No plano dos fatos, a celeuma sustenta-se em
desinteligências entre vozes políticas críticas, dadas como majoritárias no
Senado - que acusam o STF de suprimir garantias individuais bem como a mandatos
eletivos e desrespeitar prerrogativas do Legislativo – e contundentes posições
de ministros do mesmo STF. Esses veem cumplicidade legislativa e ambiguidade da
política face a reações de correntes políticas que têm sido responsabilizadas,
pela Justiça, por ações golpistas em passado recente e tentam fragilizar a
Corte para desestabilizar a defesa institucional do regime democrático. Embora
não haja unanimidade entre juristas e operadores do direito sobre esses pontos,
opiniões de peso, como a do ex-ministro Celso de Mello, questionam a
legitimidade constitucional do Congresso para legislar sobre tal matéria.
No plano das versões, a situação é tratada, muitas vezes, como iminência ou mesmo evidência de crise institucional, enquadrando-se o discurso moderado do presidente do Senado - que nega a crise - como dissimulação de uma atitude corporativa e/ou de uma intenção política de se aproximar da direita ideológica para obter apoios, na bancada bolsonarista, ao senador Davi Alcolumbre para sua sucessão. Nessa estratégia estariam sendo subestimados, ou mesmo levados de roldão, valores democráticos e o objetivo de proteger a democracia de ameaças da extrema-direita, que ainda seriam relevantes hoje.
Pacheco foi posto na berlinda por esse tipo de interpretação. Patrocinador mais notório da PEC, ele evita qualquer palavra acusatória ao STF e nega pretensão retaliativa ou de abrir conflito entre poderes, preferindo definir os objetivos da matéria como de normalização e aperfeiçoamento institucionais, a partir de um entendimento amplo e ponderado, entre variadas bancadas. O senador Jacques Wagner, líder do governo, está recebendo tratamento análogo por ter operado de modo “estranho”, cooperando com Pacheco na viabilização da PEC, inclusive com seu voto favorável. Adota-se como premissas que ambos erraram e causaram abalo institucional. Mas o juízo e o diagnóstico requerem demonstração.Os sismógrafos mais habitualmente consultados
são aqueles que detectam e/ou induzem diagnósticos sumários e previsões
fatalistas, nas redes sociais, nos ambientes de competição político-partidária,
mas também no noticiário e no colunismo estabelecidos na mídia convencional.
Enquadram movimentos distintos de atores políticos numa mesma lógica binária,
simplória e maniqueísta - a que caracterizou a recente eleição presidencial,
como de resto caracteriza a política brasileira, há uma década. Sismógrafos mais
sensíveis a matizes, quando consultados, têm tentado sugerir juízos menos
drásticos. Sigo por eles.
Precisamos analisar o que se passou no Senado
essa semana olhando não apenas para a pauta atual. Os desentendimentos em curso
são parte de um processo iniciado há um ano, após o resultado das urnas.
Foi praticamente consenso, entre análises da
época, que o bolsonarismo conquistou nas eleições uma posição mais consistente
no Senado do que na Câmara. Nessa última, supunha-se que poderia até fazer
barulho, mas que teria limite no peso do centrão e no poder pessoal do
presidente Arthur Lira, o mais decisivo dos chefes dessa facção múltipla.
Entendido com o governo, Lira poderia isolar a extrema-direita, dando-lhe
espaços só na medida necessária para chantagear o próprio governo. É o que tem
ocorrido, via de regra, desde que o governo o adotou como interlocutor
principal e aliado preferencial. Guerra e paz na Câmara revezam-se de acordo,
prioritariamente, com os interesses do presidente Lira.
O processo no Senado tem sido bem distinto e,
em alguns aspectos, oposto. A oposição bolsonarista adquirira, pelas urnas, um
peso tal, naquele plenário, que sugeria, a princípio (e esse era o receio
básico), a sua capacidade de dirigir ali o conjunto da direita e da
centro-direita. A previsão era crível, tanto que essa oposição apresentou uma
candidatura competitiva à sucessão de Rodrigo Pacheco (a do senador Rogério
Marinho) que, em dado momento, chegou a desafiar a reeleição do
presidente.
Apesar do contraste entre os processos das
duas casas, o isolamento político da extrema-direita ocorreu em ambas e de um
modo ainda mais consistente no Senado. Foi ali, ao longo do primeiro ano do
governo Lula, onde o Executivo encontrou arrimo em momentos mais complicados,
quando Lira usou o fantasma do bolsonarismo para mandar recados ao Planalto e
aumentar os preços de barganhas.
Essa façanha realizada no Senado, de reverter
um quadro inicialmente mais adverso e dar à articulação do governo uma eficácia
maior do que na Câmara, não é obra e graça do compromisso institucional de
Rodrigo Pacheco, associado à maior habilidade do líder do governo naquela
Casa. Embora sejam reais, esses dois fatores não fariam milagre sem o
amplo acordo político que permitiu a reeleição de Pacheco.
De um lado, compromisso de não sabotar e
mesmo de ajudar o governo nas matérias de seu maior e mais direto interesse,
para que ele, o governo, não perdesse, logo na largada, a confiança das bases
eleitorais do lulopetismo e mesmo do eleitorado em geral. Esse propósito estava
- e está - em jogo na pauta econômica e no preenchimento de cargos públicos
estratégicos, dependentes do aval do Senado. As mercadorias têm sido entregues,
inclusive sem marolas relevantes por parte das bancadas conservadoras. Nessas
condições, Rogério Marinho tem falado (ou vinha falando) para as
paredes.
Mas em contexto de amplo acordo, gerador de
base heterogênea, um relativo céu de brigadeiro implica em contrapartidas
incômodas. Só ingênuos ignorariam que uma implicação necessária do oportuno
acordo que impediu a extrema-direita de converter a mesa do Senado em sua
trincheira de resistência seria contemplar, em algum momento, pautas de
diversos senadores há muito predispostos a encararem o Judiciário como
adversário. A toga é vista por vários deles – quiçá pela maioria – como uma
ameaça, seja à sua facção política, seja a prerrogativas do Legislativo, seja a
interesses corporativos desse Poder, seja a seus mandatos individuais. De tudo
há um pouco no mix que patrocinou a PEC. Parece ter chegado, para Pacheco,
neste final de ano legislativo, a hora de viajar do outro lado da lua.
É preciso que adeptos de sismógrafos binários
sejam confrontados com a suposição factível de que, se o presidente Pacheco
virasse as costas às diversas motivações que mencionei acima, o preço seria
permitir que a oposição bolsonarista saísse do isolamento e passasse a
representar as demandas da maioria. Estava e está ao alcance do presidente do
Senado negociar tentando separar joio e trigo para moderar, ao máximo, ou
talvez modelar, esses receios e apetites dos senadores, mas não ignorar.
O texto da PEC, aprovado depois de desidratado, é o resultado desse processo
difícil.
É claro que sempre é possível apresentar,
mais uma vez, meras previsões como se fossem fatos. Assim, anuncia-se que
a oposição bolsonarista saiu do isolamento exatamente por causa da PEC. A
partir dessa avaliação convicta chega-se a conjecturas também afirmadas como
juízos óbvios: os movimentos supostamente estranhos do presidente e do líder do
governo no Senado seriam, no caso do primeiro, leniência com a extrema-direita
e no do segundo, um insólito tiro no pé.
A sustentar tais conjecturas, surge, aqui e
ali, em bastidores, em redes socias e em análises mais toscas (aqui não
generalizo o registro, de modo algum, a análises idôneas distintas da minha),
outro costumeiro lugar-comum em atitudes antipolíticas, à direita e à esquerda:
imputar a intenções de agentes políticos um necessário caráter malévolo ou
mesquinho, imputação geral tão natural e comprovada que dispensaria
demonstrações caso a caso. Desse modo, ficaria combinado que Rodrigo Pacheco é
mero agente de uma conspiração em favor da maligna candidatura de Davi
Alcolumbre e Wagner um pragmático interessado em limitar decisões monocráticas
por receio pessoal de que processos judiciais que o envolvem caiam em mãos de
ministros bolsonaristas. Peço licença para aventar possibilidades de submeter
essas situações a um enquadramento, digamos, não distópico.
A provável candidatura do senador Alcolumbre
à sucessão de Pacheco parece, de fato, um subproduto, que admito ser incômodo,
da correlação de forças vigente no acordo pragmático - e, é bom repetir,
politicamente legítimo e necessário à defesa da democracia - que reelegeu o
atual presidente do Senado. Mas, convenhamos, o tema do Judiciário tem
substância política própria, para além daquele projeto pessoal ou do grau de
compromisso que Pacheco tenha com ele. O tema desafia o presidente do Senado a
encontrar uma fórmula que evite confronto entre poderes e, ao mesmo tempo, não
jogue importantes bancadas no colo de uma oposição imoderada. Esse cenário,
além de ameaçar a tramitação legislativa de pautas propostas pelo Executivo,
plantaria retrocessos no caminho já percorrido de normalização institucional,
trazendo de volta o espectro da instabilidade política, felizmente afastado do
horizonte.
Da mesma maneira que as bancadas
conservadoras não estão fazendo marola quando a banda do Senado toca a música
do governo, este último também não pode tomar partido do Judiciário na queda de
braço que de tanto prevista pode acabar ocorrendo. Chega-se assim à atitude do
senador Jacques Wagner, líder do governo. Análise mais atenta a nuances pode
compreendê-la como correta e responsável, inclusive com o destino de pautas
consequentes do Executivo, do qual cabe-lhe cuidar.
O timing é um ponto colocado para questionar
a oportunidade da iniciativa da PEC. É ponderável, mas precisa ser examinado
levando em conta interesses políticos e condutas que terminam capturando o
ambiente e reduzindo o espaço para a política do entendimento. A compreensão
benigna das atitudes de Pacheco e Wagner não pode almejar consenso, pois não
falta, no âmbito dos três poderes, nos partidos políticos e na imprensa, quem
proclame a "defesa” do Judiciário como um “valor”, posto em questão pelo
extremismo que é alvo da Justiça. A "solidariedade institucional" ao
STF é, nesse caso, invólucro retórico, variante com tintas esquerdistas da
atitude antipolítica, permeável a guardianias.
É de se perguntar quem está, de fato,
atacando o Judiciário, além dessa extrema-direita, no banco dos réus desde 8 de
janeiro e cujo líder está eleitoralmente impedido. A convocação à batalha serve
mais para expressar prioridade à polarização com o bolsonarismo, em lugar de
pautas políticas positivas que objetivamente isolem a extrema-direita. Isso
tende a ocorrer, por exemplo, se tiver êxito econômico a política conciliadora
que é praticada pelo ministro Haddad, sob restrições de alguns colegas seus de
ministério, que apostam na extensão das vibrações da campanha de 2022 a um
horizonte infinito.
É preciso tornar o contexto institucional
menos estimulante para essas condutas polarizantes e contrariar o fatalismo
analítico que termina por alimentá-las. Arrisco conjecturar (assumindo a
conjectura tal como ela é) que, dependendo da moderação com que a votação da
PEC for articulada na Câmara e num eventual retorno seu ao Senado, ela pode
ajudar nisso, por mais fortes e insondáveis que sejam as intenções atuais de
alguns dos diversos atores envolvidos.
Deixando o caso da Câmara para comentar
depois, no momento-teste oportuno da tramitação da matéria naquele ambiente, é
importante reconhecer que um ânimo bélico em relação ao STF existe, de fato, no
Senado, especialmente entre senadores eleitos em 2022, pelo campo da direita.
Mas também há outros incômodos com o STF que vêm desde o tempo da Lava-Jato e
do governo Temer. O MDB, por exemplo, alvo de alguns dos excessos e mesmo
arbitrariedades daquela operação, tem peso e tradição na Casa. Nela também há críticas
ponderáveis à perenização do estilo “xerife” do ministro Alexandre Moraes, sem
prejuízo do reconhecimento de seu papel positivo e crucial em contexto de crise
e ameaças à Carta de 1988 e ao estado democrático de direito, que ela
instituiu. Do mesmo modo são política e institucionalmente idôneas críticas que
ali se faz à exposição da vontade ativista, autoproclamada como iluminista, do
ministro Luiz Roberto Barroso. É intuitivo compreender que essas restrições
acentuem-se na medida em que, passados os perigos concretos de golpe, a conduta
do ministro Moraes prossegue, com aval passivo da Corte, como se, de algum
modo, aquela situação se mantivesse; e acentuem-se ainda mais quando o ministro
Barroso passa a presidir o tribunal e declara a intenção de, em nome da
sociedade, investir-se de legitimidade não política (derivada exatamente da
condição não política do juiz) para “mediar” um pacto por objetivos sociais que
a política não estaria conseguindo viabilizar.
É prudente tentar evitar que distintas
predisposições contra o STF interajam e entrem em aliança perene. É possível
recepcionar positivamente algumas delas sem fortalecer as da extrema-direita.
Valorizar o potencial de freio contramajoritário da instância judiciaria máxima
e o peso legítimo que ela tem na defesa da Constituição e das instituições é
atitude compatível com a de preservar a vontade da maioria e poderes políticos
que dela derivam de eventuais pretensões de tutela ou guardiania judiciária. Temos
aqui não uma batalha agonística entre poderes. Temos um chamado à reflexão e
autocontenção recíprocas. Para o STF e o Senado – e logo mais para a Câmara,
onde a PEC agora tramitará - trata-se de um desafio à arte da política de
Estado, que faz parte do processo de pacificação e não de polarização do país.
Se não for encarado agora, dificilmente o será quando se instalar o contexto
pré-eleitoral de 2026.
*Cientista político e professor da UFBa
Nenhum comentário:
Postar um comentário