domingo, 9 de fevereiro de 2025

Brinde Ulysses, beba Eduardo Cunha - Miguel Caballero

O Globo

Já na primeira semana no posto, Hugo Motta defendeu afrouxar a Lei da Ficha Limpa e negou golpismo no 8 de Janeiro

Teatralmente, Hugo Motta se levantou e brandiu a Constituição brasileira, repetindo três vezes “Viva a democracia!”, no momento mais performático de seu pronunciamento depois da vitória no sábado 1º de fevereiro. A cena imitava o gesto de Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição, daquela mesma cadeira, em 5 de outubro de 1988. Deputado mais jovem a ser eleito presidente da Câmara, Motta nem sequer era nascido na ocasião, mas não se furtou a desenvolver uma interpretação bastante própria do discurso histórico.

Houve a reprodução da palavra de ordem ulyssiana “ódio e nojo à ditadura” e o fecho contemporâneo com “Ainda estou aqui”. Pode ter parecido ode à resistência democrática, mas era exaltação à resiliência do Centrão. Em especial, das emendas impositivas, criação de um de seus padrinhos na política. É leviano dizer que Eduardo Cunha, apenas por ser seu aliado, será a eminência parda de seu mandato à frente da Casa. Mas foi o sujeito nem tão oculto de seu discurso de posse.

Excluindo as mesuras e frases de efeito típicas do momento, a tese apresentada foi a seguinte: Ulysses e os constituintes desenharam na Carta um modelo em substituição à ditadura, deturpado nas décadas seguintes pela cooptação financeira do Parlamento pelo Planalto, tendo sido salvo apenas em 2015. “Saímos do presidencialismo absolutista e resvalamos para um absolutismo presidencial”, no jogo de palavras do parlamentar, comparando a ditadura ao “presidencialismo de coalizão”.

Num momento em que o avanço congressual sobre o Orçamento está no cerne da crise entre Poderes, Motta economizou sutileza ao pinçar outro trecho de 1988:

— Repito Ulysses: são governo o Executivo e o Legislativo.

(Às favas o contexto da época, com o país recém-saído da ditadura e comandado, por força de circunstâncias além-voto, por um ex-aliado do regime autoritário.)

Em seguida, descreveu como “a locação”, “o aluguel”, “o arrendamento” do Congresso resultaram em “inúmeros escândalos” e “no primeiro e no segundo impeachment”. Até vir a redenção:

— Foi nessa época, por meio da adoção das emendas impositivas, que o Parlamento finalmente se encontra com as origens do projeto constitucional.

Apelidado Senhor Democracia, Ulysses deve ser o político mais celebrado nos discursos em Brasília, mas talvez seja a primeira vez que a homenagem coloca Eduardo Cunha como restaurador da sua visão de República. A tese é eloquente sobre como serão o mandato do novo presidente da Câmara e seu empenho em cumprir a missão de líder corporativo dos deputados. Na primeira semana no posto, já disse muito a que veio. Na sexta-feira, avaliação de que os atos golpistas de 8 de Janeiro não foram golpistas foi aceno a bolsonaristas e pode ter frustrado os que se comoveram com o “ódio e nojo à ditadura” do discurso. Antes, já havia defendido a redução do tempo de inelegibilidade previsto na Lei da Ficha Limpa:

— Oito anos são quatro eleições, é um tempo extenso.

Motta não pode ser acusado de ter mudado de visão de mundo só para ganhar o voto de seus pares. Em 2015, com só 25 anos, foi alçado (adivinhe por quem?) a presidente da CPI da Petrobras, criada para investigar as suspeitas de corrupção envolvendo parlamentares, governo e empresas reveladas pela Operação Lava-Jato. Concluiu os trabalhos sem pedir o indiciamento de nenhum deputado.

Foi a essa comissão que Cunha declarou não ter “qualquer tipo de conta em qualquer lugar, que não seja a que está declarada no meu Imposto de Renda”. Quando depois surgiram documentos contradizendo sua verdade, adaptou a versão em inesquecível contribuição à antologia política. Não tinha contas em bancos da Suíça, era apenas “usufrutuário em vida” de um truste que geria recursos depositados em instituições financeiras do país alpino.

A acusação de que mentiu à CPI, quebrando o decoro, foi, no entanto, a base do processo de cassação do mandato de Cunha no Conselho de Ética, consumada depois em plenário com o voto de 450 deputados. Não com o do jovem Hugo Motta, um dos 42 ausentes da sessão.

*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO

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