Folha de S. Paulo
A ascensão de um libertário mostra que o
ciclo histórico do Peronismo se esgotou
A eleição presidencial argentina aponta para
uma provável derrota do governo e vitória de um outsider no segundo turno. Em
um quadro de gravíssimo surto inflacionário, o candidato governista é o
ministro da economia. Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, reagiu: "Uma
coisa dessas só se explica porque a Argentina é indecifrável; por uma
mitologia, o peronismo".
A eleição é marcada pela expectativa de uma
espetacular crise financeira na esteira de um processo de erosão institucional
de longa duração. E sim, o peronismo é indissociável dela. Como mostrei aqui na coluna.
Mas a esperada derrota é também consistente com o padrão observado na América Latina. O "risco" de ser governo aumentou na região. De 2015 a 2023, a oposição ganhou 79,3% dos pleitos; de 2003 a 2014, venceu apenas 44% deles, segundo Gerardo Munck. Um viés pró-incumbente é o esperado. Governantes abusam da máquina de governo nas eleições. O boom de commodities e a Covid (e a inflação global atual) alteraram o padrão: beneficiando e punindo incumbentes, respectivamente.
A colossal frustração coletiva que
gerou Javier Milei veio após o fracasso da oposição (Macri
2015-2019) em restaurar alguma governabilidade fiscal após os Radicais (UCR)
entrarem em ruína e o kirchnerismo ter se tornado hegemônico (2003-2014).
Mas o problema é anterior.
Nas primárias, Milei quebrou o controle do
peronismo sobre as províncias do interior. Aqui há um padrão global: líderes
populistas radicais têm apoio localizado fora das grandes áreas metropolitanas.
Milei também concentra votos maciçamente no eleitorado jovem masculino.
Simbolicamente é o futuro; o peronismo, o passado.
A Argentina encontra-se em uma armadilha
institucional desde os anos 40 do século 20, como mostraram Spiller e Tommasi. O peronismo deflagrou respostas
violentas e traumáticas em um processo intenso de degradação institucional.
Investiu contra a Suprema Corte e o Congresso, produziu uma colonização
predatória e partidarização do estado com uma intensidade não observada no
Brasil de Vargas, como apontam Devoto e Fausto. Nas últimas décadas, distanciou-se dos
sindicatos e se metamorfoseou em distributivismo fiscalmente irresponsável. A
erosão da capacidade institucional do Estado, inclusive de suas bases fiscais e
tributárias, continuou, conforme analisei aqui e aqui.
Na disputa política, a retórica populista da
luta política dentro da lógica amigo-inimigo —que contrapõe elites corruptas ao
"campo nacional popular"— permanece a mesma (inclusive é analisada em
chave positiva por teóricos como Laclau). Aqui não há espaço para a dimensão republicana e
liberal da democracia. Tudo é "antagonismo". A ascensão de Milei
mostra que a eficácia desta retórica se esgotou.
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