Valor Econômico
Era em que os EUA podiam agir como captador e consumidor de última instância, testada nos anos 1980 por Japão e Alemanha, se tornou impraticável política e economicamente
Como quem está de fora da guerra comercial
entre Estados Unidos e China quer que ela acabe? Eles gostariam que ambos
saíssem derrotados.
Sem dúvida, a abordagem de Donald Trump é muito pior do que apenas sua incoerência intelectual: ela é letal para qualquer ordem global cooperativa. Algumas pessoas gostam de achar que um desmoronamento desse “globalismo” seria até desejável. Do meu ponto de vista, é tolice imaginar que um mundo comandado por “grandes potências” predatórias seria superior ao que temos agora. Ainda assim, embora o protecionismo de Trump tenha que sair derrotado, o mercantilismo chinês não pode sair vencedor, pois ele também criaria grandes dificuldades mundiais.
Para entender os problemas com os quais a
economia mundial se depara, é útil começar pelo tópico dos “desequilíbrios
globais”, que foi tão discutido antes da crise financeira mundial e da crise da
região do euro entre 2007 e 2015. Nos anos desde então, esses desequilíbrios
ficaram menores, mas o quadro geral pouco mudou. Como observa a edição mais
recente do Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional (FMI): a
China e os países credores europeus (mais notavelmente a Alemanha) têm superávits
persistentes, enquanto os EUA têm os déficits equiparáveis. Como resultado, a
posição internacional dos EUA nos investimentos, em termos líquidos, foi
negativa em 24% da produção mundial em 2024. Como os EUA têm déficits
comerciais e em conta corrente e uma vantagem comparativa no setor de serviços,
o país também acumula grandes déficits na indústria.
“E daí?”, poderia perguntar algum entusiasta
defensor do livre mercado. De fato, até um defensor não tão entusiasta do livre
mercado poderia notar, com razão, que os EUA têm desfrutado da felicidade de
viver acima de suas possibilidades há décadas. Isso não precisaria ser um
problema: afinal, ninguém terá condições de forçar os EUA a pagar suas
obrigações. Além disso, eles também dispõem de meios, elegantes ou nem tão
elegantes assim, para dar calotes. Inflação, desvalorização, repressão
financeira e falências em massa de empresas vêm à mente.
Mesmo assim, é possível identificar pelo
menos três grandes buracos nessa forma complacente de ver os grandes e
persistentes desequilíbrios globais. O primeiro é que eles se tornaram
politicamente tóxicos - tão tóxicos que ajudaram a eleger Trump presidente duas
vezes. O segundo é que, no campo dos superavitários, há intervenções, do tipo
soma negativa, idealizadas para alterar o equilíbrio global de poder econômico.
Embora as relações internacionais não se tratem apenas de poder econômico, este
é, certamente, uma parte crucial.
O terceiro é que déficits externos costumam
ter como contrapartida um endividamento local insustentável. Combinado à
fragilidade financeira, isso pode resultar em grandes crises, como ocorreu
entre 2007 e 2015. Os saldos setoriais da poupança e do investimento revelam
sinais desse problema. Os estrangeiros têm mantido um grande superávit de
poupança com os EUA há décadas. As empresas americanas também estão em
equilíbrio ou em superávit desde o início dos anos 2000, enquanto as famílias
americanas estão em superávit desde 2008. Como esses saldos precisam se anular,
para assim chegar a zero, a contrapartida local dos déficits externos dos EUA
tem sido déficits fiscais crônicos.
Se as taxas de juros reais fossem altas, os
déficits fiscais poderiam estar impulsionando os déficits externos crônicos. No
entanto, o que tem ocorrido é o oposto: os juros reais têm estado baixos ou
muito baixos. A hipótese keynesiana parece correta: o influxo, em termos
líquidos, de poupança estrangeira, evidenciado nos superávits na conta de
capital (e déficits na conta corrente), tornou os grandes déficits fiscais
necessários, porque, caso contrário, a demanda doméstica dos EUA teria sido
cronicamente insuficiente.
A imprevisibilidade de Trump e seu foco em
acordos bilaterais são, de fato, tolices. No entanto, a antiga ordem econômica
liderada pelos Estados Unidos também se tornou insustentável. O mundo, em
especial a China e a Europa, precisa pensar em algo novo
A China não é a única protagonista do outro
lado da balança mundial, mas é a mais importante. Michael Pettis está certo, na
minha opinião, ao dizer que a economia mundial não consegue acomodar facilmente
uma economia gigantesca na qual o consumo das famílias é de só 39% do PIB e as
poupanças (e, portanto, os investimentos) são correspondentemente imensos.
Também está claro que isso ajudou a impulsionar o que a firma de análises
econômicas Rhodium Group considera uma política “Made in China 2025” bem-sucedida.
De forma inevitável, as potências industriais tradicionais estão assustadas com
esse rolo compressor chinês.
Isso nos traz de volta à pergunta da semana
passada: quem vencerá a guerra comercial entre EUA e China? Argumentei que a
China venceria, em parte, porque os EUA fizeram do país um parceiro bem pouco
confiável e, em parte, porque a China tem a opção de expandir a demanda interna
e, dessa forma, compensar a perda de demanda americana. Matthew Klein, em seu
excelente “The Overshoot”, na plataforma Substack, responde que a China já
tinha essa opção há tempos, mas deixou de usá-la. Minha resposta é que agora a
China precisa usá-la e, portanto, de fato decidirá expandir a demanda, em vez
de aceitar uma grande recessão interna. Veremos.
O desfecho da guerra comercial entre EUA e
China e a possível evolução das tarifas de Trump são as questões imediatas. No
entanto, os problemas mais amplos em jogo não devem ser ignorados. A política
comercial não deve ser analisada isoladamente. Como sabiam os fundadores do
sistema comercial pós-guerra, mais notavelmente o próprio Keynes, o sucesso
desse sistema também depende de ajustes macroeconômicos globais e, portanto, do
funcionamento do sistema monetário internacional.
No primeiro ato do pós-guerra, os EUA tiveram
grandes superávits em conta corrente, mas os reciclaram via empréstimos. No
segundo ato, até 1971, os superávits dos EUA foram sendo corroídos. Isso levou
ao fim da conversibilidade do dólar em ouro e ao sistema de câmbio flutuante
com metas de inflação, ao menos entre países ricos. Esse sistema funcionou bem
o suficiente até a rápida ascensão da China. Após essa ascensão, a era em que
os EUA podiam agir como captador e consumidor de última instância, testada nos
anos 1980 por Japão e Alemanha, se tornou impraticável política e
economicamente.
A imprevisibilidade de Trump e seu foco em acordos bilaterais são, de fato, tolices. No entanto, a antiga ordem econômica liderada pelos EUA também se tornou insustentável. Os EUA não mais atuarão mais como equilibradores de última instância. O mundo - em especial, a China e a Europa - precisa pensar em algo novo. (Tradução de Sabino Ahumada)
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