
que anulou provas do acordo de leniência com Odebrecht
A Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE)
publicou na semana passada um relatório específico sobre o combate à corrupção
no Brasil. Não é um relatório qualquer. Faz parte da avaliação do Grupo de
Trabalho Antissuborno (WGB, na sigla em inglês) sobre o cumprimento da
Convenção Antissuborno do organismo multilateral, a que o Brasil aderiu em
2000. Foi o quarto escrutínio a que o país se submeteu para avaliar a
implementação de mecanismos de prevenção e combate à corrupção, em especial
praticada por estrangeiros. A OCDE registrou preocupação com a impunidade e
constatou o retrocesso nos últimos anos, marcados pelo recuo dos processos
vinculados à Operação Lava-Jato.
Em dez anos, as autoridades investigaram, segundo o relatório, apenas 28 de 60 alegações de corrupção envolvendo estrangeiros. Oito de nove réus foram absolvidos por prescrição de crimes. Ninguém recebeu condenação final, necessária para cumprir pena. “O grupo de trabalho está preocupado que o Brasil não seja capaz de sustentar o nível de combate à corrupção atingido nos últimos anos”, diz o documento.
Uma das causas centrais dessa preocupação,
depreende-se da leitura, é a decisão monocrática do ministro Dias
Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF),
que anulou as provas obtidas por meio do acordo de leniência feito pelo
Ministério Público com a empreiteira Odebrecht, homologado em 2017. Mesmo
tomada depois de os avaliadores da OCDE deixarem o país, o WGB cita a decisão,
destacada como principal tema sobre o qual o Brasil terá de prestar
esclarecimentos na próxima rodada de avaliação, daqui a dois anos.
Além de anular as provas, Toffoli determinou
que Procuradoria-Geral da República, Tribunal de Contas da União, Conselho
Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público apurassem
responsabilidades de todos os que praticaram atos relacionados ao acordo.
Juristas preveem um “efeito dominó” com a suspensão de vários processos e
ressarcimento de multas impostas a cidadãos e empresas. O STF divulgou nota
afirmando que o acordo de leniência com a empreiteira continua “válido e
eficaz”. Disse que a anulação das provas já fora decretada e sancionada pela
Segunda Turma da Corte e que Toffoli apenas estendeu os efeitos, “tudo na forma
da reiterada jurisprudência da Corte”.
O relatório da OCDE manifesta preocupação com
várias outras deficiências jurídicas brasileiras que favorecem a corrupção.
Primeiro, os prazos de prescrição de crimes, considerados “inadequados para
coibir suborno”. Segundo, o arcabouço jurídico que cerca as delações premiadas,
tido como insuficiente para proteger delatores, em particular no setor privado.
Por fim, diz o documento, “o Brasil precisa enfrentar com vigor as questões de independência
que podem deter policiais e procuradores”. É necessário, segundo os autores,
evitar a “politização” da Procuradoria-Geral da República e a “interferência
indevida” na Polícia Federal e em outras agências de investigação.
O relatório é um revés inequívoco para o
desejo do Brasil de ser integrante pleno da organização que reúne os países
mais desenvolvidos do mundo. Deve, portanto, ser analisado pelas autoridades
com atenção. Elas precisam demonstrar que o desfecho da Lava-Jato não
significou que o Estado brasileiro tenha se tornado leniente no combate ao
desvio de dinheiro público.
Furto em arsenal do Exército para abastecer
tráfico não é caso isolado
O Globo
Fontes de armas do crime incluem empresas de
segurança e, desde Bolsonaro, os registrados como CAC
O desvio de 21 metralhadoras de grosso
calibre do arsenal do Exército em Barueri, na Região Metropolitana de São
Paulo, foi o maior furto de armas de um quartel desde março de 2009, quando
sete fuzis foram levados de um posto de sentinela de Caçapava, no Vale do
Paraíba, também em São Paulo. Na ocasião, a Polícia Civil recuperou o armamento
e prendeu suspeitos, entre eles um militar. Parece lógico que só é possível driblar
o sistema de segurança de um quartel com ajuda interna.
No caso de Barueri, o Exército já manteve
aquartelados no local 480 militares. Quando foi constatado o desaparecimento
das armas, na última terça-feira, eram 160. As investigações se concentram em
três, mas não surpreenderá se houver mais gente envolvida no transporte para
fora do arsenal de armamentos que pesam ao todo meia tonelada. Sobretudo se
levarmos em conta onde foram parar: 13 metralhadoras do lote furtado foram oferecidas
à maior facção criminosa do Rio de Janeiro por R$ 180 mil cada (ou R$ 2,3
milhões o lote), segundo noticiou o portal g1. Na quarta-feira, oito das 21
armas foram resgatadas na comunidade Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, numa
área controlada pelo tráfico, mas disputada com milicianos. Outras nove foram
encontradas num lamaçal em São Roque, perto de São Paulo.
O furto de armas para oferecer a traficantes
e milícias não é caso isolado. A mais importante fonte de abastecimento dos
paióis do crime são empresas de segurança privadas. Em 2019, uma delas,
instalada nas cercanias da favela Caixa d’Água, no Cangaíba, Zona Leste de São
Paulo, registrou queixa do furto de 41 revólveres e espingardas. A empresa
funcionava nas proximidades de uma comunidade de onde saíram chefes de uma
organização criminosa. Os policiais suspeitam que as armas foram simplesmente
repassadas ao crime.
A CPI sobre armas instalada em setembro de
2015 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) constatou que, entre
2005 e aquele ano, haviam sido desviadas quase 19 mil armas: 700 saíram de
quartéis da PM, 900 de delegacias da Polícia Civil e 17 mil de empresas de
segurança que atuavam no estado. Cerca de 30% do armamento dessas empresas foi
parar nas mãos do crime. Mesmo diante do descalabro, menos de 3% dos inquéritos
instaurados pelo Ministério Público foram concluídos.
A partir de 2019, as armas em circulação
aumentaram devido ao afrouxamento da regulação no governo Jair Bolsonaro, com
destaque para a distribuição sem critérios de registros de Colecionadores,
Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs). A aquisição de armas e munições de
forma legal para fornecer ao crime também se tornou um negócio. O novo governo
baixou um decreto em julho para restringir o acesso a armas e limitar os CACs.
É preciso que as novas normas sejam cumpridas, não fiquem apenas no papel. Por
fim, é necessário haver também controle efetivo dos arsenais das Forças
Armadas, das polícias e das empresas de segurança. Essa também é uma forma de
combate ao crime organizado.
Ações políticas aproximam Brasil dos Estados
Unidos
Valor Econômico
Se não alienar sua independência no Brics, o
Brasil pode construir parcerias econômicas com os EUA
A rivalidade entre Estados Unidos e China, as
duas maiores economias do mundo, provocará mudanças geopolíticas em escala
global. Há um ensaio de redirecionamento diplomático não só dos dois principais
adversários, mas também de potências médias, que tentam obter vantagens
mantendo relações de interesse político e econômico com os polos da disputa.
Depois de décadas sem uma política estratégica para a América Latina, os EUA
voltam a dar alguma importância para a região. O primeiro objetivo é seu
interesse nacional, que se complementa com o rápido avanço da China em toda a
região.
A primeira ação clara americana nessa nova
era de tensões foi a retirada provisória e parcial das sanções contra a
Venezuela, estabelecidas por Donald Trump em 2019. O alvo foi os limites
impostos para impedir a compra de petróleo e gás provenientes do país,
eliminando a proibição de empresas e traders de negociarem com Caracas. O veto
à compra de novos títulos da dívida da Venezuela permanece, mas abriu-se uma
fresta para que os títulos em mercado possam ser transacionados no mercado
secundário. Estima-se que a produção venezuelana saltará dos 800 mil barris
diários para um pouco mais de 1 milhão de barris, reduzindo um pouco o hiato de
oferta deixado pelo corte de 1 milhão de barris de Opep e Rússia.
A contrapartida exigida dos EUA é que haja
eleições democráticas e limpas em 2024, quando o ditador Nicolás Maduro, no
poder há 10 anos, concorrerá novamente. Os chavistas concordaram com um
recadastramento eleitoral - 7,3 milhões de pessoas deixaram o país, ou 25% da
população, cifra mencionada pelo Fundo Monetário Internacional -, com autorizar
“todos os candidatos presidenciais e partidos políticos, desde que cumpram os
requisitos estabelecidos na lei” e garantir a presença de observadores
internacionais. Depois do acordo, foram liberados 5 dos 273 presos políticos
encarcerados na Venezuela.
O Brasil já vinha participando das
negociações para que governo e oposição venezuelanas chegassem a um acordo
sobre as eleições. A ação americana, ao colocar interesses comerciais na mesa,
foi decisiva para o acordo que, no entanto, ainda precisará ser executado na
prática - os anteriores foram solenemente ignorados ou boicotados pelos
chavistas. O presidente Lula, que apoia Maduro, disse em entrevista,
referindo-se à Venezuela, que o “conceito de democracia é relativo” (29 de
junho), fazendo pouco caso das jogadas autoritárias do governo venezuelano para
manter os chavistas no poder e aniquilar qualquer chance de a oposição um dia
ocupar o Palácio de Miraflores. Mas é preciso reconhecer que seus esforços
diplomáticos começam a dar frutos. Objetivamente, o acerto com os EUA se alinha
com o interesse da diplomacia brasileira de obter concessões de Caracas por
meios pacíficos e pelo diálogo.
Há ainda certa convergência de interesses
entre os dois países diante da grave crise econômica argentina. O FMI empenhou sua
reputação ao fechar com o país o maior pacote de empréstimos da história da
instituição (US$ 56,3 bilhões no formato original), quando o conservador
Mauricio Macri governava. Os peronistas, críticos contumazes do Fundo,
renovaram em melhores condições o acordo, mas não cumpriram nenhuma das
principais metas.
No entanto, diante da aguda escassez de
dólares, as eleições de domingo poderiam ocorrer em meio ao caos se não
houvesse novos desembolsos do FMI. Nos bastidores, sabe-se que os EUA, que
detêm a maior porcentagem dos votos no FMI, intercederam favoravelmente aos
desembolsos antecipados, mesmo com o descumprimento flagrante do acordo. O
ministro Fernando Haddad intercedeu a favor do governo peronista junto à
secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, e Lula fez o mesmo junto ao
banco do Brics. O jogo pode ser outro, dependendo do resultado das eleições,
mas Washington tem em mente a dependência já avançada da Argentina em relação a
linhas de financiamento da China, que produziu um inusitado episódio - o
pagamento de débitos com o FMI pela Argentina com a utilização de yuans
resultantes da ampliação de uma linha de swap com Pequim.
Assim, por motivos diferentes, há confluência
de interesses entre o governo federal e os EUA, com direito a ironias da história.
O governo apoia chavistas e peronistas, que detestam os EUA, e Washington, que
despreza ambos, sai em seu socorro porque um inimigo maior surgiu no horizonte,
a China, hoje principal destino do petróleo venezuelano.
Essa aproximação defensiva entre Brasil e
EUA, ainda que por caminhos distintos, abre algum espaço para um acercamento
positivo. Ao privilegiar a estratégia de substituir as importações da China por
produção regional, de países confiáveis, os EUA abrem espaço para o Brasil e
demais nações do continente. Essa brecha ainda não está sendo aproveitada pelo
Brasil. Como membro do Brics, ao lado de Argentina, Rússia e China, o país
tenderia a ser hostil à política externa americana. Mas, se não alienar sua
independência, o Brasil pode construir parcerias econômicas com os EUA, cuja
diplomacia prefere muito mais a linguagem comercial que a ideológica.
Sonhos navais
Folha de S. Paulo
Lula traz de volta lobby por estaleiros, sem
plano contra desastres do passado
A volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez
reviverem planos de incentivo à indústria naval do país.
Há uma frente parlamentar de apoio a esse
setor; a Petrobras diz que vai novamente fazer encomendas em massa aos
estaleiros nacionais; o BNDES estuda meios de facilitar o reerguimento das
empresas; o Sinaval, entidade que as representa, mostra esperança de obter
ajuda do poder público.
Há, pois, um conjunto de pressões para fazer
com que o governo restabeleça uma política industrial para o setor —em crise desde
meados da década passada, como se pode constatar em uma série recente
de reportagens da Folha.
A dúvida maior é se há motivos bem estudados
para que o erário volte a destinar recursos à indústria naval. No mínimo, a
experiência assustadora dos programas de incentivo do regime militar e das
administrações petistas anteriores deveriam elevar às alturas as exigências
para retomar tal projeto.
Nessas tentativas passadas, houve subsídios
em excesso, sem proporcionar ganhos de produtividade ou capacidade de
competição internacional. Os programas terminaram, de resto, em meio a
escândalos de corrupção.
Políticas industriais podem, em tese, dar
resultado. No entanto a gama de instrumentos para levá-las a cabo, a
diversidade de situações geográficas, históricas e políticas e a variedade de
problemas a serem resolvidos é tão grande que não é possível aceitar como
virtuosas, a priori, ações desse tipo.
Decerto a indústria naval foi adiante também,
mas não apenas, devido à pesada intervenção estatal no Japão, na Coreia do Sul
e na China, países que se tornaram sucessivamente dominantes no setor. No
Brasil, a experiência dos estaleiros terminou em desastres.
Aqui, políticas de incentivo estatal
obtiveram sucessos em áreas como petróleo, agricultura, etanol e indústria
aeronáutica. No caso da agricultura, havia vantagens naturais e comparadas; no
dos aviões, não —vantagens foram desenvolvidas por meio de ensino e pesquisa.
O risco maior nessas iniciativas é não
atentar para questões básicas como escassez de capital ou mão de obra,
deficiência de infraestrutura ou distorções tributárias.
Outro perigo é o de falta de planejamento,
avaliação e meio seguro de encerrar o programa, em caso de fracasso. Os lobbies
dos favorecidos se entrincheiram a fim de viver de rendas do Estado.
Nada se ouve ainda sobre a possibilidade de a
indústria ser capaz de apresentar ganhos de produtividade ou sobre o custo
social de desenvolver capacidades produtivas. Inexiste diagnóstico público do
desafio a ser enfrentado. Por ora, há apenas lobby e fantasias
desenvolvimentistas.
Prioridades paulistas
Folha de S. Paulo
Remanejar verbas da educação para a saúde
exige compromisso com qualidade
É racional, embora politicamente delicado, o
projeto do governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas (Republicanos), que permite um remanejamento
de verbas entre as áreas de educação e saúde.
A proposta de emenda à Constituição estadual
recém-enviada pelo Executivo à Assembleia Legislativa reduz, de 30% para 25%
das principais receitas paulistas, a destinação mínima obrigatória de recursos
ao ensino público.
Conforme o texto da PEC, a diferença de 5%
poderá permanecer na educação ou ser direcionada à saúde —nesta, o estado
aplica a regra nacional que estabelece piso correspondente a 12% da arrecadação
de impostos e outras fontes.
A justificativa apresentada pelo Bandeirantes
se ampara num diagnóstico correto e conhecido: com a tendência demográfica de
queda das taxas de natalidade e de envelhecimento da população, crescerá a
longo prazo a necessidade de recursos para a atenção médica.
Ao mesmo tempo, seguirá caindo o número de
estudantes matriculados nos estabelecimentos de ensino básico, alvo mais
importante da rede estadual.
Por razoáveis que sejam os argumentos, sempre
suscitará críticas e
questionamentos o intento de cortar verbas para o ensino —ainda
que a proposta do governo Tarcísio siga o percentual definido pela Constituição
federal.
O cumprimento do piso mais elevado sempre foi
problemático em São Paulo. Historicamente, as administrações paulistas se
valeram do expediente de incluir o
pagamento de professores inativos (o que não traz ganhos à
educação) entre os gastos considerados.
O governo claramente busca mitigar o desgaste
político reforçando outro setor fundamental. O fato é que sua margem de manobra
orçamentária é estreita.
Como ocorre nos demais estados, educação,
saúde, segurança pública e aposentadorias respondem por grande parcela das
despesas paulistas —em 2022, foram quase 70% do total (dele excluídos
transferências a municípios, juros, precatórios e outros encargos).
É muito difícil, nessa situação, atender a
novas prioridades e necessidades, como deve ser o caso do aumento futuro de
despesas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Regras de gasto fixadas décadas atrás devem, sim, ser rediscutidas. No caso em tela, a proposta de Tarcísio precisa vir acompanhada de um compromisso firme com a melhora de qualidade do ensino.
A estranha ‘greve’ da Câmara e do Senado
O Estado de S. Paulo
Lira e Pacheco parecem mais preocupados com
seu futuro político do que em cumprir as prerrogativas de suas funções como
presidentes, que se encerram apenas em 2025
Lira e Pacheco parecem mais preocupados com
seu futuro político do que em cumprir as prerrogativas de suas funções.
No primeiro semestre do ano, o governo Lula
obteve vitórias importantes em votações no Congresso Nacional. A despeito de
não ter conseguido eleger uma base de apoio forte na Câmara e no Senado, o
Executivo conseguiu aprovar, antes mesmo de tomar posse, a emenda
constitucional da transição e recompor o Orçamento. No lugar do teto de gastos,
o Legislativo aprovou o novo arcabouço fiscal, prioridade do ministro da
Fazenda, Fernando Haddad. E depois de mais de 30 anos, até mesmo a reforma
tributária sobre consumo conseguiu avançar na Câmara e está prestes a ser
votada no Senado.
Mesmo quando o governo teve de admitir
derrotas, o diálogo entre os Poderes quase sempre prevaleceu. O Congresso
enfrentou o governo ao rejeitar uma proposta que desvirtuava o Marco do
Saneamento, deixou claro que não aceitaria rever a autonomia do Banco Central e
só deu aval ao retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (Carf) depois de muitos ajustes no texto final.
Algo mudou após o recesso branco parlamentar,
em julho. Como é natural no jogo político, deputados e senadores cobraram a
fatura pelas entregas na primeira metade do ano, e o governo teve de abrir
espaço para acomodar aliados do Centrão nos ministérios, bem como pagar emendas
parlamentares e irrigar bases eleitorais.
A despeito desses “gestos” do Executivo,
Câmara e Senado entraram num modus operandi estranhíssimo, no qual nada que
realmente importa ao governo tem sido votado ou mesmo pautado em plenário. É
como se os parlamentares tivessem entrado em greve, mas as razões dessa
paralisia são desconhecidas. Quem melhor poderia explicá-las são os presidentes
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Ambos parecem completamente desconectados das
reais necessidades do País, o que tem gerado situações no mínimo esdrúxulas. Há
algumas semanas, deputados deixaram de registrar presença na Casa, impedindo
quórum mínimo para uma série de deliberações. Na ausência de Lira, que está em
missão na Ásia, quem teria agido para debelar a obstrução na Câmara teria sido
o senador Pacheco, segundo reportagem do Estadão.
Esse ativismo de Pacheco faria algum sentido
se o Senado estivesse trabalhando a pleno vapor. Mas, à exceção das discussões
sobre a reforma tributária, que felizmente se encaminham para o fim, o Senado
também vive momentos de absoluta letargia. A recusa do principal aliado de Pacheco,
o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi
Alcolumbre (União-AP), em marcar a sabatina dos ministros ao Superior Tribunal
de Justiça (STJ) expressa o desrespeito com que é tratada a função de avaliação
e controle das indicações do Executivo quando é transformada em mera barganha
política.
A estranha viagem de Lira à Índia e à China
tampouco teria justificativa neste momento, não fosse a necessidade de o
presidente da Câmara submergir após ter exigido do governo a entrega de todos
os cargos da diretoria da Caixa e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Não
que ele precise estar fisicamente no País para ser lembrado. Seus prepostos
Elmar Nascimento (União-BA) e Doutor Luizinho (PP-RJ) têm agido para impedir
qualquer chance de votação dos projetos que taxam fundos exclusivos e offshore.
Seria simples atribuir esse movimento a uma
reação da Câmara e do Senado contra o governo, exigindo maior reconhecimento do
trabalho dos parlamentares. Para isso, no entanto, Lira e Pacheco teriam de
agir de forma coordenada contra a agenda do Executivo, e não é exatamente isso
que tem ocorrido.
Lira e Pacheco parecem mais preocupados com
seus respectivos futuros políticos do que em cumprir as prerrogativas de suas
funções à frente das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, que se encerram
apenas em 2025. Com a indesejável antecipação dessa disputa pelo comando das
Mesas Diretoras, eles lutam para demonstrar quem melhor serve ao governo, quem
mais entrega, quem mais ameaça e quem tem mais força, em detrimento da agenda
de votações do País e do melhor interesse público.
Brasil longe do grau de investimento
O Estado de S. Paulo
Estudo mostra que, para recuperar o selo de
bom pagador, País terá que controlar contas e, ao mesmo tempo, aprovar reformas
para elevar a produtividade e garantir crescimento mais robusto
Há alguns meses, duas agências de
classificação de risco melhoraram sua percepção sobre a economia brasileira. A
Fitch elevou a nota do rating soberano do País de BB- para BB. A S&P, por
sua vez, manteve a nota em BB-, mas alterou a perspectiva, antes estável, para
positiva, abrindo caminho para revisar a nota de crédito ao longo dos próximos
meses. Fazia anos que o rating do País não era alterado e, na última vez em que
isso aconteceu, os movimentos se deram em contextos muito diferentes e
negativos.
As notícias, portanto, foram recebidas com
muito alento e interpretadas como um primeiro passo na direção da retomada do
grau de investimento, classificação que o Brasil perdeu em 2015. A aprovação
definitiva do novo arcabouço fiscal no Legislativo e o avanço da reforma
tributária sobre o consumo na Câmara, hoje em tramitação no Senado, trouxeram
uma dose extra de otimismo à economia, e a recuperação do grau de investimento
parecia realmente ser uma questão de tempo.
Um estudo realizado pelo Banco Santander e publicado
pelo Estadão, no entanto, mostrou a necessidade de um esforço bem maior e de um
tempo bem mais longo para que o País possa retomar o selo de bom pagador. A
dívida brasileira, na proporção do Produto Interno Bruto (PIB), está 20 pontos
porcentuais maior que a de países que possuem o grau de investimento.
O problema, no entanto, não é apenas a dívida
mais elevada. À medida que o endividamento aumentava, o PIB avançava muito
pouco – em média, a economia cresceu apenas 0,8% ao ano entre 2011 e 2019. No mesmo
período, países com grau de investimento cresciam sete vezes mais, enquanto
economias com a mesma classificação de risco que o Brasil tem hoje avançavam
cinco vezes mais.
O estudo do Santander mostrou o quão distante
o Brasil de 2023 está do Brasil que conquistou o grau de investimento pela
primeira vez. Na proporção do PIB, a dívida bruta, que correspondia a 62,3% em
2008, subiu a 88,4%; a dívida líquida avançou de 37,6% para 61,2%. O resultado
primário, antes superavitário em 3,3% do PIB, transformouse em um déficit de
2%; o déficit nominal, por sua vez, saiu de 2% para 8,8% do PIB.
Se as receitas permaneceram inalteradas em
35,8% do PIB, os gastos foram elevados de 37,8% em 2008 para 44,6% neste ano;
os investimentos caíram de 21,6% para 18,3%; e a poupança, de 19,5% para 15,5%.
Não por acaso, a economia, que crescia a 5,1% em 2008, hoje desacelerou para
2,1%. O comportamento da dívida, afinal, influencia o comportamento da economia
como um todo.
Poucos foram os países que perderam e
recuperaram o grau de investimento, processo que, em média, levou de seis a
sete anos, mas todos apresentaram perspectivas de crescimento superiores às de
seus pares. O Brasil, de acordo com o estudo do Santander, deve levar mais
tempo que a média para reconquistar o selo de bom pagador.
As projeções quanto à trajetória da dívida
mostram que ela continuará a crescer, mas menos do que avançaria sem o
arcabouço fiscal, o que não deixa de ser positivo. A economia, no entanto, tem
avançado menos do que poderia e bem menos do que a de países emergentes. Quando
retomaram o selo de bom pagador, em 2013, o Uruguai apresentava uma perspectiva
de crescimento acima de 5,6% e a Colômbia, em 2011, de 4,2%.
Ao anunciar uma melhora na percepção de risco
sobre a economia brasileira, tanto a S&P quanto a Fitch ressaltaram a
importância da aprovação da reforma da Previdência e da autonomia do Banco
Central e reforçaram a relevância de políticas pragmáticas para promover a
sustentabilidade da dívida pública. Além de cortar gastos públicos, no entanto,
aprovar reformas estruturais que aumentem a produtividade será crucial para o
aumento da nota de classificação de risco do País.
Desistir de zerar o déficit em 2024 seria uma
decisão com efeitos desastrosos para a economia. Mas manter a meta tampouco
será suficiente para recuperar o grau de investimento. Reencontrar o caminho
para o crescimento econômico será essencial, e, pelo histórico recente do País,
um objetivo tão ou mais desafiador.
Vitória da sociedade
O Estado de S. Paulo
Condenação de Jair Bolsonaro por seus ataques
à imprensa resguarda o direito à informação
Jair Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJ-SP) a pagar R$ 50 mil por dano moral coletivo em razão
de seus ataques sistemáticos a jornalistas, sobretudo mulheres, e por sua
campanha de desqualificação da imprensa profissional e independente. A decisão,
tomada pela 4.ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP em ação movida pelo
Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo em 2021, transitou em julgado.
A condenação de Bolsonaro por agressões
contra jornalistas e veículos de imprensa é emblemática, menos pelo valor
financeiro – irrisório para quem, segundo consta, arrecadou mais de R$ 17
milhões em doações de apoiadores via Pix – e mais pelo valor simbólico. Ao
reconhecer que Bolsonaro é um inimigo da imprensa livre, o TJ-SP deu um claro
recado a outros que, como ele, são infensos às normas do Estado Democrático de
Direito: quem resolver minar a liberdade de imprensa e agredir jornalistas terá
de prestar contas à Justiça.
O veredicto representa um marco histórico na
luta contra a escalada dos discursos de ódio e, em particular, contra a
desvalorização do jornalismo profissional como um dos guardiões da verdade dos
fatos, sem a qual, como ensinou Hannah Arendt, não há debate público em bases
minimamente racionais com vista à construção de consensos. Em outras palavras:
sem imprensa livre, não existe democracia.
Muito antes de assumir a Presidência da
República, Bolsonaro já era conhecido por sua hostilidade atávica à imprensa
profissional e independente, vale dizer, o jornalismo que é crítico por dever
de ofício às ações e omissões dos detentores de poder político.
Como presidente, Bolsonaro degradou a posição
de chefe de Estado e de governo ao usar o poder inerente ao cargo para
atrapalhar, quando não impedir, o livre exercício da atividade jornalística.
Já no primeiro ano de governo, convém
recordar, Bolsonaro editou uma medida provisória (MP) que desobrigava as
empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande
circulação, como prevê a Lei das Sociedades Anônimas. Sem esconder que, com a
edição dessa MP, pretendia satisfazer um desejo pessoal de vingança, Bolsonaro
afirmou que estava apenas “retribuindo”, por meio da asfixia financeira das
empresas jornalísticas, o “esculacho” que, segundo ele, recebia da imprensa.
A perseguição a jornalistas durante seu
governo também se deu por meio da instrumentalização de instituições de Estado,
como a Advocacia-Geral da União, a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da
República. São muitos os exemplos de cooptação de órgãos públicos para atender
aos interesses privados de Bolsonaro, a revelar a estreiteza moral e política
do ex-presidente. Tão infenso à transparência era o governo passado que, no
curso de uma tragédia sanitária, a imprensa profissional teve de se unir para
levar ao público informações essenciais que Bolsonaro queria manter escondidas.
A condenação de Bolsonaro, portanto, não é uma vitória da imprensa. É, antes, uma vitória da sociedade.
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