segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Marcus André Melo - A Argentina na encruzilhada

Folha de S. Paulo

A ascensão de um libertário mostra que o ciclo histórico do Peronismo se esgotou

A eleição presidencial argentina aponta para uma provável derrota do governo e vitória de um outsider no segundo turno. Em um quadro de gravíssimo surto inflacionário, o candidato governista é o ministro da economia. Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, reagiu: "Uma coisa dessas só se explica porque a Argentina é indecifrável; por uma mitologia, o peronismo".

A eleição é marcada pela expectativa de uma espetacular crise financeira na esteira de um processo de erosão institucional de longa duração. E sim, o peronismo é indissociável dela. Como mostrei aqui na coluna.

Mas a esperada derrota é também consistente com o padrão observado na América Latina. O "risco" de ser governo aumentou na região. De 2015 a 2023, a oposição ganhou 79,3% dos pleitos; de 2003 a 2014, venceu apenas 44% deles, segundo Gerardo Munck. Um viés pró-incumbente é o esperado. Governantes abusam da máquina de governo nas eleições. O boom de commodities e a Covid (e a inflação global atual) alteraram o padrão: beneficiando e punindo incumbentes, respectivamente.

A colossal frustração coletiva que gerou Javier Milei veio após o fracasso da oposição (Macri 2015-2019) em restaurar alguma governabilidade fiscal após os Radicais (UCR) entrarem em ruína e o kirchnerismo ter se tornado hegemônico (2003-2014). Mas o problema é anterior.

Nas primárias, Milei quebrou o controle do peronismo sobre as províncias do interior. Aqui há um padrão global: líderes populistas radicais têm apoio localizado fora das grandes áreas metropolitanas. Milei também concentra votos maciçamente no eleitorado jovem masculino. Simbolicamente é o futuro; o peronismo, o passado.

A Argentina encontra-se em uma armadilha institucional desde os anos 40 do século 20, como mostraram Spiller e Tommasi. O peronismo deflagrou respostas violentas e traumáticas em um processo intenso de degradação institucional. Investiu contra a Suprema Corte e o Congresso, produziu uma colonização predatória e partidarização do estado com uma intensidade não observada no Brasil de Vargas, como apontam Devoto e Fausto. Nas últimas décadas, distanciou-se dos sindicatos e se metamorfoseou em distributivismo fiscalmente irresponsável. A erosão da capacidade institucional do Estado, inclusive de suas bases fiscais e tributárias, continuou, conforme analisei aqui aqui.

Na disputa política, a retórica populista da luta política dentro da lógica amigo-inimigo —que contrapõe elites corruptas ao "campo nacional popular"— permanece a mesma (inclusive é analisada em chave positiva por teóricos como Laclau). Aqui não há espaço para a dimensão republicana e liberal da democracia. Tudo é "antagonismo". A ascensão de Milei mostra que a eficácia desta retórica se esgotou.

 

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