O Estado de S. Paulo
Internamente, Trump continua defendendo
irrestritamente a liberdade de expressão, despreocupando-se, porém, com a
soberania popular, outro valor, encarnado pelos ucranianos
A invasão russa na Ucrânia e as atuais
tratativas conduzidas por Donald Trump de um cessar-fogo têm suscitado uma
série de questões relativas a valores, uma vez que o presidente Volodmir
Zelenski posiciona-se como defensor de valores ocidentais, enquanto o
presidente americano o faz dos interesses americanos. Os russos, por sua vez,
colocam-se, também, como protagonistas de valores, só que de outro tipo, os da
cultura russa.
Quando falamos de Ocidente, estamos precisamente falando do quê? A resposta mais imediata consiste nos valores da liberdade, igualdade, democracia e economia de mercado, sobretudo em suas realizações políticas após o término da Segunda Guerra Mundial. Notese que estamos, em termos históricos, tratando de um pouco mais de 70 anos, e a história humana se conta por milênios. Viemos a considerar como “normal” e “natural” o que corresponde a um curto período de tempo. Ocorre, porém, que essas formulações, produtos de um longo processo, tiveram sempre o seu avesso, o colonialismo, o racismo e o antissemitismo, destacando, outrossim, concepções revolucionárias gestadas em seu seio como o comunismo e a sua violência totalitária.
Consequentemente, ao discorrermos sobre os
valores ocidentais, referimo-nos a um extrato de suas significações, os que
viemos a considerar como os valores mais universais da história humana.
Entretanto, os EUA, defensores desses valores, passaram a defender, sob Trump,
uma concepção restritiva, voltada para os interesses materiais,
independentemente de seus valores éticos e religiosos. Há uma espécie de
encolhimento desses valores. Internamente, Trump continua defendendo
irrestritamente a liberdade de expressão, despreocupando-se, porém, com a
soberania popular, outro valor, encarnado pelos ucranianos.
Depreende-se, aqui, uma afinidade entre a
posição de Trump e a de Vladimir Putin, seja na defesa de seus interesses, seja
no realismo geopolítico, podendo esse implicar uma perda de território na
derrota militar, seja no compartilhamento de valores politicamente
autoritários. Seguem, então, a “lei do mais forte”. O presidente russo é, por
sua vez, expressão de sua cultura, e não um simples acidente de sua história. O
autoritarismo sempre fez parte politicamente dessa cultura com Pedro I e
Catarina II ou, na era comunista, com Lenin e Stalin, entre outros.
A Imperatriz Catarina II, em particular, era
uma pessoa culta e refinada, tendo dentre os seus correspondentes Diderot e
Voltaire. Chegou a mandar traduzir a Enciclopédia para o russo. Corresponde a
uma “rainha esclarecida”, ocidental, nesse sentido. Putin, embora não tenha a
cultura e o refinamento de sua antecessora, se posiciona, depois de algumas
oscilações ideológicas, como um não-europeu ocidental, desprezando as
liberdades e a democracia. Segue um filósofo russo, Alexander Dugin, que retoma
a história russa na perspectiva de seus valores originários, como o “povo”, a
“autoridade estatal” e a “Igreja Ortodoxa”, expressões da “Grande Nação Russa”,
equivalente a uma “Civilização”.
A cultura ocidental, por sua vez, produziu o
seu duplo, tanto no caso do nazismo quanto no do comunismo, ambos
caracterizados pelo uso ilimitado da violência internamente nos Estados, com
opressão de suas populações e extermínios, a exemplo do Gulag na União
Soviética e dos campos de concentração e extermínio sob o nazismo. Este último
saiu derrotado da guerra, enquanto o primeiro conseguiu apresentar-se perante a
opinião pública mundial não apenas como “vencedor”, mas como “aliado” dos
ocidentais. Procurou, então, apagar sua afinidade totalitária com o nazismo,
presente no pacto Ribbentrop/Molotov (1939-1941). Após a guerra, empregou o uso
maciço dos meios intelectuais e universitários como correia de transmissão de
sua doutrina, posicionando-se como representante dos valores ocidentais, os da
igualdade. Nesse meio tempo, exercia a mais feroz repressão em relação ao seu
povo, ocupava a Europa do leste e invadia militarmente a Hungria e a
Checoslováquia. A sua mensagem era “revolucionária”, a sua realidade, aterradora.
Nesse sentido, o Hamas é o herdeiro do
comunismo. No massacre de 7 de Outubro, em Israel, assassinou 1.200 pessoas,
com requintes de violência, como mutilação genital, estupro e queima de bebês,
além de sequestros. No entanto, apresenta-se como defensor de valores como a
paz e o cessar-fogo, apesar de sua cultura basear-se no culto à morte,
visceralmente antiocidental. Sua estratégia consistia em obrigar Israel a
aceitar a derrota e o novo status quo, mediante o apoio da opinião pública
ocidental. Universidades em geral e, particularmente, americanas, além dos
meios de comunicação, tradicionais e digitais, foram – e são – os elos
ideológicos dessa cadeia planetária. A Europa caiu novamente nessa armadilha,
sofrendo um branco em seus valores. E, graças às esquerdas, essa estratégia
estava sendo bem-sucedida até a eleição de Trump, apresentando-se, desta
maneira, como defensor do Ocidente.
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