Ilustríssima / Folha de S. Paulo
Sociólogo francês criticava esquerda
intelectual por justificar crimes em nome dos mitos de revolução e de sociedade
perfeita
Em 17 de outubro de 1983, morria o
filósofo e sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983), um dos principais
pensadores liberais do século 20. Quarenta anos depois, sua obra
permanece importante para a teoria política, a filosofia da história, a
sociologia e a teoria das relações internacionais, mas seu nome parece,
estranhamente, distante dos principais movimentos intelectuais e políticos que
reivindicam o liberalismo. Algo a se lamentar e a se buscar compreender.
Várias vertentes do liberalismo floresceram
nesses últimos 40 anos. O que se pode apontar em quase todas, contudo, é uma
dificuldade em lidar com o fenômeno político. A crise do socialismo e da
social-democracia conferiu um novo impulso às teses
do livre mercado, pregadas, muitas vezes, de modo fundamentalista, como se o
mercado pudesse se tornar um modelo de toda a sociedade.
A onda democrática do final do século 20, seguida pela globalização, levou a uma nova valorização das liberdades individuais e do Estado de Direito, fazendo frequentemente a dimensão jurídica e constitucional da democracia adquirir preeminência sobre sua dimensão propriamente política.
No domínio acadêmico, o impacto da obra
do filósofo
estadunidense John Rawls (1921-2002) produziu uma reorientação
do pensamento liberal para questões de justiça distributiva, guiadas pela
indagação a respeito dos princípios de uma sociedade justa.
Todas essas facetas do liberalismo
contemporâneo têm levado intelectuais e políticos, de direita e de esquerda, a
retomar a crítica de
Carl Schmitt (1888-1985), filósofo e jurista alemão que acabou
aderindo ao nazismo, segundo a qual o liberalismo constitui uma negação da
política, dissolvendo-a na economia, no direito ou na moral. Se o liberalismo
quer reduzir tudo ao mercado, ao Estado de Direito ou à ideia de justiça, ele
teria algo a dizer sobre a política?
Se houve algo que notabilizou o pensamento de
Raymond Aron foi justamente seu esforço para construir um liberalismo centrado
na política. A recusa de pensar a política era sua principal crítica aos
intelectuais franceses de esquerda, muitos deles seus amigos, mas com os quais
rompei após a Segunda Guerra Mundial, perante a indisposição desses
intelectuais em relação a quem ousasse criticar abertamente o regime
totalitário da União Soviética.
Jean-Paul Sartre, por
exemplo, passou de antigo camarada de Aron a seu principal antagonista na
Guerra Fria. Como Aron escreve em seu clássico,
"O Ópio dos Intelectuais (1955), Sartre e outros pensadores
franceses do pós-Guerra estavam tão embriagados por mitos, como o da revolução
e o da lei da história, que eram incapazes de analisar o funcionamento efetivo
de um regime político como o soviético.
Esses intelectuais não negavam a existência
de campos de concentração na União Soviética, mas consideravam que sua denúncia
enfraquecia a causa da revolução e do proletariado. Como nota Aron, ideias morais
abstratas tomavam a frente da análise do regime político, sobre o qual aqueles
acadêmicos tinham pouco ou nada a dizer.
Para Aron, ao contrário, o liberalismo não
decorria de ideias morais abstratas, mas de uma análise sociológica da
sociedade moderna e dos regimes políticos disponíveis. A política se torna
central, em primeiro lugar, porque a análise dos regimes políticos adquire uma
dimensão existencial.
Contrariamente ao senso comum que analisa a
Guerra Fria como um confronto entre o capitalismo e o socialismo, Aron percebe
duas variantes da sociedade industrial nos países capitalistas ocidentais e nos
países ditos socialistas. O principal critério de distinção não seria
econômico, mas político. E isso decorreria de uma disputa sobre a melhor
tradução do ideal democrático.
Os países ocidentais consideram que o ideal
democrático se traduz na livre competição entre partidos políticos, ao passo
que os regimes de tipo soviético alegam que um único partido encarna as
aspirações do proletariado, devendo monopolizar o poder para construir a
sociedade conforme os interesses verdadeiros do povo.
Aron defende o pluralismo
liberal não por ver nele a realização de uma moral perfeita, mas por
perceber o perigo da outra opção de organização política da sociedade
industrial: o regime de partido único. Ao contrário de muitos liberais, o
sociólogo francês não tem nenhum fetiche pela liberdade individual como fim
absoluto.
Apesar de tratar Friedrich Hayek (1899-1992),
o grande teórico do neoliberalismo, com respeito, Aron considerava sua
concepção de liberdade irrealizável na sociedade industrial. Hayek entendia que
um indivíduo era livre a partir do momento em que não servisse de instrumento
aos fins estabelecidos por outros indivíduos, ao que Aron retrucava que todas
as empresas coletivas fazem dos indivíduos instrumentos de seus chefes. Além
disso, para o francês, a liberdade individual não pode ser o único objetivo da
sociedade.
Em seu "Ensaio sobre as Liberdades"
(1965), o autor concorda com Marx que as "liberdades formais"
(ou seja, os direitos formalmente garantidos pela lei) podem ser vãs sem as
"liberdades reais" (ou seja, sem as condições materiais para o
exercício dessas liberdades). A crítica de Aron aos marxistas ortodoxos
consiste apenas na observação de que a supressão ditatorial das liberdades
formais não constitui o melhor caminho para alcançar a "liberdade
real".
Como seria de se esperar de um observador
realista da política, Aron estudou a fundo o tema da guerra. Pacifista na
juventude, sua percepção muda após presenciar a ascensão do nazismo. Se antes
ele concordava com seu mestre, o filósofo Alain (1868-1951), que não havia mal
maior do que a guerra, a visão de Hitler no poder o convence de que a vitória
do inimigo pode ser ainda mais catastrófica. Para Aron, a paz perpétua é uma
utopia irrealista enquanto o sistema internacional for composto por Estados
independentes, sem nenhum poder superior capaz de evitar conflitos.
Contudo, também aqui trata-se, para Aron, de
conceder o primado à política. Daí seu
diálogo intelectual incessante com o general prussiano Carl von
Clausewitz (1780-1831), autor de "Da Guerra" e
da famosa fórmula segundo a qual "a guerra é a continuação da política por
outros meios".
Aron dedicou a Clausewitz um de seus
principais livros ("Pensar a Guerra: Clausewitz", de 1976), com a
convicção de que a subordinação da guerra à política promovida pelo general
prussiano seria capaz de moderar o impulso violento dos confrontos, os quais,
deixados a sua própria lógica, tenderiam a escalar indefinidamente.
Em seus últimos anos de vida, Aron assistiu a
um triunfo parcial de suas ideias. Na esteira da publicação, na França,
de "Arquipélago
Gulag", de Alexander Soljenítsin (1918-2008), em 1974, a
crítica ao totalitarismo soviético se tornou a posição dominante na
intelectualidade francesa, inclusive de esquerda.
Em 1979, a participação de Aron e Sartre em
uma delegação que vai ao Palácio do Eliseu, residência oficial do presidente da
França, pedir o acolhimento de refugiados do Vietnã e do Camboja simboliza a
reconciliação dos dois intelectuais e o advento de uma era em que os direitos
humanos se tornam mais importantes do que as antigas clivagens ideológicas.
Aron vê um progresso no fato de que os
intelectuais de esquerda não se dispõem mais a justificar todos os crimes
possíveis em nome da construção da sociedade perfeita. Todavia, ele critica a
proeminência adquirida pelo tema dos direitos humanos, a partir do fim dos anos
1970, como outra maneira de refutar a política.
Como afirma no livro de entrevistas "O
Espectador Engajado", de 1981: "É uma maneira de não se engajar em
combates duvidosos, e todos os combates políticos são duvidosos. Nunca é a luta
entre o bem e o mal, é o preferível contra o detestável. (...) Ora, a defesa
dos direitos humanos (...) é um combate puro e não duvidoso".
Não se tratava, para Aron, de desprezar os
direitos humanos em nome de uma abordagem realista da política, em seu sentido
mais mesquinho. O autor era um realista, mas em um sentido qualificado. O
"maquiavelismo" grosseiro, para quem só contam o poder e os
interesses, sempre foi seu alvo de crítica.
Em sua visão, as ideias e os valores são
determinantes na política. O problema do primado exclusivo dos direitos humanos
reside na dissolução da política na moral. Como lembra Aron, na política
externa, todas as potências infringem direitos humanos. É legítimo e talvez
necessário protestar contra cada violação, mas isso não pode eclipsar a
comparação dos regimes políticos existentes, o julgamento de qual é preferível
e qual é detestável, e a aceitação do preferível mesmo em sua imperfeição.
Assim, o liberalismo de Aron resiste à
crítica de Schmitt sobre a dificuldade que a tradição liberal teria de pensar a
política. Infelizmente, as correntes liberais mais em evidência hoje seguem o
impulso da despolitização, e seus críticos se aproximam, mais ou menos
explicitamente, de soluções autoritárias.
Em um contexto internacional em que, como na
Guerra Fria, as democracias liberais disputam seus valores com regimes
autocráticos, torna-se tentador, para muitos, igualar os dois campos, pois
ambos violam direitos humanos, sem colocar em primeiro plano a comparação dos
regimes políticos.
Neste contexto, é necessário retomar o
liberalismo aroniano e sua coragem de se engajar em combates duvidosos.
*Raymond Aron.Filósofo e sociólogo francês,
nasceu em 14 de março de 1905, em Paris. Um dos principais pensadores liberais
do século 20, foi um crítico implacável do comunismo e dos intelectuais que
aderiram a ele de modo acrítico. A rivalidade entre Aron e o filósofo Jean-Paul
Sartre, por exemplo, ficou célebre nos conturbados anos 1960. Aron escreveu
extensa obra, na qual se destacam os livros "O Ópio dos Intelectuais"
(1955), seu principal trabalho, "Paz e Guerra Entre as Nações"
(1962), "As Etapas do Pensamento Sociológico" (1967) e "Pensar a
Guerra: Clausewitz" (1976). Morreu em 17 de outubro de 1983
*Doutor em ciência política pela USP e pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É autor de
“Quando É Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio” (Appris,
2021)
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