quinta-feira, 14 de março de 2024

Edward Luce* - Na normalização do trumpismo reside a morte da democracia

Valor Econômico

A candidatura de Trump é tão fora do comum que é quase paranormal. Esta é a essência do apelo político dele

Chame isso de banalidade do caos. Eis aqui uma lista das atividades recentes de Donald Trump. Ele prometeu, no primeiro dia de sua presidência, caso vença a eleição, tirar da cadeia os condenados pela invasão do Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, fechar a fronteira dos EUA com o México e “mandar ver, meu bem” na exploração de gás e petróleo. Ele fez festa para Viktor Orbán em Mar-a-Lago, chamando-o de o melhor líder mundial, e assegurou ao líder húngaro que não dará “um centavo” para a Ucrânia. Ele usou um seguro-garantia de US$ 91,6 milhões para indenizar por difamação sua vítima de assédio sexual, Elizabeth Jean Carroll.

Ele fez um expurgo no Comitê Nacional Republicano, demitindo 60 funcionários — o movimento inicial de sua nora Lara Trump, que ele escolheu a dedo como presidente-adjunta do comitê. Ele voltou atrás em relação ao TikTok, dizendo agora que sua controladora chinesa deveria manter a posse. Ele imitou a gagueira de Joe Biden, insistiu que a verdadeira taxa de inflação nos EUA foi de 50% e atacou Jimmy Kimmel, classificando-o de o pior apresentador do Oscar de todos os tempos. Parece quase trivial acrescentar que surgiram novos detalhes sobre a aparente queda de Trump por Adolf Hitler.

Tudo isso aconteceu desde sexta-feira. Agora, multiplique isso por 47, que é o número de intervalos de cinco dias entre agora e as eleições gerais. Até mesmo o mais diligente observador de Trump ficaria catatônico após alguns desses acréscimos. Portanto, não é nenhuma surpresa que a maioria desses episódios recentes não tenha chegado às manchetes dos jornais. Em outros tempos, com um candidato normal, qualquer um deles dominaria o noticiário. A candidatura de Trump é tão fora do comum que é quase paranormal. Esta é a essência do apelo político dele. Significa que ele é julgado por um padrão diferente do de Biden, ou qualquer outro político, seja democrata ou republicano.

Katie Britt, senadora republicana, monopolizou as ondas de rádio por dois dias na semana passada, após dar a resposta republicana ao discurso de Biden sobre o Estado da União. Além do estilo de entrega sobrenatural de Britt, o erro dela foi enganar os ouvintes com um caso de uma mulher que foi vítima de tráfico sexual no México. Toda vez que Trump faz um discurso, ele dispara um mínimo de mentiras descaradas. Suas inverdades merecem um encolher de ombros: as dos outros são classificadas como escândalos.

Esse padrão duplo é, em grande parte, subconsciente. Em 2018, o então principal estrategista de Trump, Steve Bannon, descreveu suas táticas midiáticas como “inundar a zona com merda”. Quanto mais bizarrices Trump gera, menos as pessoas notam. Economistas chamariam isso de hiperinflação, exceto que o item que está sendo desvalorizado é a nossa capacidade de ficar horrorizado.

Um bom exemplo é a diferença como a sintaxe de Biden é medida em relação à de Trump. Biden confunde datas e nomes e nunca foi articulado. Ainda assim, o ponto que ele tenta enfatizar é geralmente claro. Suas confusões merecem tratamento de primeira página.

Trump recorre regularmente a jargões que poderiam desencadear uma grande reação se viessem de Biden. Este foi o raciocínio de Trump, feito esta semana, sobre a inflação real: “E vamos olhar fora do mercado de ações. Estamos passando por um inferno”, disse ele no programa “Squawk Box” da CNBC. “As pessoas estão passando por um inferno. Elas têm — acredito que o número seja 50%. Eles dizem 32% e 33%. Acredito que temos uma inflação acumulada de mais de 50%. Isso significa que as pessoas estão, você sabe, elas precisam ganhar mais de 50% a mais em um período de tempo relativamente curto para se manter... E elas têm sido muito, muito maltratadas pela política.” Boa sorte ao tentar entender a política de inflação de Trump.

Depois da eleição de Trump em 2016, o “Washington Post” adotou o lema “A democracia morre na escuridão”. Mas ele estava incompleto. Independentemente da abordagem que os meios de comunicação dos EUA adotem em relação a Trump, a controvérsia está assegurada. Ignorar o que ele diz é negligência. Transmitir seus discursos ao vivo é um subsídio em espécie. O mesmo se aplica às reportagens tradicionais do tipo “ele disse, ela disse”. Verificar fatos é para perdedores. A beleza do dilema da comunicação do ponto de vista de Trump é que tudo o que ele faz provoca controvérsia. Bannon descreveu a grande mídia como “partido de oposição”. O adversário ideal é sempre aquele que está em guerra consigo mesmo. Em agradecimento, Trump rotineiramente chama os jornalistas de “criminosos”.

A combinação estranha das eleições de 2024 será igualmente monótona e assustadora. Se Trump for fiel à sua palavra, daqui a dez meses ele estará prendendo milhões de imigrantes para deportação. A guerra da Ucrânia contra a Rússia de Vladimir Putin terá terminado. O mesmo destino recairá sobre os julgamentos criminais federais de Trump. Seu Departamento de Justiça estará investigando seus adversários. E ele terá invocado a Lei de Insurreição para acabar com protestos civis usando tropas dos EUA. A “zona de merda” de Bannon há muito já terá

*Edward Luce, Financial Times


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