Trégua em Gaza traz alívio, mas não deve iludir
O Globo
Libertação dos primeiros reféns deve ser
celebrada, embora o fim do conflito ainda continue distante
Entrou em vigor ontem a primeira trégua no conflito entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza. Pela libertação dos primeiros reféns e pelo alívio aos civis de Gaza, merece ser celebrada. O acordo, mediado por Estados Unidos, Egito e Catar, prevê a libertação de 50 dos cerca de 240 reféns sequestrados pelo grupo terrorista em 7 de outubro e de 150 palestinos presos em Israel. Ontem foram libertados os primeiros 24 reféns — 13 israelenses, dez tailandeses e um filipino —, e Israel soltou 39 prisioneiros. Mais trocas estão previstas até o fim da trégua, marcado para segunda-feira. Pelos termos negociados, Israel a estenderá por mais 24 horas a cada dez reféns libertados. Cada vida salva será uma conquista.
O acordo é o primeiro alívio no conflito que
se estende há 50 dias sem perspectiva de acabar. Além do sopro de esperança às
famílias dos reféns, traz um respiro que permitirá o acesso de comboios
humanitários para atender às carências urgentes da população numa Gaza
devastada. Mas é preciso não criar ilusões sobre seu alcance. Para o Hamas,
apesar das declarações em contrário, traduz uma primeira derrota. Para Israel,
traz riscos enormes.
Israel relutou em aceitar a trégua. Acabou
concordando por atribuir valor maior à vida dos reféns que a seu objetivo
militar. A pausa dá aos terroristas a chance de se reorganizar, preparar
armamentos, ocupar posições e usar a população civil em benefício de sua
defesa.
Isso já ficou claro ontem, com a ordem do
Hamas para que milhares de palestinos se transferissem do sul ao norte de Gaza,
região devastada pelos bombardeios israelenses. A intenção dos terroristas é
dificultar a operação terrestre interrompida. Israel insiste que todos fiquem
onde estão, pois os combates não acabaram.
Essa primeira trégua é frágil. Pelo
histórico, mesmo acertos informais entre Israel e Hamas são descumpridos. No
conflito de 2014, houve nove tréguas ao longo de 51 dias, sistematicamente
rompidas. Em 2021, Israel baixou armas depois de 11 dias de ataques. Em menos
de um mês, palestinos voltaram a lançar bombas incendiárias no sul do país, que
respondeu com novos bombardeios.
Desta vez, o Hamas pôs deliberadamente em
risco a vida de toda a população de Gaza ao promover os ataques bárbaros de 7
de outubro — isso foi admitido por seus líderes em várias entrevistas. Como
resultado da ofensiva israelense, os cerca de 2 milhões de palestinos hoje
vivendo no sul do território — boa parte refugiada do norte — estão em situação
de calamidade. Há abalo evidente na infraestrutura de sustentação do Hamas, mas
o grupo terrorista não está derrotado. A liderança armada permanece entrincheirada
em Gaza, comandando ao menos três brigadas com milhares de terroristas.
Sem abrir mão de seus objetivos militares,
Israel precisa encontrar meios eficazes de garantir a vida e a libertação dos
demais reféns ainda em poder dos terroristas e, ao mesmo tempo, a entrada de
alimentos, remédios e assistência, além de restabelecer o suprimento de água e
energia para aliviar a fome e o desespero da população civil de Gaza. Um dilema
para o qual não se vislumbra solução.
Por ora, os tiros cessaram, há ajuda
humanitária para os civis de Gaza e reféns celebrando a vida com suas famílias
em Israel. Que possa haver mais. Mas a guerra está longe do fim.
Indústria será setor mais favorecido com
aprovação da reforma tributária
O Globo
Fim de impostos cumulativos induz recuperação
da produção industrial, que sofreu queda de 18% desde 2011
Não é novidade o encolhimento do setor
industrial. Principal força de tração da economia na segunda metade do século
passado, o setor foi agraciado com tarifas de proteção à competição externa e
se acomodou no berço esplêndido do protecionismo. Com o tempo, foi perdendo
dinamismo e tem apresentado taxas de crescimento abaixo da agricultura e da
pecuária, que se expandem conectadas ao mercado global.
Dados
publicados pelo GLOBO, obtidos a partir de estatísticas do IBGE
cruzadas com números da empresa de consultoria econômica holandesa CPB
(Netherlands Bureau for Economic Policy Analysis) cobrindo o período de janeiro
de 2002 a julho de 2023, mostram que, até o início de 2011, a evolução da
produção industrial brasileira acompanhou a mundial. Depois disso, perdeu
fôlego. De maio de 2011, quando houve a inflexão na indústria brasileira, a
julho de 2023, o setor sofreu retração de 18%, enquanto no mundo se expandiu
29%.
No entender da economista Silvia Matos, do
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), a
indústria não acompanha o passo do setor em escala mundial porque depende de
três fatores: crédito barato, mão de obra qualificada e acesso à tecnologia.
“Somos ruins nos três”, diz. O setor industrial tem, ao mesmo tempo, nutrido
expectativas otimistas com a reforma tributária, pela simplificação do sistema
de impostos bizantino que encarece a produção no Brasil.
Pelos cálculos do economista Bráulio Borges,
da consultoria LCA e pesquisador do Ibre/FGV, a reforma trará um impacto
positivo no potencial de crescimento do PIB ao redor de 20% em 15 anos. Nenhum
ramo de atividade perderá com a mudança no sistema de impostos — o mais
complexo e custoso do mundo para as empresas. Mas a indústria manufatureira,
diz Borges, é a atividade que mais acumula resíduos tributários — impostos
pagos em fases anteriores na cadeia de produção que as empresas não conseguem
transformar em crédito. Paga imposto sobre imposto. De todos os setores da
economia, a indústria será o mais beneficiado pela substituição de cinco
impostos por apenas dois, cobrados de forma não cumulativa de acordo com regras
nacionais.
As exportações de manufaturados são oneradas
em 7,4% apenas em razão do resíduo tributário, calcula o gerente executivo de
Economia da Confederação Nacional da Indústria, Mário Sérgio Carraro Telles.
Como a indústria é a que mais sofre com esse problema, ela sentirá, segundo
Borges, grande alívio com a reforma, que facilita o crédito de impostos
recolhidos em fases anteriores na produção. Outro benefício para o setor
industrial, diz ele, será uma queda de 5,5% a 6% no custo de aquisição de bens
de capital (máquinas e equipamentos). Os setores agrícola e de serviços também
serão beneficiados com o fim da complexidade dos impostos, mas só o efeito
positivo na indústria já seria motivo para celebrar a aprovação da reforma
tributária pelo Congresso.
Projeção assustadora
Folha de S. Paulo
Nova piora em perspectiva para o déficit
reduz credibilidade de metas do governo
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não
apenas caminha para marcas históricas de gastos e piora fiscal em um primeiro
ano de mandato. Nesse curto espaço de tempo, a administração petista também
semeou o descrédito em suas previsões orçamentárias.
Cada reavaliação periódica das receitas e
despesas federais desmente a anterior, enquanto metas são postas em dúvida ou
deixadas de lado. Nesta semana, anunciou-se a assustadora projeção de um rombo
de R$ 203,4 bilhões nas contas do Tesouro Nacional, mesmo sem considerar os
exorbitantes encargos da dívida pública.
Mal se recorda que em março, na primeira
estimativa oficial para o resultado do ano, o governo falou em um déficit de R$
107,6 bilhões —e que se chegou a apresentar o objetivo de baixar a cifra a não
mais de R$ 50 bilhões.
Já se notavam ali certos expedientes
heterodoxos, como subestimar os custos do aumento real do salário mínimo, e uma
boa dose de otimismo com a arrecadação de impostos. O descompasso agora se
revela abissal, porém.
A área econômica ainda tenta atenuar os
números ao considerar como receitas recursos do PIS/Pasep não sacados por
trabalhadores, de modo a permitir uma projeção
de déficit um pouco menos desastrosa, de R$ 177,4 bilhões.
A manobra de contabilidade, no entanto, é de
escassa utilidade. O Banco Central, responsável pela apuração definitiva do
resultado, corretamente não considera tal medida um esforço fiscal.
O Tesouro ainda vislumbra uma despesa abaixo
da estimada oficialmente porque o governo em geral não consegue executar todas
as ações contempladas no Orçamento, por atrasos e outros contratempos. Esse não
chega a ser um atenuante animador, convenhamos.
A sucessão de cálculos e recálculos reduz
ainda mais, se isso é possível, a credibilidade da meta de déficit zero em
2024, que chegou a ser tratada com
desdém pelo próprio presidente da República.
Não se podem
subestimar os danos causados por tal descrédito. As expectativas
movem as decisões de consumo, contratações e investimentos; incertezas levam
famílias e empresas a se retraírem.
No caso particular da política fiscal, a
confiança na contenção futura da dívida pública facilitaria a queda dos juros;
sem ela, eleva-se o piso das taxas e dificulta-se o crescimento da economia.
O ministro Fernando Haddad, da Fazenda, está
correto no combate a benefícios tributários que privilegiam setores abastados e
influentes. Mas é cada vez mais óbvio que, sem repensar as regras de elevação
contínua das despesas públicas, não haverá arrecadação que baste para
equilibrar as contas.
A serviço do crime
Folha de S. Paulo
Recorde no desvio de armas legais é efeito
nefasto do armamentismo de Bolsonaro
O incremento do poder de fogo dos criminosos
é o efeito mais perverso para a população da política armamentista implementada
pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
De janeiro a outubro deste ano, 1.259 armas
de CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) foram roubadas,
furtadas ou extraviadas, o que representa média mensal de 125,9 —recorde na
série histórica desde 2010, de acordo com dados do sistema do Exército obtidos
pelo jornal O Globo.
Mudanças normativas promovidas a partir de
2019 beneficiaram os CACs, antes uma categoria pouco expressiva. Em 2018, de
cerca de 1,3 milhão de armas nas mãos de civis, 27% estavam com os CACs. Já no final
de 2022, o grupo detinha 42,5% de quase 3 milhões.
Por óbvio esse não é o único elo entre armas
e criminalidade. A falta de fiscalização efetiva, a precária inteligência
investigativa, além do afrouxamento das regras sob Bolsonaro, contribuem para o
cenário.
Mas a facilitação do acesso legal e a maior
disponibilidade do produto no mercado abastecem infratores, seja por roubo,
furto ou extravio, seja de forma intencional por revenda a criminosos.
São diversos os exemplos que expõem a linha
tênue entre legalidade e ilegalidade nessa seara.
A Polícia Civil de São Paulo investiga
suposto esquema orquestrado por facções criminosas para comprar
armas com o uso de CACs como laranjas. Em Minas Gerais, o Exército
liberou uma compra de fuzil para um integrante do Primeiro Comando da Capital
(PCC).
Estudo de 2022 revelou que 30% das armas
usadas em ações delituosas no Espírito Santo tinham proprietários com registro
no sistema da Policia Federal.
Para reverter o desvio de função desses
dispositivos, é urgente fortalecer fiscalização e controle, hoje em parte sob
processo —que precisa ser agilizado— de transferência do Exército para a
Polícia Federal.
A investigação com inteligência, que pode ser
mais robusta com unidades especializadas sobre o tema nas polícias civis
estaduais, é fundamental para expor os caminhos que levam armas legais ao
crime.
Ao governo federal cabe, inclusive,
fortalecer a recompra de armas adquiridas de modo regulamentar, antes que elas
sejam direcionadas para o mercado negro.
Os dados estatísticos oriundos da experiência prática mostram que o armamentismo não oferece segurança à população; ao contrário, fortalece criminosos.
Reação inaceitável
O Estado de S. Paulo
Os ministros do STF podem não gostar, mas têm
de respeitar a vontade do Senado ao aprovar PEC que limita decisões
monocráticas na Corte. Reações virulentas mostram que falta autocrítica
Os ministros do Supremo têm de respeitar a
vontade do Senado. Reações virulentas mostram falta de autocrítica.
OPaís se esforça cotidianamente para, mesmo
não concordando, obedecer a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF)
despropositadas e que desrespeitam o Legislativo. No entanto, a recíproca não é
verdadeira. Bastou uma primeira decisão do Senado contrariando as vontades de
ministros da Corte para que o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso,
e o decano daquele tribunal, ministro Gilmar Mendes, viessem a público fazer
desabrida pressão política.
“Não há institucionalidade que resista se
cada setor que se sentir contrariado por decisões do tribunal quiser mudar a
estrutura e funcionamento do tribunal”, disse o ministro Barroso sobre a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita as decisões monocráticas de
ministros do STF, aprovada pelo Senado na quarta-feira passada. Trata-se de
grave distorção, pois a referida PEC – muito longe de ser, como sugeriu o
ministro, uma revanche contra decisões do Supremo – apenas reforça o que a lei
já estabelece desde 1999, mas que os ministros do STF entendem que não precisam
respeitar. “Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será
concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do tribunal”, diz o
cristalino art. 10 da Lei 9.868/99.
Ao contrário do que afirmou o sr. Barroso,
nenhuma instituição está sendo sacrificada “no altar das conveniências
políticas” com a PEC 8/2021. É tempo de baixar o tom – e de respeitar muito
institucionalmente as decisões do Congresso. Em nenhum lugar do mundo, ministro
de Corte Constitucional tem poder para suspender, sozinho, atos do Legislativo.
Por que no Brasil tem de ser diferente?
O ministro Gilmar Mendes foi ainda mais
explícito na tentativa de emparedar o Congresso. “Esta Corte não haverá de se
submeter ao tacão autoritário, venha de onde vier”, afirmou o decano – que,
destemperado, chamou os autores da PEC de “pigmeus morais”. Ora, a proposta
aprovada pelo Senado não tem nada de autoritária, pois o STF continuará podendo
exercer, com plenitude e independência, o controle de constitucionalidade das
leis.
É lamentável que ministros do Supremo tratem
dessa forma as propostas legislativas que lhes desagradam. Isso é distorcer e
inflamar artificialmente o debate público. O País não precisa disso. Não cabe a
integrante do Supremo alimentar a desinformação sobre atos de outro Poder.
Autoritária, isso sim, é a PEC 50/2023, em
tramitação na Câmara, que pretende conferir ao Congresso o poder de anular
decisões do Supremo. Isso viola a separação dos Poderes e, consequentemente,
uma das cláusulas pétreas da Constituição. Já o que faz a PEC aprovada na
quarta-feira é apenas estabelecer que um ministro do STF sozinho não pode
suspender uma lei aprovada pelo Congresso, o que é expressão fidedigna do
Estado Democrático de Direito, que dispõe de competências e procedimentos
próprios.
Causa espanto também a naturalidade com que
se comenta, nos bastidores de Brasília, que o Supremo, na apreciação de
matérias judiciais relevantes, pode vir a retaliar o governo porque este não
teria atuado suficientemente para barrar a proposta. Para o bem do País,
roga-se que tal ameaça não passe de arroubo de um ou outro ministro
inconformado, pois o Supremo é o zelador da Constituição, e não instrumento de
vendetta.
Os ministros do STF não precisam gostar da
PEC 8/2021, mas precisam respeitá-la. Como mostra a experiência dos últimos
anos, eles têm em alta conta a possibilidade de suspender individualmente atos
do Congresso. Trata-se de um poder individual imenso, sem nenhum paralelo em
todo o regime constitucional de 1988.
Invocando os bons serviços que prestou ao
País nos últimos tempos, o STF parece pretender uma liberdade irrestrita de
atuação. Se é certo que o Brasil deve muito à coragem dos ministros que
enfrentaram os arreganhos bolsonaristas, também é certo que algumas
determinações do Supremo têm sido lamentáveis. Não se chega a uma PEC como a
que foi aprovada sem um longo histórico de decisões arbitrárias de ministros do
STF contra deliberações do Legislativo. Em vez de truculência, o País espera do
Supremo um pouco mais de reflexão, serenidade e, principalmente, autocrítica.
Adaptar as cidades às mudanças climáticas
O Estado de S. Paulo
Tão importante quanto a mitigação do
aquecimento global é a adaptação aos seus impactos. Com soluções simples, mas
eficazes, as cidades podem reduzir imensamente riscos, danos e mortes
Aera dos impactos climáticos coincide com a
era da urbanização. Em nossa geração, pela primeira vez na história, a
população urbana superou a rural. Em 2050, 7 em 10 pessoas viverão em cidades.
A mistura de densidade populacional com riscos climáticos como temperaturas
extremas, secas ou inundações augura toda sorte de desastres, de blecautes a
doenças respiratórias, de falta de água a mortes em enchentes.
Felizmente, desde sempre o ser humano se
mostrou um mestre da adaptação a ambientes extremos, dos glaciais aos
desérticos. Há um século, cerca de meio milhão de pessoas morriam anualmente
por desastres naturais. Hoje, mesmo com mais extremos climáticos e uma
população quatro vezes maior, são menos de 10 mil.
“As cidades são viveiros de ameaças
climáticas, mas também viveiros de soluções climáticas”, disse Jessica Troni,
do Programa Ambiental da ONU. Cada cidade tem seus desafios particulares, mas,
sejam quais forem, há ações com alto potencial de ampliar a resiliência
sistêmica às mudanças climáticas, como avaliações de risco; incorporação de
riscos climáticos ao planejamento urbano; protocolos e sistemas de alarmes para
eventos extremos; e seguros contra desastres naturais.
Na França, por exemplo, morreram em 2003
cerca de 15 mil pessoas por ondas de calor. Desde então o país desenvolveu
políticas variadas, de tratamento médico direcionado a mais piscinas públicas e
instalações de ar-condicionado. Em 2019, morreu menos de 1,5 mil. Em
Bangladesh, em algumas décadas, sistemas de alerta e evacuação e barreiras
marítimas reduziram as mortes por ciclones de centenas de milhares para algumas
dezenas por ano, ainda que as tempestades estejam igualmente severas e o
aumento populacional tenha ampliado os riscos.
Consultando especialistas e estudos, o
Estadão levantou seis áreas de ação para adaptar as cidades brasileiras. Na
saúde pública, as temperaturas extremas ampliam os riscos de agravamento de
doenças crônicas, especialmente cardiovasculares. Alertas a hospitais e pessoas
podem mitigar esses riscos. A distribuição de desinfetantes pode reduzir riscos
associados à insalubridade da água em períodos de seca. Uma remoção mais
eficiente do lixo urbano e programas de vacinação podem diminuir a incidência
de doenças infecciosas transmitidas por insetos em épocas de chuva e calor.
A expansão de áreas verdes, não só grandes
parques, mas pequenos núcleos e árvores nas ruas, além de criar ambientes mais
agradáveis, promove mais conforto térmico e melhor drenagem do solo.
Os riscos associados a enchentes e
deslizamentos podem ser imensamente reduzidos com sistemas de alerta e
evacuação eficientes. A médio prazo, é preciso programar obras de contenção. No
caso de áreas de alto risco, não há alternativa à desocupação.
Centros de atendimento que podem servir desde
abrigo durante inundações ou vendavais até como locais de refrigeração e postos
de hidratação precisam levar em conta as dificuldades de mobilidade,
especialmente em situações extremas, e serem mais bem distribuídos
territorialmente. Esses “oásis urbanos” ou “refúgios climáticos” não precisam
ser necessariamente gigantes, como parques. Podem ser simplesmente as áreas
externas de escolas, como se faz em Paris.
A subida do nível do mar afetará as cidades
costeiras. Cidades do mundo em que esses impactos são mais severos já investem
na construção de diques, como na Holanda. No caso do Brasil, a primeira medida
é reconstituir a vegetação costeira e preservar recifes de coral e áreas de
mangue.
As cidades são agentes e vítimas das mudanças
climáticas. Dessa dupla condição deriva um duplo desafio: mitigação do
aquecimento global e adaptação aos seus impactos. A primeira consiste em ações
globais e difusas, cujos benefícios serão sentidos, sobretudo, nas próximas
gerações. A segunda consiste em ações focadas na singularidade de cada
localidade, cruciais para salvar vidas e garantir prosperidade já. A educação é
chave para equacionar esses dois desafios e construir políticas realistas e
inteligentes para viver bem no novo clima.
Jogo de cena
O Estado de S. Paulo
Todos, inclusive o governo, sabem que o veto
de Lula à desoneração da folha será derrubado
O presidente Lula da Silva decidiu vetar
integralmente a proposta que estende a desoneração da folha de pagamento dos 17
setores que mais empregam no País até 2027. Interpretada como uma vitória do
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o veto não passa de um jogo de cena, haja
vista que será facilmente derrubado pelo Congresso – e todo o governo sabe
disso, a começar pelo ministro.
Em vigor desde 2011, a desoneração da folha
de pagamento foi recorrentemente renovada nos últimos anos. A medida tem sido
fundamental para sustentar o nível de emprego dos setores de mão de obra
intensiva. O interesse público da proposta é reconhecido até mesmo pelas
centrais sindicais, base de apoio do governo Lula.
Há consenso quanto ao mérito da desoneração
no Legislativo. No Senado, a aprovação se deu na própria Comissão de Assuntos
Econômicos (CAE), por 14 votos a 3, em caráter terminativo. Quando chegou à
Câmara, a proposta recebeu 430 votos favoráveis e 17 contrários. No retorno do
texto para apreciação final, a votação foi simbólica, reconhecimento da
existência de amplo apoio entre os senadores.
Ao explicar o veto à desoneração, Haddad
disse que a decisão teve como base pareceres emitidos pela Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional (PGFN) e pela Advocacia-Geral da União (AGU). De acordo com
eles, a proposta é inconstitucional, uma vez que não prevê medidas
compensatórias para cobrir a renúncia de receitas.
Segundo o ministro, o governo vai apresentar
uma alternativa à desoneração da folha ao Congresso após a Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 28), que começa no próximo dia 30
e se encerra em 12 de dezembro – poucos dias antes do recesso parlamentar. Até
lá, Haddad espera que o Congresso aprove a reforma tributária e a Medida
Provisória 1185, que taxa as subvenções de ICMS.
A estratégia adotada pelo ministro teria
alguma chance de sucesso se o tema da desoneração dividisse os parlamentares ou
se o governo contasse com uma base de apoio firme no Legislativo. Não é o caso.
Para derrubar um veto presidencial, não é preciso fazer muito esforço – basta o
apoio de 257 deputados e 41 senadores.
Se o governo realmente quisesse impedir esse
movimento, já teria de ter apresentado a alternativa que defende para
substituir a desoneração – cujo prazo, aliás, termina em 31 de dezembro. Nem os
setores atingidos nem os parlamentares ficarão parados à espera da apresentação
dessa proposta, mesmo porque não haveria tempo hábil para apreciá-la.
O veto, portanto, serve apenas para passar a
impressão de que o presidente ainda ouve o ministro e de que está disposto a se
desgastar com o Congresso para defendê-lo. Fica muito difícil acreditar nessa
tese depois que Lula relativizou a importância de cumprir as metas fiscais.
Atribuir à desoneração da folha a responsabilidade por mais um rombo nas contas públicas tampouco é minimamente crível, mas a proposta certamente será mencionada pela equipe econômica no início do ano que vem, para justificar a necessidade de alterar a meta fiscal.
Estresse entre Poderes só atrapalha o país
Correio Braziliense
Não existe fator relevante na conjuntura que
determinasse a aprovação da PEC a toque de caixa, a não ser interesses menores
da disputa pela sucessão na presidência do Senado e o ressentimento dos
senadores bolsonaristas
A crise política instalada após a aprovação
pelo Senado, por 52 votos a favor e 18 contrários, de uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) que limita o poder de os ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) tomarem decisões monocráticas em relação a atos do Executivo e do
Legislativo, além de intempestiva, é muito artificial. Não existe nenhum fator
relevante na conjuntura que determinasse a aprovação da PEC a toque de caixa, a
não ser interesses menores da disputa pela sucessão do presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o ressentimento dos senadores aliados do
ex-presidente Jair Bolsonaro.
Essas circunstâncias, muito mais do que o
mérito da decisão, geraram um ambiente de profundas desconfianças entre
Pacheco, os ministros do Supremo e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
precisa ser revertido, para não se desdobrar em uma crise institucional.
Rompeu-se o pacto em defesa da ordem democrática firmado por esses atores, por
ocasião das eleições de 2022, que foi fundamental para garantir o processo de
votação e a posse de Lula, mas sobretudo frustrar a tentativa de golpe de
estado de 8 de janeiro deste ano.
A troca de farpas entre Pacheco e o
presidente do Supremo, ministros Luís Roberto Barroso, revela que o momento é
muito delicado. Há forças políticas interessadas nos aspectos mais negativos da
ruptura desse pacto e na configuração de uma crise institucional, o que não é o
caso de Pacheco nem de Barroso. O momento é difícil para o país, que enfrenta
problemas de ordem econômica e que exigem a mesma solidariedade entre os
Poderes da República como ocorreu quando a democracia estava em risco iminente.
Nos meios políticos e no mundo jurídico, há
muitas críticas à atuação de alguns ministros do Supremo, sobretudo quando
tomam decisões polêmicas, que invadem a esfera de atuação dos demais poderes,
mas não se pode jogar a criança fora com a água da bacia. É perfeitamente
possível um entendimento em relação às decisões monocráticas, para que se
chegue a um texto negociado, que não agrida a competência constitucional de o
Supremo estabelecer o regimento de seu próprio funcionamento, num momento em
que o ambiente político seja mais favorável.
Uma das críticas, por exemplo, com relação
aos pedidos de vista, já havia sido incorporada ao regimento do Supremo. O eixo
do entendimento, obviamente, deve ser o respeito ao devido processo legal por
parte dos ministros e a preservação de suas prerrogativas constitucionais. Não
se deve, porém, subestimar as intenções dos setores que mais se contrapõem ao
Supremo no Congresso.
São forças políticas radicalizadas, sem
compromisso doutrinário com a democracia representativa, que não defendem a
ordem liberal clássica, nem mesmo em bases conservadoras. Esses setores
empinaram as bandeiras do negacionismo e do "iliberalismo". Este, se
sustenta em maiorias eleitorais e parlamentares eventuais para desrespeitar o
direito ao dissenso, a alternância de poder, o pluralismo político, a
diversidade, os direitos sociais e as minorias.
O Supremo é a instituição capaz de tomar decisões contramajoritárias em defesa da Constituição e contra maiorias eventuais. Rússia, Hungria, Venezuela, para citar três exemplos, são países cujos governantes subjugaram a Corte Suprema para se perpetuar no poder e massacrar a oposição. Ainda bem que as conversas de bastidor entre representantes dos Poderes estão ocorrendo, para jogar água nessa fervura. O país tem uma agenda econômica muito complexa, na qual o conflito distributivo se agrava com o deficit fiscal. Há decisões muito mais importantes em jogo, que precisam ser resolvidas com base no diálogo, e não no confronto entre o Executivo, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.
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