segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Caminhos de uma PEC

Encontra grande espaço, na cobertura jornalística e no colunismo de política brasileira, uma celeuma em torno de uma PEC, votada no Senado, que impede decisões monocráticas de ministros do Judiciário de sustarem, em caráter liminar, a vigência de leis aprovadas e sancionadas pelos poderes governativos, Legislativo e Executivo. Embora a matéria envolva outros tribunais, o foco evidente é o STF. 

No plano dos fatos, a celeuma sustenta-se em desinteligências entre vozes políticas críticas, dadas como majoritárias no Senado - que acusam o STF de suprimir garantias individuais bem como a mandatos eletivos e desrespeitar prerrogativas do Legislativo – e contundentes posições de ministros do mesmo STF. Esses veem cumplicidade legislativa e ambiguidade da política face a reações de correntes políticas que têm sido responsabilizadas, pela Justiça, por ações golpistas em passado recente e tentam fragilizar a Corte para desestabilizar a defesa institucional do regime democrático. Embora não haja unanimidade entre juristas e operadores do direito sobre esses pontos, opiniões de peso, como a do ex-ministro Celso de Mello, questionam a legitimidade constitucional do Congresso para legislar sobre tal matéria. 

No plano das versões, a situação é tratada, muitas vezes, como iminência ou mesmo evidência de crise institucional, enquadrando-se o discurso moderado do presidente do Senado - que nega a crise - como dissimulação de uma atitude corporativa e/ou de uma intenção política de se aproximar da direita ideológica para obter apoios, na bancada bolsonarista, ao senador Davi Alcolumbre para sua sucessão. Nessa estratégia estariam sendo subestimados, ou mesmo levados de roldão, valores democráticos e o objetivo de proteger a democracia de ameaças da extrema-direita, que ainda seriam relevantes hoje.

Pacheco foi posto na berlinda por esse tipo de interpretação. Patrocinador mais notório da PEC, ele evita qualquer palavra acusatória ao STF e nega pretensão retaliativa ou de abrir conflito entre poderes, preferindo definir os objetivos da matéria como de normalização e aperfeiçoamento institucionais, a partir de um entendimento amplo e ponderado, entre variadas bancadas. O senador Jacques Wagner, líder do governo, está recebendo tratamento análogo por ter operado de modo “estranho”, cooperando com Pacheco na viabilização da PEC, inclusive com seu voto favorável. Adota-se como premissas que ambos erraram e causaram abalo institucional. Mas o juízo e o diagnóstico requerem demonstração. 

Os sismógrafos mais habitualmente consultados são aqueles que detectam e/ou induzem diagnósticos sumários e previsões fatalistas, nas redes sociais, nos ambientes de competição político-partidária, mas também no noticiário e no colunismo estabelecidos na mídia convencional. Enquadram movimentos distintos de atores políticos numa mesma lógica binária, simplória e maniqueísta - a que caracterizou a recente eleição presidencial, como de resto caracteriza a política brasileira, há uma década. Sismógrafos mais sensíveis a matizes, quando consultados, têm tentado sugerir juízos menos drásticos. Sigo por eles.

Precisamos analisar o que se passou no Senado essa semana olhando não apenas para a pauta atual. Os desentendimentos em curso são parte de um processo iniciado há um ano, após o resultado das urnas. 

Foi praticamente consenso, entre análises da época, que o bolsonarismo conquistou nas eleições uma posição mais consistente no Senado do que na Câmara. Nessa última, supunha-se que poderia até fazer barulho, mas que teria limite no peso do centrão e no poder pessoal do presidente Arthur Lira, o mais decisivo dos chefes dessa facção múltipla. Entendido com o governo, Lira poderia isolar a extrema-direita, dando-lhe espaços só na medida necessária para chantagear o próprio governo. É o que tem ocorrido, via de regra, desde que o governo o adotou como interlocutor principal e aliado preferencial. Guerra e paz na Câmara revezam-se de acordo, prioritariamente, com os interesses do presidente Lira. 

O processo no Senado tem sido bem distinto e, em alguns aspectos, oposto. A oposição bolsonarista adquirira, pelas urnas, um peso tal, naquele plenário, que sugeria, a princípio (e esse era o receio básico), a sua capacidade de dirigir ali o conjunto da direita e da centro-direita. A previsão era crível, tanto que essa oposição apresentou uma candidatura competitiva à sucessão de Rodrigo Pacheco (a do senador Rogério Marinho) que, em dado momento, chegou a desafiar a reeleição do presidente. 

Apesar do contraste entre os processos das duas casas, o isolamento político da extrema-direita ocorreu em ambas e de um modo ainda mais consistente no Senado. Foi ali, ao longo do primeiro ano do governo Lula, onde o Executivo encontrou arrimo em momentos mais complicados, quando Lira usou o fantasma do bolsonarismo para mandar recados ao Planalto e aumentar os preços de barganhas. 

Essa façanha realizada no Senado, de reverter um quadro inicialmente mais adverso e dar à articulação do governo uma eficácia maior do que na Câmara, não é obra e graça do compromisso institucional de Rodrigo Pacheco, associado à maior habilidade do líder do governo naquela Casa.  Embora sejam reais, esses dois fatores não fariam milagre sem o amplo acordo político que permitiu a reeleição de Pacheco.  

De um lado, compromisso de não sabotar e mesmo de ajudar o governo nas matérias de seu maior e mais direto interesse, para que ele, o governo, não perdesse, logo na largada, a confiança das bases eleitorais do lulopetismo e mesmo do eleitorado em geral. Esse propósito estava - e está - em jogo na pauta econômica e no preenchimento de cargos públicos estratégicos, dependentes do aval do Senado. As mercadorias têm sido entregues, inclusive sem marolas relevantes por parte das bancadas conservadoras. Nessas condições, Rogério Marinho tem falado (ou vinha falando) para as paredes.   

Mas em contexto de amplo acordo, gerador de base heterogênea, um relativo céu de brigadeiro implica em contrapartidas incômodas. Só ingênuos ignorariam que uma implicação necessária do oportuno acordo que impediu a extrema-direita de converter a mesa do Senado em sua trincheira de resistência seria contemplar, em algum momento, pautas de diversos senadores há muito predispostos a encararem o Judiciário como adversário. A toga é vista por vários deles – quiçá pela maioria – como uma ameaça, seja à sua facção política, seja a prerrogativas do Legislativo, seja a interesses corporativos desse Poder, seja a seus mandatos individuais. De tudo há um pouco no mix que patrocinou a PEC. Parece ter chegado, para Pacheco, neste final de ano legislativo, a hora de viajar do outro lado da lua.

É preciso que adeptos de sismógrafos binários sejam confrontados com a suposição factível de que, se o presidente Pacheco virasse as costas às diversas motivações que mencionei acima, o preço seria permitir que a oposição bolsonarista saísse do isolamento e passasse a representar as demandas da maioria. Estava e está ao alcance do presidente do Senado negociar tentando separar joio e trigo para moderar, ao máximo, ou talvez modelar, esses receios e apetites dos senadores, mas não ignorar.  O texto da PEC, aprovado depois de desidratado, é o resultado desse processo difícil. 

É claro que sempre é possível apresentar, mais uma vez, meras previsões como se fossem fatos.  Assim, anuncia-se que a oposição bolsonarista saiu do isolamento exatamente por causa da PEC. A partir dessa avaliação convicta chega-se a conjecturas também afirmadas como juízos óbvios: os movimentos supostamente estranhos do presidente e do líder do governo no Senado seriam, no caso do primeiro, leniência com a extrema-direita e no do segundo, um insólito tiro no pé.

A sustentar tais conjecturas, surge, aqui e ali, em bastidores, em redes socias e em análises mais toscas (aqui não generalizo o registro, de modo algum, a análises idôneas distintas da minha), outro costumeiro lugar-comum em atitudes antipolíticas, à direita e à esquerda: imputar a intenções de agentes políticos um necessário caráter malévolo ou mesquinho, imputação geral tão natural e comprovada que dispensaria demonstrações caso a caso. Desse modo, ficaria combinado que Rodrigo Pacheco é mero agente de uma conspiração em favor da maligna candidatura de Davi Alcolumbre e Wagner um pragmático interessado em limitar decisões monocráticas por receio pessoal de que processos judiciais que o envolvem caiam em mãos de ministros bolsonaristas. Peço licença para aventar possibilidades de submeter essas situações a um enquadramento, digamos, não distópico. 

A provável candidatura do senador Alcolumbre à sucessão de Pacheco parece, de fato, um subproduto, que admito ser incômodo, da correlação de forças vigente no acordo pragmático - e, é bom repetir, politicamente legítimo e necessário à defesa da democracia - que reelegeu o atual presidente do Senado. Mas, convenhamos, o tema do Judiciário tem substância política própria, para além daquele projeto pessoal ou do grau de compromisso que Pacheco tenha com ele. O tema desafia o presidente do Senado a encontrar uma fórmula que evite confronto entre poderes e, ao mesmo tempo, não jogue importantes bancadas no colo de uma oposição imoderada. Esse cenário, além de ameaçar a tramitação legislativa de pautas propostas pelo Executivo, plantaria retrocessos no caminho já percorrido de normalização institucional, trazendo de volta o espectro da instabilidade política, felizmente afastado do horizonte.

Da mesma maneira que as bancadas conservadoras não estão fazendo marola quando a banda do Senado toca a música do governo, este último também não pode tomar partido do Judiciário na queda de braço que de tanto prevista pode acabar ocorrendo. Chega-se assim à atitude do senador Jacques Wagner, líder do governo. Análise mais atenta a nuances pode compreendê-la como correta e responsável, inclusive com o destino de pautas consequentes do Executivo, do qual cabe-lhe cuidar. 

O timing é um ponto colocado para questionar a oportunidade da iniciativa da PEC. É ponderável, mas precisa ser examinado levando em conta interesses políticos e condutas que terminam capturando o ambiente e reduzindo o espaço para a política do entendimento. A compreensão benigna das atitudes de Pacheco e Wagner não pode almejar consenso, pois não falta, no âmbito dos três poderes, nos partidos políticos e na imprensa, quem proclame a "defesa” do Judiciário como um “valor”, posto em questão pelo extremismo que é alvo da Justiça. A "solidariedade institucional" ao STF é, nesse caso, invólucro retórico, variante com tintas esquerdistas da atitude antipolítica, permeável a guardianias.  

É de se perguntar quem está, de fato, atacando o Judiciário, além dessa extrema-direita, no banco dos réus desde 8 de janeiro e cujo líder está eleitoralmente impedido. A convocação à batalha serve mais para expressar prioridade à polarização com o bolsonarismo, em lugar de pautas políticas positivas que objetivamente isolem a extrema-direita. Isso tende a ocorrer, por exemplo, se tiver êxito econômico a política conciliadora que é praticada pelo ministro Haddad, sob restrições de alguns colegas seus de ministério, que apostam na extensão das vibrações da campanha de 2022 a um horizonte infinito. 

É preciso tornar o contexto institucional menos estimulante para essas condutas polarizantes e contrariar o fatalismo analítico que termina por alimentá-las. Arrisco conjecturar (assumindo a conjectura tal como ela é) que, dependendo da moderação com que a votação da PEC for articulada na Câmara e num eventual retorno seu ao Senado, ela pode ajudar nisso, por mais fortes e insondáveis que sejam as intenções atuais de alguns dos diversos atores envolvidos.

Deixando o caso da Câmara para comentar depois, no momento-teste oportuno da tramitação da matéria naquele ambiente, é importante reconhecer que um ânimo bélico em relação ao STF existe, de fato, no Senado, especialmente entre senadores eleitos em 2022, pelo campo da direita. Mas também há outros incômodos com o STF que vêm desde o tempo da Lava-Jato e do governo Temer. O MDB, por exemplo, alvo de alguns dos excessos e mesmo arbitrariedades daquela operação, tem peso e tradição na Casa. Nela também há críticas ponderáveis à perenização do estilo “xerife” do ministro Alexandre Moraes, sem prejuízo do reconhecimento de seu papel positivo e crucial em contexto de crise e ameaças à Carta de 1988 e ao estado democrático de direito, que ela instituiu. Do mesmo modo são política e institucionalmente idôneas críticas que ali se faz à exposição da vontade ativista, autoproclamada como iluminista, do ministro Luiz Roberto Barroso. É intuitivo compreender que essas restrições acentuem-se na medida em que, passados os perigos concretos de golpe, a conduta do ministro Moraes prossegue, com aval passivo da Corte, como se, de algum modo, aquela situação se mantivesse; e acentuem-se ainda mais quando o ministro Barroso passa a presidir o tribunal e declara a intenção de, em nome da sociedade, investir-se de legitimidade não política (derivada exatamente da condição não política do juiz) para “mediar” um pacto por objetivos sociais que a política não estaria conseguindo viabilizar. 

É prudente tentar evitar que distintas predisposições contra o STF interajam e entrem em aliança perene. É possível recepcionar positivamente algumas delas sem fortalecer as da extrema-direita. Valorizar o potencial de freio contramajoritário da instância judiciaria máxima e o peso legítimo que ela tem na defesa da Constituição e das instituições é atitude compatível com a de preservar a vontade da maioria e poderes políticos que dela derivam de eventuais pretensões de tutela ou guardiania judiciária. Temos aqui não uma batalha agonística entre poderes. Temos um chamado à reflexão e autocontenção recíprocas. Para o STF e o Senado – e logo mais para a Câmara, onde a PEC agora tramitará - trata-se de um desafio à arte da política de Estado, que faz parte do processo de pacificação e não de polarização do país. Se não for encarado agora, dificilmente o será quando se instalar o contexto pré-eleitoral de 2026.

*Cientista político e professor da UFBa

 

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