Correio Braziliense
As forças liberais não são capazes de dar
respostas imediatas às demandas da sociedade, e a tendência da esquerda é
retroalimentar a polarização, sem oferecer soluções novas
O espírito reacionário difere muito do
conservador. Segundo o cientista político norte-americano Mark Lilla, no livro
A mente Naufragada (Record), trata-se de invocar o passado para nele viver sem
transformações, o que é muito diferente da atitude do conservador, que tem o
passado e suas tradições como referência para agir no presente e construir o
futuro.
Foi o que aconteceu entre 1918-1939, em razão
da enorme frustração gerada pela carnificina da Primeira Guerra Mundial e o
fracasso da ordem democrática em bases iluministas (penso, logo existo) e
aristocráticas. A ordem liberal tecida na virada do século estava em
contradição com o sujeito moderno da sociedade industrial, sociológico,
estruturado em classes bem definidas. A rica experiência da Social-Democracia
Alemã, um partido operário de orientação marxista, sucumbiu ao nacionalismo. A
emergência dos partidos comunistas, após a Revolução Russa de 1917, não foi
capaz de barrar a ascensão do fascismo na Itália, na Alemanha e outros países
europeus.
Três pensadores do século XX destacam-se nesse período como protagonistas do pensamento reacionário: Franz Rosenzweig, Eric Voegelin e Leo Strauss. Lilla conclui que olhavam para os destroços de um passado que lhes parece ameaçado, quando já ultrapassado, e lutavam para salvá-lo, por não conseguirem se adaptar às mudanças. Por uma ironia da História, é isso que hoje faz do reacionarismo um fenômeno “moderno” e resiliente no mundo, inclusive nas grandes democracias do Ocidente.
O ex-presidente Jair Bolsonaro e as forças
que o apoiam, principalmente os “patriotas” e evangélicos, defendem,
respectivamente, a volta do regime militar e uma regressão nos costumes
(criminalização do aborto, do casamento gay e da maconha). São parte de um
fenômeno que surge do agravamento das desigualdades, das mudanças nas
estruturas de produção, da crise de representação política dos partidos, da
velocidade, desregulamentação e horizontalidade das redes sociais, sem grandes
reflexões.
Tanto liberais como a esquerda têm
dificuldades para enfrentar essas questões. O avanço das novas tecnologias não
pede licença. Transforma a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Em sua escala, alcance e complexidade, já é diferente de qualquer coisa que o
ser humano tenha experimentado antes. Diante de sua imprevisibilidade, a reação
mais natural é se agarrar ao que já existe, ou seja, a tomada de atitudes
conservadoras. É aí que está o nó da conjuntura política.
Reformas aprovadas pelo Congresso para
atender os agentes econômicos não equacionam os problemas políticos e sociais
do país. Há um divórcio entre as forças políticas que protagonizam essas
mudanças e a maioria da sociedade, que não compreende direito o que está
acontecendo e repudia as práticas políticas dominantes. E o custo social dessa
mudança, objetivamente, não pode ser revertido a curto prazo, o que alimenta a
insatisfação social e as soluções populistas.
Modelo ultrapassado
Nesse ambiente, as forças liberais não são
capazes de dar respostas imediatas às demandas da sociedade, e a tendência da
esquerda é retroalimentar a polarização, sem oferecer soluções novas. Tece o
seu fracasso ao buscar no próprio passado alternativas derrotadas em razão da
correlação de forças políticas desfavorável, mas que hoje, mesmo que fosse
favorável, levariam ao fracasso, porque suas propostas já são ultrapassadas.
Com sinal trocado, também são mentes naufragadas.
O slogan do governo Lula, União e
reconstrução, subliminarmente reproduz o ambiente de radicalização e sugere uma
volta ao passado. Que passado é esse? O dos nosso capitalismo de laços, que já
produziu a política de “campeões nacionais” e a chamada “nova matriz econômica?
Esgotaram-se os efeitos do boom das commodities e do bônus demográfico (a
redução do número de dependentes em relação à população economicamente ativa),
que alimentaram as altas taxas de crescimento no segundo mandato de Lula. A
realidade é outra.
A redução de ritmo de crescimento da China e
a nova guerra fria, que virou guerra quente na Ucrânia e em Gaza, encerraram a
grande onda de expansão da economia global e provocaram uma crise nas cadeias
de valor do comércio mundial, que estão sendo reestruturadas. Essa foi uma
variável do fracasso da política de capitalismo de Estado do governo Dilma
Rousseff, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ensaia retomar. A
tentativa de adensamento da cadeia produtiva nacional, em vez de sua
transnacionalização, serviu muito mais à formação de cartórios e à corrupção
sistêmica do que à salvação da indústria nacional.
O nacional desenvolvimentismo não morreu nos
corações e mentes de uma parcela da população brasileira, assim como o milagre
econômico do regime militar. Os dois projetos foram ancorados no capitalismo de
Estado e numa economia autárquica. O resultado é que a industria nacional
entrou em decadência e ficou fora das cadeias de valor, enquanto a produção de
commodities de alimentos e minérios, uma vocação natural do Brasil na divisão
internacional do trabalho, deslocou o eixo de nossas relações comerciais dos Estados
Unidos e a China.
A chave para o Brasil é a integração às novas
cadeias de valor, que estão se regionalizando, sob a liderança dos Estados
Unidos e da União Europeia, mas isso somente será possível com uma economia
aberta e competitiva. Fatos e declarações recentes do presidente Lula e seus
ministros sinalizam a direção contrária.
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