Valor Econômico
A vitória de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018
não foi um resultado atípico ou um “surto” temporário
A vitória de Javier Milei nas eleições
presidenciais na Argentina dará início a uma fase muito mais difícil nas
relações diplomáticas entre o Brasil e seu vizinho. No curto prazo, a maior
preocupação do Planalto é com o acordo entre a União Europeia e o Mercosul.
Embora as negociações estejam avançando e uma conclusão seja possível ainda
este ano, o presidente eleito é crítico feroz do bloco sul-americano, e sua
eleição põe dúvidas à execução do acordo.
Mas a escolha dos argentinos por um radical
libertário, que defende a dolarização da economia e chamou o Papa Francisco de
“maligno na terra”, diz muito sobre o ambiente de opinião pública na América
Latina - embora a lição não seja a que parece à primeira vista.
No ciclo eleitoral de 2021-2022, Chile, Peru, Colômbia e Brasil elegeram governos de esquerda, sugerindo uma “onda vermelha”, ou rosa, na região. Agora, a direita estaria retomando posições, com as eleições de Milei e de Daniel Noboa, no Equador, e as dificuldades enfrentadas pelos governos de esquerda no Chile, Peru e Colômbia.
Mas esse tipo de análise ignora que essa
alternância é na verdade resultado de um ambiente de grande revolta e profundo
desencanto. Eleitores não estão migrando entre a esquerda e a direita: estão
demonstrando sua enorme insatisfação com o sistema político, instituições como
o Judiciário, a mídia, os ricos e poderosos. Prevalece o candidato que se opõe
ao governo de turno, e que os eleitores veem como possuidor de credibilidade
para lutar contra o “sistema”.
Na Argentina, a oposição começou a campanha
em vantagem diante do fracasso econômico do governo peronista. Mas o que
permitiu que ele fosse mais bem-sucedido que a candidata de centro-direita,
Patricia Bullrich, foi sua retórica beligerante contra um sistema “corrupto e
falido”.
Um levantamento anual da Ipsos Public Affairs
feito em 25 países, incluindo industrializados e emergentes, mostra que uma
grande parcela do eleitorado acredita que “o sistema está quebrado”. Nos locais
avaliados, 64% da população acredita que suas economias estão estruturadas para
beneficiar os ricos e poderosos; 63% dizem que políticos não se importam com
pessoas comuns; 59% acham que precisam de um líder forte para tirar o país das
mãos dos ricos e poderosos; e 45% desejam um líder disposto a “quebrar as regras”
se necessário.
Esses números têm se mostrado bem
consistentes desde o início da pesquisa, em 2016 - e mais elevados na América
Latina. Pesquisas qualitativas sugerem que a origem desse sentimento na região
seja a frustração de expectativas de uma classe média que cresceu tremendamente
durante o boom das commodities (2004-2012). Durante essa fase de crescimento
robusto, as preocupações das famílias migraram para temas como segurança, saúde
e educação.
A competitividade de candidatos que nutrem a
imagem de alguém que luta contra o sistema continuará forte
Desde então, eleitores vêm associando cada
vez mais serviços públicos ruins à corrupção. Não por acaso, foi no Chile, país
com crescimento econômico mais exitoso, que aconteceram as maiores
manifestações populares, que levaram a duas constituintes. Evidentemente, a
revolta cresce em períodos de crise econômica, como visto na Argentina. Mas o
que ocorreu no Chile mostra que esse desencanto tem raízes mais profundas.
Desse diagnóstico, é possível tirar três
conclusões.
A primeira é que a competitividade de
candidatos que nutrem a imagem de alguém que luta contra o sistema continuará
forte. A vitória de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 não foi um resultado
atípico ou um “surto” temporário no rescaldo da Lava-Jato, mas parte de um
fenômeno que vai além do Brasil e extrapola os aspectos conjunturais.
Candidatos de partidos de esquerda não tradicionais, ou que fizeram campanha
por mudanças profundas, foram eleitos no Chile, Peru e Colômbia no último ciclo
eleitoral. A direita fez o mesmo agora, na Argentina e Equador.
No Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, ainda
que parte de um partido tradicional, se projetou como “vítima” de um
establishment que o colocou na prisão - e fez uma campanha mais forte contra os
ricos e poderosos do que em pleitos anteriores. Tanto Bolsonaro como Lula se
posicionaram contra os donos do dinheiro e do poder - a diferença foi o alvo
escolhido. Bolsonaro teve a mídia e Judiciário como alvos, e Lula os ricos.
Isso sugere que o apelo de Bolsonaro não vai se dissipar tão cedo. Mesmo que
ele não possa concorrer em 2026, o candidato que ele eventualmente apoiar terá
vantagem considerável, dificultando as chances de um postulante moderado de
direita.
A segunda é que esse ambiente eleitoral
sugere que estamos vivendo uma era de governos mais fracos. Candidatos que
investem em uma imagem contra o sistema são mais competitivos. Os que perpetuam
essa imagem no poder têm mais êxito na busca por popularidade (veja Manuel
Lopez Obrador no México). Mas isso geralmente se traduz em demandas muito
difíceis de satisfazer, e em ambientes sociais mais polarizados e divididos. Os
presidentes recém-eleitos no Brasil, Chile, Colômbia e Peru iniciaram seus
mandados com taxas de aprovação abaixo de 60%, um patamar relativamente baixo
historicamente. E, no caso dos três últimos, esse apoio caiu abaixo 40% depois
após ano e meio de mandato.
Na Argentina, as dificuldades do ajuste
econômico que está por vir agravam o desafio do presidente eleito. Para
dolarizar a economia, Milei terá que encampar um ajuste fiscal enorme em meio
de uma inflação ainda galopante. A sensação de bem-estar econômico vai cair no
primeiro ano de mandato, exacerbando as dificuldades políticas para o governo,
que não tem maioria no parlamento. A capacidade de fazer grandes mudanças nesse
ambiente é baixa.
Por fim, é preciso muita cautela ao concluir
que esses movimentos políticos, sejam à direita ou à esquerda, colocam em risco
a democracia. Instituições democráticas geralmente correm mais perigo quando
lideranças têm grande apoio popular, e usam esse domínio no campo político para
centralizar poder na mão do Executivo, a exemplo da Venezuela - não sob
governos mais fracos.
*Christopher Garman é diretor-executivo para as Américas do grupo Eurasia.
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