Valor Econômico
O pleito de outubro deveria ser centrado na
discussão da melhoria das condições locais de vida da população
As eleições municipais constituem um momento
especial da democracia brasileira porque os governos locais tornaram-se, a
partir de 1988, fundamentais para a vida dos cidadãos. As principais políticas
de saúde, educação, assistência social e transporte público passam pelos
prefeitos e vereadores, bem como as decisões sobre a organização das cidades
onde moramos. O país teria, então, de se preparar para discutir exaustivamente
essas temáticas até outubro. Só que uma parcela da classe política tem
escolhido caminhos que dificultam um debate sólido sobre que tipo de municípios
queremos ter depois de 2024.
É possível elencar quatro aspectos que
dificultam colocar os municípios e seus desafios no centro do debate das
eleições de outubro. O primeiro deles é o crescimento do peso da lógica
parlamentar emendista sobre a vida política local. Houve aqui não somente uma
elevação das emendas cujo gasto é impositivo, hoje numa faixa próxima dos R$ 50
bilhões. Também ocorreu uma transformação na forma como podem ser transferidos
os recursos, especialmente por meio das chamadas “emendas Pix”, que caem direto
no caixa das prefeituras.
Aparentemente, tudo isso é muito bom, porque mais recursos chegam aos governos locais. Porém, esse processo é feito de um modo que cria uma dependência dos municípios em relação aos senadores e, principalmente, deputados federais. Muitas das mudanças feitas nos últimos 30 anos no federalismo brasileiro foram na direção do aumento da autonomia municipal, e o emendismo vigente é um retrocesso neste processo. Claro que parlamentares federais (e estaduais, também cada vez mais emendistas) são eleitos tanto quanto os prefeitos e vereadores. Contudo, deveria ser dado um poder maior a quem apresenta um plano de governo para o conjunto da cidade e ganha a legitimidade popular para executá-lo para o conjunto do eleitorado local.
As emendas parlamentares deveriam dialogar
com a articulação federativa das políticas públicas e com maiores prioridades
dos governos locais, se possível com metas de médio e longo prazo. Óbvio que
sempre é bom ter complementos federais para carências locais, como na área de
saúde, particularmente depois do enfraquecimento do orçamento municipal gerado
pela desastrosa ação do presidente Bolsonaro sobre o ICMS - um verdadeiro furto
federativo. Não obstante, o novo emendismo tem muito dinheiro e poderia ser mais
bem utilizado caso fosse acoplado a um projeto municipal mais amplo, discutido
nas eleições locais de 2024, com renovação do debate em 2026. Do contrário, vai
predominar uma fragmentação clientelista que, ao fim e ao cabo, enfraquece a
autonomia municipal e a capacidade de os cidadãos definirem a forma como suas
cidades devem ser governadas.
Em resumo, deveria se usar mais os
gigantescos recursos federais do orçamento das emendas para fortalecer as
capacidades estatais locais e para planejar uma visão de longo prazo, norteada
por metas, para os governos locais. Ademais, os cidadãos precisam participar
mais desse processo de distribuição de verbas federais aos municípios, e isso
não pode ser feito por fora das eleições municipais.
Um segundo aspecto que reduz a discussão
essencialmente municipal das eleições de outubro é a estratégia de realçar a
polarização nacional. Evidente que a sociedade está mais polarizada, como
mostra o trabalho de Felipe Nunes e Thomas Traumann (“Biografia do abismo”,
HarperCollins). Igualmente verdadeiro é o fato de que os dois polos mais
importantes do sistema político, o lulismo-PT e o bolsonarismo-PL, querem
mostrar forças agora para partirem de um patamar mais alto para o pleito
presidencial e congressual de 2026, e por isso tentam nacionalizar agora as
disputas locais.
O problema maior disso é o seguinte: quando
as lideranças políticas tentam polarizar artificialmente uma eleição cujo
centro deveria ser a discussão da melhoria das condições locais de vida da
população, a democracia perde. O pleito de outubro deveria ser para definir
como organizar melhor a estrutura urbana em termos de moradia e emprego, como
preparar as municipalidades para os desafios da mudança climática, ou ainda de
que maneira aperfeiçoar os sistemas de educação e saúde municipais, de
preferência em parceria com outros governos locais e/ou com o governo estadual
e o federal.
Não nego a legitimidade democrática de os
candidatos apontarem seus opositores como bolsonaristas ou petistas e tentarem
mostrar o lado negativo desses polos. Mas, francamente, transformar a disputa
eleitoral local numa reprodução da polaridade nacional é reduzir a capacidade
de os cidadãos conseguirem opinar sobre como os prefeitos, efetivamente, podem
governar melhor.
A polarização realça, sobretudo, o embate no
reino dos valores. Escolhas normativas são centrais numa sociedade, de modo que
pode ser importante saber de que lado estará cada candidato a prefeito em
relação à democracia e à condenação dos que tentaram recentemente dar um golpe
de Estado em 8 de janeiro de 2023. Entretanto, o debate político local não pode
se circunscrever a esse tópico. Para além da polarização (e não aquém), tem
muita coisa bem mais relevante para definir sobre o caminho que vereadores e prefeitos
deverão adotar nos próximos anos.
Um último comentário sobre a tentativa de
impor uma polarização forçada nas eleições municipais. Se o mote que alimenta
mais o jogo polarizador, tal como inventado por Steve Bannon, o “Rasputin” da
extrema direita, é a guerra cultural, os “partidos do sistema”, como o são
aqueles que de centro-direita e centro-esquerda que governaram o país por quase
três décadas, têm pouco a ganhar com esse modelo. Lideranças políticas desse
grupo dependem muito mais de políticas públicas e seus resultados para terem sucesso.
Muito mais ainda num pleito municipal. Embarcando numa discussão dominada pelo
viés polarizador, o debate eleitoral municipal favorece a lógica antissistema e
não a discussão sobre o desempenho de instituições, como as prefeituras e
câmaras de vereadores.
Há um terceiro aspecto que também atrapalha
uma discussão eleitoral mais centrada nos problemas locais mais relevantes.
Parte das lideranças municipalistas tem atuado para conseguir um pouco mais de
recursos aos municípios sem pensar numa transformação mais profunda da
governança local. A discussão da desoneração previdenciária de parcela das
municipalidades é um típico caso desse modelo. Além de ter ampliado essa
possibilidade para um número muito grande de municipalidades sem levar em conta
a enorme desigualdade territorial do país, essa legislação é apenas um
esparadrapo que não atua sobre o grande passivo previdenciário dos governos
locais.
Se for para ajudar estruturalmente os
municípios brasileiros, inclusive conforme a sua desigualdade de situações, as
associações municipalistas deveriam fazer um acordo com a União para realizar
uma ampla reforma da previdência pública dos governos locais. Isso
provavelmente exigirá algum fundo federal, mas terá de ser acompanhado por
mudanças legais que tornem sustentável o modelo atuarial do funcionalismo
público municipal.
Talvez isso gere alguma tensão no presente,
mas, se bem debatido nas eleições de outubro, os cidadãos têm grande
possibilidade de escolher um futuro melhor para seus filhos e netos, em vez de
serem enganados de tempos em tempos por benesses que duram apenas alguns anos
sem resolver efetivamente o problema. Esse exemplo poderia ser seguido em
outros temas nos quais os governos estaduais e o federal atuam em parceria com
as municipalidades, distribuindo recursos com um propósito mais profundo:
construir capacidades estatais locais que possam ser usadas para equacionar as
grandes questões de cada cidade do país.
Para terminar a lista de obstáculos que
dificultam um bom debate na eleição municipal, é preciso combater a onda
demagógica que assola o país, baseada na apresentação de soluções fáceis para
problemas complexos. A pauta recente da segurança pública no Congresso Nacional
é o exemplo mais perfeito desse modelo, resultado do fortalecimento da lógica
antissistema, capitaneado pelos líderes da extrema direita, mas também seguido
por vários políticos de centro-direita. Se o pleito de outubro for comandado
por esse paradigma, a governança local piorará depois de 2024. Como antídoto,
será preciso melhorar a qualidade das discussões e propostas, orientadas por
diagnósticos que lidem com problemas reais e profundos das cidades brasileiras.
Fazer uma eleição municipal baseada num
debate mais qualificado pode influenciar positivamente a campanha de 2026.
Afinal, o processo de participação e escolha dos cidadãos envolve um possível
aprendizado com o jogo democrático. Mas isso só vai acontecer se dermos o
devido valor e substância à agenda local, tocando nos temas mais espinhosos,
como a desigualdade territorial, a agenda climática que cabe às cidades, a
mobilidade urbana e a melhoria dos serviços públicos. Isso exige uma discussão
sem demagogias e ilusionismos, com líderes políticos que apostem na reflexão e
autonomia dos cidadãos como citadinos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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