Folha de S. Paulo
Nossas escolhas sobre as regras e
procedimentos construíram um equilíbrio perverso
Na coluna do
mês passado, ilustrei como o descontrole fiscal é obra de muitas mãos.
Sistematizei muitos exemplos de grupos de pressão que conseguem obter
tratamentos privilegiados, como ocorreu na reforma
tributária.
Meu amigo e cientista político Carlos Pereira escreveu sobre a coluna em seu artigo
semanal no jornal O Estado de S. Paulo.
"Lisboa diagnostica com precisão que
‘muitos grupos denunciam as regras que favorecem os demais. Ao mesmo tempo,
defendem com virulência os seus próprios privilégios'".
"Essa interpretação", segundo
Pereira, seria "fundamentalmente moral", carecendo de "uma
análise das estruturas de incentivo institucional e político que geram tais
comportamentos irresponsáveis e oportunistas."
Não se trata, contudo, de uma questão apenas moral. As crenças e a moralidade estão associadas às práticas e às sanções adotadas.
Instituições, na definição clássica de Douglass
North, são as regras do jogo que delimitam as interações sociais. Essas
regras podem ser formais ou tácitas e devem ser coerentes com a moralidade e as
crenças dominantes.
Se a crença dominante é que a imensa maioria
dos motoristas dirige pela direita, a escolha racional é igualmente dirigir
pela direita, para reduzir a chance de acidentes.
As regras, por vezes, apenas criam
penalidades adicionais para comportamentos coerentes com o que a Teoria dos
Jogos denomina Equilíbrio
de Nash: cada um faz o que acredita ser o melhor possível dadas as suas
crenças sobre as consequências dos seus atos.
Equilíbrio, nesse jargão, significa apenas a
coerência entre as crenças e os resultados.
A abordagem institucionalista em economia desaguou
em uma agenda de pesquisa aplicada que procura testar conjecturas que analisam
o impacto dos detalhes das regras sobre o comportamento dos indivíduos e os
resultados nos mercados.
No caso do mercado de crédito, por exemplo, a
existência de garantias críveis de que a dívida será paga reduz a taxa de juros e
aumenta o acesso ao mercado, como documentam pesquisas com dados de diversos
países ao longo de muitos anos.
No caso do Brasil, Assunção, Benmelech e
Silva, no artigo "Repossession and the democratization of credit", publicado em The Review of Financial Studies,
estimam o impacto de modificações na alienação fiduciária para automóveis, que
reduziram o custo da inadimplência, para a queda das taxas de juros e ampliação
do acesso ao crédito.
Coelho, Mello e Funchal documentam resultado
semelhante decorrente da introdução do crédito consignado, no artigo "The Brazilian payroll lending experiment",
publicado na Review of Economic and Statistics.
Regras formais, contudo, não são suficientes.
A pesquisa aplicada identifica a importância da credibilidade das reações
esperadas.
Os mecanismos e sanções que induzem o
comportamento dos grupos devem ser críveis para serem eficazes, como analisa
Avner Greif no seu clássico artigo "Reputation
and coalisions in medieval trade", publicado no Journal of Economic
History.
Joel Mokyr, no livro "The Enlightened Economy", detalha o papel das
ideias e do confronto entre grupos organizados na implementação de reformas
institucionais que permitiram a revolução da economia moderna, na Inglaterra
durante os séculos 18 e 19.
O intricado jogo entre ideias, instituições e
o comportamento dos diversos grupos tem sido um tema central da pesquisa em
desenvolvimento econômico nas últimas décadas.
A historiografia da América Latina, desde os
trabalhos de Engermann e Sokolov, destaca como o processo de colonização
resultou em instituições extrativistas, para usar o jargão disseminado por Daron
Acemoglu e coautores, que receberam o Prêmio
Nobel em 2024.
Zeina Latif e eu escrevemos sobre algumas das
peculiaridades institucionais que convalidam o comportamento extrativista dos
grupos organizados no Brasil, no livro "A Via Democrática", organizado por Simon
Schwartzman. O volume de crédito subsidiado, entre outros indicadores, revela a
extensão de captura da nossa política pública.
Breno Vasconcelos e coautores documentam, em
trabalho disponível no site do Insper, a extensão do contencioso tributário
no Brasil, mais de 200 vezes o observado nos países da OCDE. Resultado das
muitas exceções e casos particulares que caracterizam as nossas regras.
Luciano da Ros tem publicado seguidos
trabalhos documentando o maior custo do Judiciário no Brasil em comparação com
os dados de outros países. Marcos Mendes e
Hélio Tollini fizeram o mesmo sobre a magnitude das emendas parlamentares ao
Orçamento.
Paulo Furquim coordenou um trabalho que
analisou mais de 9 milhões de processos no INSS em apenas 4 anos, "A Judicialização de Benefícios Previdenciários e
Assistenciais".
Os dados sistematizados ilustram o tamanho do
descontrole.
Os protocolos e as regras que norteiam a
política pública no Brasil legitimam a ação discricionária que concede
benefícios a grupos organizados. E que são convalidados por uma moralidade que
sanciona os privilégios.
Em outros países, há maior parcimônia na
intervenção do poder público. O Judiciário respeita as decisões das agências
reguladoras. O Legislativo tem protocolos rígidos para aprovar leis e, maior
ainda, emendas constitucionais. O Executivo respeita as regras da
contabilidade.
Carlos Pereira é mais otimista do que eu e
acredita que um Executivo comprometido em construir um governo de coalizão
possa pôr ordem na balbúrdia.
Temo que não. Ocorreram significativas
mudanças institucionais que fragilizaram a possibilidade de coordenação: regras
sobre medidas provisórias, disseminação das emendas parlamentares, fundos para
partidos e intervenções discricionárias do Executivo, como no caso do setor
elétrico.
Concordo com Carlos que o Executivo deveria
liderar a agenda. Mas não será fácil.
Nossas escolhas sobre as regras e
procedimentos, nos poderes públicos e no setor privado, construíram um
equilíbrio perverso. Serão necessárias muitas reformas, regras de autocontenção
e mecanismos críveis para superar a armadilha em que nos metemos.
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