domingo, 9 de fevereiro de 2025

Orgulho nacional e autoestima: modelo Trump - Pedro Malan

O Estado de S. Paulo

Pela primeira vez na História a desordem mundial é provocada e incentivada pelo governo da maior potência econômica e militar do planeta

“O orgulho nacional é, para os países, o que a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o autoaperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidades e aventuras externas, excessiva autoestima pode produzir arrogância.” A frase foi escrita por Richard Rorty a propósito de seu país, os EUA.

Em meu artigo mais recente para este espaço, comentei os três elementos fundamentais do modus operandi trumpista: fazer ameaças, alcançar acordos (propiciados pelas ameaças), e declarar vitória, sempre. Em menos de 20 dias do início do segundo mandato de Donald Trump, esse tripé vem se confirmando, para perplexidade e inquietação generalizadas do mundo, a indicar claramente quão mais turbulento será o quadriênio 2025-2028. Trump decididamente já mostrou que é portador de excessiva e indiscriminada belicosidade, e não menos excessiva arrogância, diariamente explicitadas nas mídias sociais e em improvisos variados.

Pela primeira vez na História a desordem mundial é provocada e incentivada pelo governo da maior potência econômica e militar do planeta. O que disse Trump nos últimos dias sobre o futuro de Gaza e dos seus mais de 2 milhões de habitantes mostra que seu húbris (arrogância) desconhece limites. A confiança, mesmo entre tradicionais aliados, não deixará de sofrer abalos.

É verdade que Henry Kissinger, logo no início de seu indispensável livro World Order, alerta que uma ordem mundial verdadeiramente global nunca existiu: “No truly global ‘world order’ has ever existed”. O que passa por “ordem” em nosso tempo, nota o autor, foi concebido na Europa Ocidental há quase quatro séculos com o “Tratado de Westfália”, que pôs fim a 30 anos de guerra (1618 a 1648) na qual quase um quarto da população da Europa central morreu devido a combates, doenças ou fome. O tratado promoveu uma acomodação pragmática: uma multiplicidade de unidades políticas, muitas aderindo a filosofias e práticas religiosas contraditórias, e desprovidas de poder suficiente para derrotar ou subjugar as demais, cedeu lugar a um sistema de Estados independentes. Em que foram refreados impulsos de intervenção nas questões domésticas de outros Estados, e mantidas em xeque as ambições de cada um através de um geral “equilíbrio de poder”. No qual cada Estado tinha poder soberano no âmbito de seu espaço territorial, cuja integridade haveria de ser preservada pelos demais.

Os negociadores da paz de Westfália não imaginaram que estavam a lançar as fundações de um sistema que viria a ser globalmente aplicável. Kissinger concluiu, após examinar múltiplos conceitos de “ordem”, que os princípios westfalianos constituem ainda hoje a única base geralmente reconhecida do que seria uma ordem global. Por isso foram inscritos, mais de 300 anos depois, na Carta das Nações Unidas (junho de 1945), segundo a qual “a Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”. A Carta prevê também, ora vejam, que “todos os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

Trump foi legitimamente eleito, e de forma avassaladora. Ao longo da campanha, deixou claro o que faria, nos fronts externo e doméstico. Em ambos, encontrará resistências. No front externo, vale registrar a serenidade e compostura demonstradas pela presidente do México, Claudia Sheinbaum, e por Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, em suas primeiras respostas à decisão de Trump de elevar em 25% as tarifas sobre suas exportações para os EUA. Exemplos a serem seguidos.

Quanto ao front interno, escreveu um juiz federal norteamericano anos atrás: “Presidents are not kings”, portanto estão sujeitos a filtros, freios, pesos e contrapesos de uma sociedade democrática. Que inclui um Partido Democrata que tem de entender o porquê de sua fragorosa derrota, de preferência antes das eleições para a Câmara dos Deputados em 2026.

Kenneth Arrow escreveu: “A maior parte dos indivíduos subestima a incerteza. Enormes danos têm se seguido à crença na certeza, seja em inevitabilidades históricas, seja em posições extremas sobre política econômica”. Vale para os Estados Unidos, vale para o Brasil, vale para qualquer país em qualquer época. Na mesma linha de Rorty, citado na abertura deste artigo, Raymond Aron recomendava que espectadores engajados deveriam evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti, que os “dois gumes da lâmina” contivessem os excessos, seja de otimismo, seja de pessimismo.

Todos – Rorty, Aron e Giannetti – tinham em mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem a busca de convergências possíveis. Que sempre existem, tanto em questões de política doméstica quanto nas relações internacionais de um país. O que precisamos hoje é que as políticas – as domésticas e a externa – se tornem menos um discurso sobre o verdadeiro, o falso e o fictício; e mais um debate sobre quais esperanças permitir a nós mesmos e quais abandonar. Como Dante em Inferno, Canto III.

 

 

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