Valor Econômico
As taxas de juros reais têm sido muito
elevadas durante praticamente todo o período do regime de metas, e não apenas
no período mais recente
O Brasil tem o mesmo regime monetário desde a
virada do século. Este logrou oferecer ao país um inédito período de inflação
baixa para o nosso padrão histórico. O regime de metas para a inflação foi
mantido e aprimorado ao longo do tempo, atravessando várias transições
políticas. Tornou-se uma política de Estado.
O mesmo não pode ser dito a respeito do
regime fiscal. Inicialmente, o país tentou orientar a política fiscal para
gerar superávits primários consistentes com a estabilização da dívida pública.
Ao longo do tempo, a proliferação de abatimentos e fórmulas contábeis criativas
contribuíram para inviabilizar esse regime: o resultado primário oficial perdeu
significado e se descolou muito do que seria o resultado efetivo, em termos de
impacto sobre a dívida pública.
No entanto, um defeito mais fundamental da utilização de metas para o resultado primário foi não disciplinar diretamente o crescimento das despesas. Como consequência, a trajetória de gastos ininterruptamente crescentes passou a requerer um crescimento também das receitas para assegurar a sustentabilidade da dívida.
Desde o início da década passada, foi ficando
claro que a estratégia de ajuste via superávit primário, sem controle de
despesas, e diante de uma carga tributária já bastante elevada para o nível e
desenvolvimento do país, estava esgotada. Apesar de suas dificuldades, o
regime, quando efetivamente implementado, logrou evitar uma explosão da dívida
pública. Mas isso veio a um custo: o Banco Central foi compelido a praticar
taxas de juros (nominais e reais) muito elevadas para o padrão mundial, de
forma a controlar a inflação, constantemente pressionada pelo impulso fiscal.
Nota-se, a propósito, que as taxas de juros
reais têm sido muito elevadas durante praticamente todo o período do regime de
metas, e não apenas no período mais recente, quando a meta foi ajustada ao
padrão internacional.
Depois do colapso do regime de superávit
primário, o país optou por adotar um teto para o crescimento da despesa
pública. O teto, originalmente, deveria durar por dez anos, período que
permitiria uma correção expressiva do gasto público como proporção do PIB.
Enquanto estava vigente e sendo implementado, o regime do teto finalmente
permitiu ao Banco Central controlar a inflação com taxas de juros baixas.
Mas o interregno do teto, quando o país teve
um mix de política econômica menos disfuncional, durou pouco. O regime foi
abandonado e posteriormente substituído pelo novo arcabouço fiscal. Este
substituiu um teto de crescimento real zero, para crescimento de 2,5% ao ano -
seguindo o espírito da regra anterior, mas com mais espaço para o crescimento
das despesas.
A julgar pelo comportamento da dívida, da
inflação e da taxa de juros real, o arcabouço, ainda que importante para
limitar cenários extremos, até aqui não conseguiu gerar os mesmos benefícios
que o teto, em termos de credibilidade e percepção de risco fiscal.
Uma crítica ao teto, contudo, é que não
estava diretamente ligado à dinâmica da dívida. Para solucionar esse problema,
talvez seja o caso de se considerar um regime híbrido com dois tetos, em que o
patamar e a dinâmica da dívida pública almejados influenciam a regra de gastos.
Uma crítica à incorporação explícita da
dívida na regra fiscal é que ela depende de fatores que não estão sob controle
da autoridade fiscal, como a taxa de juros, a cargo da política monetária,
colocando a autoridade fiscal a reboque do Banco Central. Outra é que, dado
esse fator, o regime poderia gerar algum tipo de constrangimento fiscal para a
autoridade monetária. Acontece que a razão dívida-PIB também depende do
denominador, que o governo também não controla, entre outras variáveis.
Ademais, a autonomia legal do Banco Central deve ajudar a proteger a política
monetária de ingerências indevidas e pressões por desvio de função.
O ponto de partida, evidente, é estabelecer
qual deve ser o nível de dívida almejado. Um critério pode ser o patamar
necessário para recuperar o grau de investimento, o que aumentaria o montante
de capitais que o país poderia atrair e, em última instância, reduziria o custo
de capital na economia. Sob essa ótica, considerando os ratings da S&P, o
Brasil precisaria reduzir a razão dívida bruta/PIB de 88% em 2024 (dado do FMI)
para cerca de 50%.
Alternativamente, para levar em conta o fato
que o Estado brasileiro detém recursos importantes em moeda estrangeira,
poder-se-ia contemplar algo mais elevado, em torno de 60% - o Brasil atingiu o
grau de investimento em 2008 quando a dívida bruta estava em 56% e a líquida em
38% do PIB. Parece-me claro que simplesmente estabilizar a dívida no patamar
atual seria insuficiente para assegurar uma redução do custo de capital: é
preciso mais ambição.
Uma vez definido o objetivo, o ritmo de
crescimento dos gastos vai depender do tempo necessário, com simulações
baseadas em hipóteses plausíveis, para se levar a dívida para o patamar
almejado. As simulações, a propósito, deveriam ser feitas de forma transparente
e com parâmetros consensuais.
De acordo com simulações feitas por
economistas que conhecem os temas fiscais, versões reforçadas do arcabouço,
como parecem ser contempladas pela própria equipe econômica, levariam a dívida
ao nível desejado em um intervalo significativamente menor de tempo do que a
regra atual, ao passo que, no cenário de um retorno ao teto, essa convergência
se daria em 8 a 10 anos. Vale observar que a adoção de um regime fiscal que
tenha credibilidade perante os poupadores induz (como entre 2016 e 2019) uma
redução da taxa real de juros, o que acelera o processo de convergência da
dívida em um ciclo virtuoso.
Um regime alternativo, resumindo,
contemplaria uma meta para a dívida, que, repito, não deve ser apenas
estabilizá-la nos níveis atuais - para oferecer um número específico, algo como
60% do PIB. A diferença entre a dívida observada e o patamar de 60% determinaria
a regra de gastos. Especificamente, quanto mais distante a dívida estiver da
meta, mais restritiva deveria ser a regra de gastos. Dado o ponto de partida,
buscar uma convergência mais rápida requer o retorno ao teto de gastos por um
período razoável, que, claro, pode ser abreviado se ocorrerem surpresas
positivas, viabilizando uma regra de gastos mais flexível.
A pré-condição para o regime funcionar é a
ausência de alterações na métrica da dívida ao longo do tempo - como ocorreu
com a métrica de resultado primário no passado. A credibilidade desse regime,
como de qualquer outro, não sobrevive à hiperatividade contábil. Em particular,
alterar a métrica, justamente no momento em que o regime estaria sendo lançado,
seria equivalente a ter mudado a metodologia do IPCA às vésperas da adoção do
regime de metas para a inflação, constituindo um pecado original difícil de ser
redimido.
Um ponto final, mas fundamental: as
considerações acima partem da ideia que qualquer governo que quiser avançar na
agenda de reforço das contas públicas terá que enfrentar as várias regras de
indexação e vinculação que enrijecem os gastos - a menos que se considere que a
já elevada carga tributária do país possa crescer indefinidamente.
*Economista-chefe do Itaú Unibanco
Nenhum comentário:
Postar um comentário