O Estado de S. Paulo
Pela primeira vez na História a desordem
mundial é provocada e incentivada pelo governo da maior potência econômica e
militar do planeta
“O orgulho nacional é, para os países, o que
a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o
autoaperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidades e
aventuras externas, excessiva autoestima pode produzir arrogância.” A frase foi
escrita por Richard Rorty a propósito de seu país, os EUA.
Em meu artigo mais recente para este espaço, comentei os três elementos fundamentais do modus operandi trumpista: fazer ameaças, alcançar acordos (propiciados pelas ameaças), e declarar vitória, sempre. Em menos de 20 dias do início do segundo mandato de Donald Trump, esse tripé vem se confirmando, para perplexidade e inquietação generalizadas do mundo, a indicar claramente quão mais turbulento será o quadriênio 2025-2028. Trump decididamente já mostrou que é portador de excessiva e indiscriminada belicosidade, e não menos excessiva arrogância, diariamente explicitadas nas mídias sociais e em improvisos variados.
Pela primeira vez na História a desordem
mundial é provocada e incentivada pelo governo da maior potência econômica e
militar do planeta. O que disse Trump nos últimos dias sobre o futuro de Gaza e
dos seus mais de 2 milhões de habitantes mostra que seu húbris (arrogância)
desconhece limites. A confiança, mesmo entre tradicionais aliados, não deixará
de sofrer abalos.
É verdade que Henry Kissinger, logo no início
de seu indispensável livro World Order, alerta que uma ordem mundial
verdadeiramente global nunca existiu: “No truly global ‘world order’ has ever
existed”. O que passa por “ordem” em nosso tempo, nota o autor, foi concebido
na Europa Ocidental há quase quatro séculos com o “Tratado de Westfália”, que
pôs fim a 30 anos de guerra (1618 a 1648) na qual quase um quarto da população
da Europa central morreu devido a combates, doenças ou fome. O tratado promoveu
uma acomodação pragmática: uma multiplicidade de unidades políticas, muitas
aderindo a filosofias e práticas religiosas contraditórias, e desprovidas de
poder suficiente para derrotar ou subjugar as demais, cedeu lugar a um sistema
de Estados independentes. Em que foram refreados impulsos de intervenção nas
questões domésticas de outros Estados, e mantidas em xeque as ambições de cada
um através de um geral “equilíbrio de poder”. No qual cada Estado tinha poder
soberano no âmbito de seu espaço territorial, cuja integridade haveria de ser
preservada pelos demais.
Os negociadores da paz de Westfália não
imaginaram que estavam a lançar as fundações de um sistema que viria a ser
globalmente aplicável. Kissinger concluiu, após examinar múltiplos conceitos de
“ordem”, que os princípios westfalianos constituem ainda hoje a única base
geralmente reconhecida do que seria uma ordem global. Por isso foram inscritos,
mais de 300 anos depois, na Carta das Nações Unidas (junho de 1945), segundo a
qual “a Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus
membros”. A Carta prevê também, ora vejam, que “todos os membros deverão
abster-se nas suas relações internacionais da ameaça ou do uso da força contra
a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.
Trump foi legitimamente eleito, e de forma
avassaladora. Ao longo da campanha, deixou claro o que faria, nos fronts
externo e doméstico. Em ambos, encontrará resistências. No front externo, vale
registrar a serenidade e compostura demonstradas pela presidente do México,
Claudia Sheinbaum, e por Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, em suas
primeiras respostas à decisão de Trump de elevar em 25% as tarifas sobre suas
exportações para os EUA. Exemplos a serem seguidos.
Quanto ao front interno, escreveu um juiz
federal norteamericano anos atrás: “Presidents are not kings”, portanto estão
sujeitos a filtros, freios, pesos e contrapesos de uma sociedade democrática.
Que inclui um Partido Democrata que tem de entender o porquê de sua fragorosa
derrota, de preferência antes das eleições para a Câmara dos Deputados em 2026.
Kenneth Arrow escreveu: “A maior parte dos
indivíduos subestima a incerteza. Enormes danos têm se seguido à crença na
certeza, seja em inevitabilidades históricas, seja em posições extremas sobre
política econômica”. Vale para os Estados Unidos, vale para o Brasil, vale para
qualquer país em qualquer época. Na mesma linha de Rorty, citado na abertura
deste artigo, Raymond Aron recomendava que espectadores engajados deveriam
evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti,
que os “dois gumes da lâmina” contivessem os excessos, seja de otimismo, seja
de pessimismo.
Todos – Rorty, Aron e Giannetti – tinham em
mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem a busca de
convergências possíveis. Que sempre existem, tanto em questões de política
doméstica quanto nas relações internacionais de um país. O que precisamos hoje
é que as políticas – as domésticas e a externa – se tornem menos um discurso
sobre o verdadeiro, o falso e o fictício; e mais um debate sobre quais
esperanças permitir a nós mesmos e quais abandonar. Como Dante em Inferno,
Canto III.
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