O Globo
Já na primeira semana no posto, Hugo Motta
defendeu afrouxar a Lei da Ficha Limpa e negou golpismo no 8 de Janeiro
Teatralmente, Hugo Motta se levantou e
brandiu a Constituição brasileira, repetindo três vezes “Viva a democracia!”,
no momento mais performático de seu pronunciamento depois da vitória no sábado
1º de fevereiro. A cena imitava o gesto de Ulysses Guimarães ao promulgar a
Constituição, daquela mesma cadeira, em 5 de outubro de 1988. Deputado mais
jovem a ser eleito presidente da Câmara, Motta nem sequer era nascido na
ocasião, mas não se furtou a desenvolver uma interpretação bastante própria do
discurso histórico.
Houve a reprodução da palavra de ordem ulyssiana “ódio e nojo à ditadura” e o fecho contemporâneo com “Ainda estou aqui”. Pode ter parecido ode à resistência democrática, mas era exaltação à resiliência do Centrão. Em especial, das emendas impositivas, criação de um de seus padrinhos na política. É leviano dizer que Eduardo Cunha, apenas por ser seu aliado, será a eminência parda de seu mandato à frente da Casa. Mas foi o sujeito nem tão oculto de seu discurso de posse.
Excluindo as mesuras e frases de efeito
típicas do momento, a tese apresentada foi a seguinte: Ulysses e os
constituintes desenharam na Carta um modelo em substituição à ditadura,
deturpado nas décadas seguintes pela cooptação financeira do Parlamento pelo
Planalto, tendo sido salvo apenas em 2015. “Saímos do presidencialismo
absolutista e resvalamos para um absolutismo presidencial”, no jogo de palavras
do parlamentar, comparando a ditadura ao “presidencialismo de coalizão”.
Num momento em que o avanço congressual sobre
o Orçamento está no cerne da crise entre Poderes, Motta economizou sutileza ao
pinçar outro trecho de 1988:
— Repito Ulysses: são governo o Executivo e o
Legislativo.
(Às favas o contexto da época, com o país
recém-saído da ditadura e comandado, por força de circunstâncias além-voto, por
um ex-aliado do regime autoritário.)
Em seguida, descreveu como “a locação”, “o
aluguel”, “o arrendamento” do Congresso resultaram em “inúmeros escândalos” e
“no primeiro e no segundo impeachment”. Até vir a redenção:
— Foi nessa época, por meio da adoção das
emendas impositivas, que o Parlamento finalmente se encontra com as origens do
projeto constitucional.
Apelidado Senhor Democracia, Ulysses deve ser
o político mais celebrado nos discursos em Brasília, mas talvez seja a primeira
vez que a homenagem coloca Eduardo Cunha como restaurador da sua visão de
República. A tese é eloquente sobre como serão o mandato do novo presidente da
Câmara e seu empenho em cumprir a missão de líder corporativo dos deputados. Na
primeira semana no posto, já disse muito a que veio. Na sexta-feira, avaliação
de que os atos golpistas de 8 de Janeiro não foram golpistas foi aceno a bolsonaristas
e pode ter frustrado os que se comoveram com o “ódio e nojo à ditadura” do
discurso. Antes, já havia defendido a redução do tempo de inelegibilidade
previsto na Lei da Ficha Limpa:
— Oito anos são quatro eleições, é um tempo
extenso.
Motta não pode ser acusado de ter mudado de
visão de mundo só para ganhar o voto de seus pares. Em 2015, com só 25 anos,
foi alçado (adivinhe por quem?) a presidente da CPI da Petrobras,
criada para investigar as suspeitas de corrupção envolvendo parlamentares,
governo e empresas reveladas pela Operação Lava-Jato. Concluiu os trabalhos sem
pedir o indiciamento de nenhum deputado.
Foi a essa comissão que Cunha declarou não
ter “qualquer tipo de conta em qualquer lugar, que não seja a que está
declarada no meu Imposto de Renda”. Quando depois surgiram documentos
contradizendo sua verdade, adaptou a versão em inesquecível contribuição à
antologia política. Não tinha contas em bancos da Suíça, era apenas
“usufrutuário em vida” de um truste que geria recursos depositados em
instituições financeiras do país alpino.
A acusação de que mentiu à CPI, quebrando o
decoro, foi, no entanto, a base do processo de cassação do mandato de Cunha no
Conselho de Ética, consumada depois em plenário com o voto de 450 deputados.
Não com o do jovem Hugo Motta, um dos 42 ausentes da sessão.
*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO
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