O Estado de S. Paulo
A alfabetização funcional pesa como um rochedo nas costas do País, cuja população, para piorar, não se dá conta disso
A constatação está na mesa há décadas: vivemos sob um apagão educacional. São poucos os brasileiros que dominam a Língua Portuguesa e conseguem elaborar um pensamento concatenado. A maioria da população não é composta por leitores sistemáticos, escreve pouco e mal. O despreparo é geral. A alfabetização funcional pesa como um rochedo nas costas do País, cuja população, para piorar, não se dá conta disso. Ouçamos as vozes das ruas, as entrevistas dos jogadores de futebol, a conversa dos motoristas e passageiros dos ônibus, a algazarra das brincadeiras infantis, os papos de bar. É uma sucessão de erros crassos nas linguagens escrita e oral. O cenário causa arrepios.
Não podemos, claro, exigir que os brasileiros
sejam todos intelectuais. Mas devemos fazer algo para ao menos minimizar a
tragédia cultural que nos assola. O fato é que o brasileiro médio não domina a
linguagem, lê pouco, escreve menos ainda, desconhece o bê-á-bá e, por
consequência, distancia-se dos meandros da reflexão ponderada e da vocalização
minimamente elaborada. Nem me refiro aos números, à história, à geografia, às
ciências, às questões climáticas e ambientais. Também não penso na educação
cívica: na capacidade de compreender a política. Prendo-me somente ao domínio
do letramento.
Há algo de muito errado numa sociedade que
não consegue, em pleno século 21, ter uma população bem alfabetizada e em
condições de se elevar às esferas do pensamento abstrato, ao domínio da técnica
e da tecnologia, à compreensão, mesmo que simplificada, do terrível e complexo
mundo em que vivemos.
O problema passa pelas escolas,
evidentemente, mas não se esgota nelas. Afeta em particular os jovens, pondo em
xeque seu futuro. Mas atinge o conjunto da população, os governos, os
políticos, as políticas públicas, a democracia. A precariedade da educação anda
de mãos dadas com a desigualdade social, que separa poucos brasileiros bem
escolarizados de uma esmagadora maioria de pessoas que mal sabem conversar
sobre os temas que lhes dizem respeito. Caminha junto com a rusticidade da
chamada “classe política”. É um circuito envenenado, que impede a formação de
um sistema educacional consistente. Há uma cultura negacionista que rejeita a
escola, despreza os professores, bloqueia o futuro do País. Incrustada nela, há
também uma profusão de manobras identitaristas que desejam estabelecer regras
dogmáticas para reeducar professores, formatar currículos e punir os
desobedientes. A escola não tem conseguido responder bem a essa situação, que a
sufoca e desafia.
Hoje mesmo, se procurarmos um projeto amplo
que valorize de fato a escola pública, prepare o professorado, direcione a
atuação escolar, defina metas claras e forneça os meios para viabilizá-las, não
encontraremos nada. As promessas e os discursos são muitos, mas ficam ao sabor
de providências políticas, da ação e dos recursos de governos municipais e
estaduais, cada um deles seguindo uma rota. A desigualdade vai, assim, se
aprofundando. Mesmo os pesquisadores da área têm dificuldades para traduzir o
quadro e fornecer soluções para ele.
Temos, ainda, um complicador adicional: a
vida digital, a frequência às redes sociais, cujos apps incentivam o uso de
poucas palavras, de uma comunicação simplificada ao extremo, que rouba
capacidade de reflexão, dispensa o uso da linguagem e dificulta o processamento
do turbilhão de informações que circulam pelas mídias. Toda uma geração vem
crescendo com esse padrão, desabituando-se de ler textos mais complexos e
escrever com mais qualidade e rigor. Isso empobrece a compreensão do mundo
atual, com seus desafios e suas exigências. Como não se valoriza o ensino
técnico e profissionalizante, complica-se o ingresso no mercado de trabalho.
Num artigo publicado na revista Veja
(10/11/2023), o ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque observou
que “as falhas da educação brasileira são um fracasso de décadas”. Passaram
governos, avanços tópicos aconteceram, mas o País continua com a pior e mais
desigual educação quando comparado com outros países. Hoje nos conformamos com
correr atrás de cumprir com “a simples promessa de alfabetizar alunos aos 8
anos de idade”.
O diagnóstico é amargo. Faltam metas
ambiciosas e instrumentos políticos e administrativos para executar projetos
estratégicos. Para Cristovam, três características da sociedade travam essa
estratégia: “primeiro, educação de máxima qualidade não é um objeto de desejo
político nem uma prioridade maior do eleitor brasileiro; segundo, a igualdade
não faz parte do caráter nacional; terceiro, o imediatismo impede que os
governos olhem para um futuro posterior aos seus mandatos”.
O que assusta é saber como atravessaremos o
século 21 com este rochedo nos incapacitando. Sem um sistema público nacional
único, que permita a plena alfabetização dos brasileiros e os insira de modo
inteligente na contemporaneidade, continuaremos a derrapar como país e a
assistir ao derramamento da desigualdade entre nós.
*Professor titular de Teoria Política da Unesp
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