O Estado de S. Paulo
Se bem concebido e utilizado, fundo criado pela EC 132/23 poderá moderar o processo de mudança, protegendo partes das cadeias produtivas existentes e impedindo graves dramas sociais
A recente aprovação da Emenda Constitucional
(EC) 132/2023 colocou em destaque um dos aspectos das políticas governamentais
que foi, por 40 anos, a grande questão federativa brasileira: a guerra fiscal.
Em paralelo, o tema do desenvolvimento regional ganhou um Fundo Nacional (Art.
159-A), como instrumento governamental para reduzir as desigualdades entre as
regiões brasileiras.
Os dois temas têm ampla articulação e é
crucial que ela seja compreendida para que os novos instrumentos sejam
superiores aos usados no passado. Construir bases sólidas para a nova
institucionalidade é fundamental para o futuro do País e da Federação.
Mas é necessária uma pequena visita aos anos 80 do século passado para entender os primórdios da questão que hoje se coloca. Na esteira da crise das contas públicas, a década de 1980 foi palco de uma reversão de todas as políticas de incentivo ao investimento amparadas em recursos tributários.
A implantação do Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS), sob princípio da cobrança pelo destino do consumo de bens e
serviços, em substituição ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS) e ao Imposto sobre Serviços (ISS), tem uma característica que põe fim à
guerra fiscal entre os Estados. Explicando melhor, o ICMS, quando um produto é
produzido em um Estado e vendido ao consumidor em outro, gera receita
tributária para os dois Estados, de forma compartilhada.
Esta forma híbrida abriu o espaço para a
guerra fiscal. Diversos Estados ofereceram incentivos fiscais às empresas que
buscavam vender seus produtos em Estados com elevado consumo de bens finais.
Por exemplo, num produto produzido e vendido num Estado a R$ 100, o ICMS seria
de R$ 18. Para atrair o investimento, outro governo poderia oferecer a partilha
do ICMS que seria arrecadado. Na operação de venda interestadual, o Estado no
qual a produção viesse a ter lugar faria jus a R$ 12, enquanto o Estado onde o consumo
se deu teria R$ 6 de receita.
A guerra fiscal era justamente a oferta de
devolução de uma parte destes R$ 12 à empresa que estava tomando a decisão de
investir. Se R$ 10 (dos R$ 12) fossem devolvidos sob a forma de créditos
presumidos, o produto poderia ser vendido a R$ 90 ou o produtor lucraria R$ 10
a mais. Em todos os casos, a guerra fiscal teve grande impacto sobre a
localização regional da capacidade produtiva de nossa economia.
Milhões de páginas já foram escritas sobre o
tema e, evidentemente, houve perda de arrecadação no conjunto do ICMS. Só que
temos de atentar para a realidade. Num país em que o governo central demonstrou
baixa capacidade de trabalhar no sentido da redução do desequilíbrio regional,
a guerra fiscal acabou por cumprir o papel de instrumento de descentralização
da base econômica. E temos de admitir que, por vezes, a decisão de uma empresa
de investir no Brasil ou em outro país foi influenciada positivamente pelo
subsídio ao investimento contido na guerra fiscal.
A entrada em operação do IBS, que se
estenderá de 2029 a 2033, colocará fim à guerra fiscal e neste recurso que
poderíamos definir como um subsídio torto ao investimento. Vale ressaltar, como
o IBS será cobrado pelo Estado onde estiver o destinatário do bem ou serviço,
não haverá o que dividir entre o Estado produtor e Estado consumidor, impedindo
que o governo ofereça qualquer tipo de benesse na tributação do valor
adicionado.
Este é, certamente, um dos pontos mais
importantes da Emenda Constitucional 132/2023 e merece todo apoio. No entanto,
é necessário olhar a realidade que se construiu por 40 anos de práticas de
guerra fiscal em torno do ICMS. Há que ter em mente que a herança dessas
práticas está manifesta em plantas produtivas, canais de comercialização,
estradas, logísticas e trabalhadores.
A Emenda Constitucional criou o Fundo
Nacional de Desenvolvimento Regional. Os recursos federais alocados ao fundo
serão de R$ 8 bilhões, em 2029, aumentando ano a ano até chegar, em 2040, a R$
60 bilhões. Os objetivos manifestos são: 1) realizar estudos, projetos e obras
de infraestrutura; 2) fomentar atividades produtivas com elevado potencial de
geração de emprego e renda, incluindo a concessão de subvenções econômicas e
financeiras; e 3) promover ações com vistas ao desenvolvimento científico e
tecnológico e à inovação.
Os objetivos são corretos, mas caberiam em
qualquer situação. É muito importante ir além e enfatizar que este fundo poderá
ter um grande papel. A reorganização espacial da produção, a partir do fim dos
incentivos, em razão da mudança de critério de cobrança do Imposto sobre Valor
Adicionado (IVA), para o conceito de destino puro, como acima indicado, é
inevitável. Cidades vazias, fluxos migratórios caóticos e perdas de unidades
econômicas são comuns nestes processos de mudança.
Se bem concebido e utilizado, o fundo poderá
moderar o processo de mudança, protegendo partes das cadeias produtivas
existentes e impedindo graves dramas sociais. Dar o sentido correto ao fundo e
planejar sua ação farão toda a diferença.
*Economista
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