Valor Econômico
Um sinal preocupante de nossa ruína é a
persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem
abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações
O que nos espera lá adiante na história
social e política? Tudo indica que, em comparação com o que fomos e com as
certezas que já tivemos do que poderíamos ser, nosso lá adiante será a
confirmação de uma opção preferencial pelo atraso. Uma opção acidental, por
ação e omissão, aos trancos e barrancos de uma história política sem a nervura
própria de partidos doutrinários. Em que mais teve voz a incompetência e o
oportunismo do que a consciência política propriamente dita.
Essa anomalia chegou ao auge no governo de
2019 a 2022, em que o Brasil foi capturado por um êmulo do Chacrinha, que
iniciava seus programas de TV com a advertência: “Vim para confundir”, por meio
do desmonte do nosso modesto patrimônio de conquistas democráticas.
Alguns episódios dramáticos de nossa história revelam todo seu sentido nesta atualidade de incertezas. Quando começou nossa decadência? Quando começou o fim de nossa confiança em nós mesmos? Um sinal preocupante de nossa ruína é a persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações.
Em nenhum lugar do mundo o caminho da
história é aberto no rumo do passado. Para ser apenas o que já fomos não é
necessário andar para trás. Basta ficar onde já estamos bloqueados desde 1964.
O nacional-desenvolvimentismo industrialista, do desenvolvimento econômico com
desenvolvimento social, foi revogado pelo crescimento econômico com
desenvolvimento social meramente residual. Surgiu a categoria ideológica de
“exclusão social”, na verdade inclusão social perversa.
No lugar da urbanização crescente, a
urbanização patológica das grandes cidades. No lugar da educação
desenvolvimentista, a educação superficial e insuficiente da mão de obra de
durabilidade limitada e descartável. É isso que dá entregar um país ao mando do
neoliberalismo econômico de periferia.
A direita não tem motivos para se preocupar.
Para ela, o poder é o sistema de benefícios subjetivos, próprio da desfiguração
do que é propriamente o poder político. A reunião do governo Bolsonaro de 22 de
abril de 2020 foi deplorável confissão de pouco caso pelo poder, pelo país e
pelo povo brasileiro. Mesmo o dos cúmplices e subalternos do mando, civis e
militares. Eles sabem que precisam uns dos outros, dos iguais. Aquilo foi o
indício desavergonhado da transformação da nossa decadência em espetáculo.
Mas a esquerda não tem motivos para não se
preocupar. Sua missão histórica de levar adiante a construção social e política
hoje do Brasil de amanhã vem sendo comprometida por sua fragmentação. E por
suas vacilações em relação tanto a urgências sociais e políticas de governo
quanto a prioridades sociais, econômicas, educacionais.
Sobretudo sua dificuldade para definir uma
coalização política de centro-esquerda que revigore a social-democracia como
aliada e dê aos diferentes grupos de esquerda um protagonismo real na política
social e na democracia. Que oponha a consciência do presente como história à
indigência de concepções que oscilam entre a porta do botequim e o gazofilácio
de igreja fundamentalista. Nesse movimento, o protagonismo dos verdadeiros
cristãos precisa reencontrar a igreja dos profetas e da comunidade, o da expulsão
dos vendilhões do templo.
O processo político não substitui nem precede
as outras dimensões do processo social: a cultura, a educação, a ciência, a
própria economia. A criatividade minguou. O país vacila numa espécie de
indiferença de povo que renunciou ao seu destino.
Hoje, “patriota” é basicamente quem está no
rol dos que foram capturados na insurgência de 8 de janeiro de 2023 e estão
sendo processados como delinquentes políticos e condenados a longas penas.
Inconscientes e alienados, acham que estão cumprindo uma missão de Deus, pois
tudo sugere que muitos acreditam que foram chamados por ele a um serviço pela
pátria.
A esquerda se fragiliza porque capturada pela
armadilha do contraponto com a extrema direita militarizada cuja identidade se
apoia num imaginário manipulado. Uma direita que, negação da democracia, não
demonstra competência como mediação de superação de impasses políticos da
sociedade brasileira.
Em boa parte porque a esquerda se fragmentou
no que poderia ter sido diversificação das orientações políticas como
expressões da diversidade social de uma sociedade que se desagregava e continua
se desagregando. Uma esquerda representativa da pluralidade social e
ideológica, mas com dificuldades para desenvolver uma consciência de referência
de uma coalização possível de oposição ao totalitarismo e de crítica social do
autoritarismo de um capitalismo da menos-valia e do prejuízo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
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