segunda-feira, 24 de março de 2025

Considerando um novo regime fiscal - Mario Mesquita

Valor Econômico

As taxas de juros reais têm sido muito elevadas durante praticamente todo o período do regime de metas, e não apenas no período mais recente

O Brasil tem o mesmo regime monetário desde a virada do século. Este logrou oferecer ao país um inédito período de inflação baixa para o nosso padrão histórico. O regime de metas para a inflação foi mantido e aprimorado ao longo do tempo, atravessando várias transições políticas. Tornou-se uma política de Estado.

O mesmo não pode ser dito a respeito do regime fiscal. Inicialmente, o país tentou orientar a política fiscal para gerar superávits primários consistentes com a estabilização da dívida pública. Ao longo do tempo, a proliferação de abatimentos e fórmulas contábeis criativas contribuíram para inviabilizar esse regime: o resultado primário oficial perdeu significado e se descolou muito do que seria o resultado efetivo, em termos de impacto sobre a dívida pública.

No entanto, um defeito mais fundamental da utilização de metas para o resultado primário foi não disciplinar diretamente o crescimento das despesas. Como consequência, a trajetória de gastos ininterruptamente crescentes passou a requerer um crescimento também das receitas para assegurar a sustentabilidade da dívida.

Desde o início da década passada, foi ficando claro que a estratégia de ajuste via superávit primário, sem controle de despesas, e diante de uma carga tributária já bastante elevada para o nível e desenvolvimento do país, estava esgotada. Apesar de suas dificuldades, o regime, quando efetivamente implementado, logrou evitar uma explosão da dívida pública. Mas isso veio a um custo: o Banco Central foi compelido a praticar taxas de juros (nominais e reais) muito elevadas para o padrão mundial, de forma a controlar a inflação, constantemente pressionada pelo impulso fiscal.

Nota-se, a propósito, que as taxas de juros reais têm sido muito elevadas durante praticamente todo o período do regime de metas, e não apenas no período mais recente, quando a meta foi ajustada ao padrão internacional.

Depois do colapso do regime de superávit primário, o país optou por adotar um teto para o crescimento da despesa pública. O teto, originalmente, deveria durar por dez anos, período que permitiria uma correção expressiva do gasto público como proporção do PIB. Enquanto estava vigente e sendo implementado, o regime do teto finalmente permitiu ao Banco Central controlar a inflação com taxas de juros baixas.

Mas o interregno do teto, quando o país teve um mix de política econômica menos disfuncional, durou pouco. O regime foi abandonado e posteriormente substituído pelo novo arcabouço fiscal. Este substituiu um teto de crescimento real zero, para crescimento de 2,5% ao ano - seguindo o espírito da regra anterior, mas com mais espaço para o crescimento das despesas.

A julgar pelo comportamento da dívida, da inflação e da taxa de juros real, o arcabouço, ainda que importante para limitar cenários extremos, até aqui não conseguiu gerar os mesmos benefícios que o teto, em termos de credibilidade e percepção de risco fiscal.

Uma crítica ao teto, contudo, é que não estava diretamente ligado à dinâmica da dívida. Para solucionar esse problema, talvez seja o caso de se considerar um regime híbrido com dois tetos, em que o patamar e a dinâmica da dívida pública almejados influenciam a regra de gastos.

Uma crítica à incorporação explícita da dívida na regra fiscal é que ela depende de fatores que não estão sob controle da autoridade fiscal, como a taxa de juros, a cargo da política monetária, colocando a autoridade fiscal a reboque do Banco Central. Outra é que, dado esse fator, o regime poderia gerar algum tipo de constrangimento fiscal para a autoridade monetária. Acontece que a razão dívida-PIB também depende do denominador, que o governo também não controla, entre outras variáveis. Ademais, a autonomia legal do Banco Central deve ajudar a proteger a política monetária de ingerências indevidas e pressões por desvio de função.

O ponto de partida, evidente, é estabelecer qual deve ser o nível de dívida almejado. Um critério pode ser o patamar necessário para recuperar o grau de investimento, o que aumentaria o montante de capitais que o país poderia atrair e, em última instância, reduziria o custo de capital na economia. Sob essa ótica, considerando os ratings da S&P, o Brasil precisaria reduzir a razão dívida bruta/PIB de 88% em 2024 (dado do FMI) para cerca de 50%.

Alternativamente, para levar em conta o fato que o Estado brasileiro detém recursos importantes em moeda estrangeira, poder-se-ia contemplar algo mais elevado, em torno de 60% - o Brasil atingiu o grau de investimento em 2008 quando a dívida bruta estava em 56% e a líquida em 38% do PIB. Parece-me claro que simplesmente estabilizar a dívida no patamar atual seria insuficiente para assegurar uma redução do custo de capital: é preciso mais ambição.

Uma vez definido o objetivo, o ritmo de crescimento dos gastos vai depender do tempo necessário, com simulações baseadas em hipóteses plausíveis, para se levar a dívida para o patamar almejado. As simulações, a propósito, deveriam ser feitas de forma transparente e com parâmetros consensuais.

De acordo com simulações feitas por economistas que conhecem os temas fiscais, versões reforçadas do arcabouço, como parecem ser contempladas pela própria equipe econômica, levariam a dívida ao nível desejado em um intervalo significativamente menor de tempo do que a regra atual, ao passo que, no cenário de um retorno ao teto, essa convergência se daria em 8 a 10 anos. Vale observar que a adoção de um regime fiscal que tenha credibilidade perante os poupadores induz (como entre 2016 e 2019) uma redução da taxa real de juros, o que acelera o processo de convergência da dívida em um ciclo virtuoso.

Um regime alternativo, resumindo, contemplaria uma meta para a dívida, que, repito, não deve ser apenas estabilizá-la nos níveis atuais - para oferecer um número específico, algo como 60% do PIB. A diferença entre a dívida observada e o patamar de 60% determinaria a regra de gastos. Especificamente, quanto mais distante a dívida estiver da meta, mais restritiva deveria ser a regra de gastos. Dado o ponto de partida, buscar uma convergência mais rápida requer o retorno ao teto de gastos por um período razoável, que, claro, pode ser abreviado se ocorrerem surpresas positivas, viabilizando uma regra de gastos mais flexível.

A pré-condição para o regime funcionar é a ausência de alterações na métrica da dívida ao longo do tempo - como ocorreu com a métrica de resultado primário no passado. A credibilidade desse regime, como de qualquer outro, não sobrevive à hiperatividade contábil. Em particular, alterar a métrica, justamente no momento em que o regime estaria sendo lançado, seria equivalente a ter mudado a metodologia do IPCA às vésperas da adoção do regime de metas para a inflação, constituindo um pecado original difícil de ser redimido.

Um ponto final, mas fundamental: as considerações acima partem da ideia que qualquer governo que quiser avançar na agenda de reforço das contas públicas terá que enfrentar as várias regras de indexação e vinculação que enrijecem os gastos - a menos que se considere que a já elevada carga tributária do país possa crescer indefinidamente.

*Economista-chefe do Itaú Unibanco

Nenhum comentário: