Folha de S. Paulo
O que levou o país a escolher entre o dito
libertário e o peronismo em ruína?
A única surpresa no segundo turno das
eleições presidenciais argentinas foi a margem de vitória entre os candidatos.
Foi muito superior ao esperado, o que confere a Javier Milei um mandato claro.
Mas ele será minoritário no Congresso, gerando incentivos para que embarque em
unilateralismo plebiscitário —o que será provavelmente um dos riscos menores de
seu governo.
No mais, nenhuma surpresa. Já havia antecipado na coluna o malogro histórico do peronismo. Milei ganhou em 21 das 24 províncias: é "o candidato do interior sublevado, do subsolo da pátria", como afirmou o cientista político Andrés Malamud.
O peronismo não é mais o mesmo, o que é boa
notícia para Milei. Um dos seus traços marcantes é o vale-tudo institucional,
sobretudo através de "piqueteros". Mas seu braço sindical está muito
enfraquecido. Vale lembrar o bordão "o peronismo, quando perde eleição,
não deixa governar". Aconteceu com o radical Raúl Alfonsín (1983-1989),
que deixou a Presidência cinco meses antes de o mandato expirar.
O apoio de Patricia Bullrich e Mauricio Macri
no segundo turno já apontava para um inédito presidencialismo de coalizão no
país. A primeira eleição ampla com representação proporcional ocorreu em 1963,
duas décadas depois da brasileira. E durou pouco tempo. Depois do regime
militar (1976-1983), permaneceu a clivagem histórica entre radicais (UCR) e
peronistas (PJ).
Após a debacle do último governo radical de
De la Rúa (1999-01), o sistema partidário se desnacionalizou, faccionalizou, personificou e
fragmentou. O campo não peronista cindiu entre o PROS e a UCR, a qual encolheu.
O peronismo, entre facções rivais. O partido de Milei elegeu 14% das cadeiras
da Câmara, mas, com o apoio pleno do PROS, de micropartidos provinciais (proibidos
no Brasil desde 1946) e de parte da UCR, poderá obter uma maioria.
Terá apoio também de governadores de
províncias importantes que continuam cruciais malgrado o fim do colégio
eleitoral, em 1994, e da eleição de senadores pelas assembleias legislativas
das províncias que controlam. Governadores de províncias pequenas também
poderão passar a apoiar o governo.
O caráter minoritário do governo não é,
portanto, insuperável; a magnitude do ajuste macroeconômico com custos
elevadíssimos, sim. O mais impressionante é que Milei foi eleito com uma
proposta política de ajuste ultrarradical e não escamoteou o que faria. Aqui
não há estelionato eleitoral. A seu favor: pela primeira vez na história há um
sentimento público da necessidade de mudança radical. A chave para o drama
argentino é perguntar: o que levou o país a se defrontar com a escolha entre
alguém como Milei e o peronismo em ruína?
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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