domingo, 9 de fevereiro de 2025

As regras e a responsabilidade compartilhada - Marcos Lisboa

Folha de S. Paulo

Nossas escolhas sobre as regras e procedimentos construíram um equilíbrio perverso

Na coluna do mês passado, ilustrei como o descontrole fiscal é obra de muitas mãos. Sistematizei muitos exemplos de grupos de pressão que conseguem obter tratamentos privilegiados, como ocorreu na reforma tributária.

Meu amigo e cientista político Carlos Pereira escreveu sobre a coluna em seu artigo semanal no jornal O Estado de S. Paulo.

"Lisboa diagnostica com precisão que ‘muitos grupos denunciam as regras que favorecem os demais. Ao mesmo tempo, defendem com virulência os seus próprios privilégios'".

"Essa interpretação", segundo Pereira, seria "fundamentalmente moral", carecendo de "uma análise das estruturas de incentivo institucional e político que geram tais comportamentos irresponsáveis e oportunistas."

Não se trata, contudo, de uma questão apenas moral. As crenças e a moralidade estão associadas às práticas e às sanções adotadas.

Instituições, na definição clássica de Douglass North, são as regras do jogo que delimitam as interações sociais. Essas regras podem ser formais ou tácitas e devem ser coerentes com a moralidade e as crenças dominantes.

Se a crença dominante é que a imensa maioria dos motoristas dirige pela direita, a escolha racional é igualmente dirigir pela direita, para reduzir a chance de acidentes.

As regras, por vezes, apenas criam penalidades adicionais para comportamentos coerentes com o que a Teoria dos Jogos denomina Equilíbrio de Nash: cada um faz o que acredita ser o melhor possível dadas as suas crenças sobre as consequências dos seus atos.

Equilíbrio, nesse jargão, significa apenas a coerência entre as crenças e os resultados.

A abordagem institucionalista em economia desaguou em uma agenda de pesquisa aplicada que procura testar conjecturas que analisam o impacto dos detalhes das regras sobre o comportamento dos indivíduos e os resultados nos mercados.

No caso do mercado de crédito, por exemplo, a existência de garantias críveis de que a dívida será paga reduz a taxa de juros e aumenta o acesso ao mercado, como documentam pesquisas com dados de diversos países ao longo de muitos anos.

No caso do Brasil, Assunção, Benmelech e Silva, no artigo "Repossession and the democratization of credit", publicado em The Review of Financial Studies, estimam o impacto de modificações na alienação fiduciária para automóveis, que reduziram o custo da inadimplência, para a queda das taxas de juros e ampliação do acesso ao crédito.

Coelho, Mello e Funchal documentam resultado semelhante decorrente da introdução do crédito consignado, no artigo "The Brazilian payroll lending experiment", publicado na Review of Economic and Statistics.

Regras formais, contudo, não são suficientes. A pesquisa aplicada identifica a importância da credibilidade das reações esperadas.

Os mecanismos e sanções que induzem o comportamento dos grupos devem ser críveis para serem eficazes, como analisa Avner Greif no seu clássico artigo "Reputation and coalisions in medieval trade", publicado no Journal of Economic History.

Joel Mokyr, no livro "The Enlightened Economy", detalha o papel das ideias e do confronto entre grupos organizados na implementação de reformas institucionais que permitiram a revolução da economia moderna, na Inglaterra durante os séculos 18 e 19.

O intricado jogo entre ideias, instituições e o comportamento dos diversos grupos tem sido um tema central da pesquisa em desenvolvimento econômico nas últimas décadas.

A historiografia da América Latina, desde os trabalhos de Engermann e Sokolov, destaca como o processo de colonização resultou em instituições extrativistas, para usar o jargão disseminado por Daron Acemoglu e coautores, que receberam o Prêmio Nobel em 2024.

Zeina Latif e eu escrevemos sobre algumas das peculiaridades institucionais que convalidam o comportamento extrativista dos grupos organizados no Brasil, no livro "A Via Democrática", organizado por Simon Schwartzman. O volume de crédito subsidiado, entre outros indicadores, revela a extensão de captura da nossa política pública.

Breno Vasconcelos e coautores documentam, em trabalho disponível no site do Insper, a extensão do contencioso tributário no Brasil, mais de 200 vezes o observado nos países da OCDE. Resultado das muitas exceções e casos particulares que caracterizam as nossas regras.

Luciano da Ros tem publicado seguidos trabalhos documentando o maior custo do Judiciário no Brasil em comparação com os dados de outros países. Marcos Mendes e Hélio Tollini fizeram o mesmo sobre a magnitude das emendas parlamentares ao Orçamento.

Paulo Furquim coordenou um trabalho que analisou mais de 9 milhões de processos no INSS em apenas 4 anos, "A Judicialização de Benefícios Previdenciários e Assistenciais".

Os dados sistematizados ilustram o tamanho do descontrole.

Os protocolos e as regras que norteiam a política pública no Brasil legitimam a ação discricionária que concede benefícios a grupos organizados. E que são convalidados por uma moralidade que sanciona os privilégios.

Em outros países, há maior parcimônia na intervenção do poder público. O Judiciário respeita as decisões das agências reguladoras. O Legislativo tem protocolos rígidos para aprovar leis e, maior ainda, emendas constitucionais. O Executivo respeita as regras da contabilidade.

Carlos Pereira é mais otimista do que eu e acredita que um Executivo comprometido em construir um governo de coalizão possa pôr ordem na balbúrdia.

Temo que não. Ocorreram significativas mudanças institucionais que fragilizaram a possibilidade de coordenação: regras sobre medidas provisórias, disseminação das emendas parlamentares, fundos para partidos e intervenções discricionárias do Executivo, como no caso do setor elétrico.

Concordo com Carlos que o Executivo deveria liderar a agenda. Mas não será fácil.

Nossas escolhas sobre as regras e procedimentos, nos poderes públicos e no setor privado, construíram um equilíbrio perverso. Serão necessárias muitas reformas, regras de autocontenção e mecanismos críveis para superar a armadilha em que nos metemos.

 

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