sexta-feira, 3 de maio de 2024

José de Souza Martins* - Incertezas da crise brasileira

Valor Econômico

Um sinal preocupante de nossa ruína é a persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações

O que nos espera lá adiante na história social e política? Tudo indica que, em comparação com o que fomos e com as certezas que já tivemos do que poderíamos ser, nosso lá adiante será a confirmação de uma opção preferencial pelo atraso. Uma opção acidental, por ação e omissão, aos trancos e barrancos de uma história política sem a nervura própria de partidos doutrinários. Em que mais teve voz a incompetência e o oportunismo do que a consciência política propriamente dita.

Essa anomalia chegou ao auge no governo de 2019 a 2022, em que o Brasil foi capturado por um êmulo do Chacrinha, que iniciava seus programas de TV com a advertência: “Vim para confundir”, por meio do desmonte do nosso modesto patrimônio de conquistas democráticas.

Alguns episódios dramáticos de nossa história revelam todo seu sentido nesta atualidade de incertezas. Quando começou nossa decadência? Quando começou o fim de nossa confiança em nós mesmos? Um sinal preocupante de nossa ruína é a persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações.

Em nenhum lugar do mundo o caminho da história é aberto no rumo do passado. Para ser apenas o que já fomos não é necessário andar para trás. Basta ficar onde já estamos bloqueados desde 1964. O nacional-desenvolvimentismo industrialista, do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, foi revogado pelo crescimento econômico com desenvolvimento social meramente residual. Surgiu a categoria ideológica de “exclusão social”, na verdade inclusão social perversa.

No lugar da urbanização crescente, a urbanização patológica das grandes cidades. No lugar da educação desenvolvimentista, a educação superficial e insuficiente da mão de obra de durabilidade limitada e descartável. É isso que dá entregar um país ao mando do neoliberalismo econômico de periferia.

A direita não tem motivos para se preocupar. Para ela, o poder é o sistema de benefícios subjetivos, próprio da desfiguração do que é propriamente o poder político. A reunião do governo Bolsonaro de 22 de abril de 2020 foi deplorável confissão de pouco caso pelo poder, pelo país e pelo povo brasileiro. Mesmo o dos cúmplices e subalternos do mando, civis e militares. Eles sabem que precisam uns dos outros, dos iguais. Aquilo foi o indício desavergonhado da transformação da nossa decadência em espetáculo.

Mas a esquerda não tem motivos para não se preocupar. Sua missão histórica de levar adiante a construção social e política hoje do Brasil de amanhã vem sendo comprometida por sua fragmentação. E por suas vacilações em relação tanto a urgências sociais e políticas de governo quanto a prioridades sociais, econômicas, educacionais.

Sobretudo sua dificuldade para definir uma coalização política de centro-esquerda que revigore a social-democracia como aliada e dê aos diferentes grupos de esquerda um protagonismo real na política social e na democracia. Que oponha a consciência do presente como história à indigência de concepções que oscilam entre a porta do botequim e o gazofilácio de igreja fundamentalista. Nesse movimento, o protagonismo dos verdadeiros cristãos precisa reencontrar a igreja dos profetas e da comunidade, o da expulsão dos vendilhões do templo.

O processo político não substitui nem precede as outras dimensões do processo social: a cultura, a educação, a ciência, a própria economia. A criatividade minguou. O país vacila numa espécie de indiferença de povo que renunciou ao seu destino.

Hoje, “patriota” é basicamente quem está no rol dos que foram capturados na insurgência de 8 de janeiro de 2023 e estão sendo processados como delinquentes políticos e condenados a longas penas. Inconscientes e alienados, acham que estão cumprindo uma missão de Deus, pois tudo sugere que muitos acreditam que foram chamados por ele a um serviço pela pátria.

A esquerda se fragiliza porque capturada pela armadilha do contraponto com a extrema direita militarizada cuja identidade se apoia num imaginário manipulado. Uma direita que, negação da democracia, não demonstra competência como mediação de superação de impasses políticos da sociedade brasileira.

Em boa parte porque a esquerda se fragmentou no que poderia ter sido diversificação das orientações políticas como expressões da diversidade social de uma sociedade que se desagregava e continua se desagregando. Uma esquerda representativa da pluralidade social e ideológica, mas com dificuldades para desenvolver uma consciência de referência de uma coalização possível de oposição ao totalitarismo e de crítica social do autoritarismo de um capitalismo da menos-valia e do prejuízo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

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