Valor Econômico
Deve-se esperar um intenso trabalho nos bastidores dos chineses junto às autoridades brasileiras, em meio à guerra tarifária iniciada pelos EUA
Para os aficionados em registrar momentos
históricos marcados por ironia e simbolismo, não passará batido que o chefe do
departamento de sanções dos Estados Unidos desembarcou em Brasília nestes dias,
justamente enquanto o governo brasileiro finalizava os detalhes da visita de
Estado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China.
Pode-se dizer oficialmente que ele está no
Brasil para discutir questões de segurança. E que, ademais, a recente reunião
entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário de Tesouro dos
EUA, Scott Bessent, é um marco positivo na construção de pontes de alto nível
nas relações bilaterais. Mas, não passaram batidas a comemoração de
parlamentares da oposição e a sua torcida para que dessa visita do americano
pudesse surgir algum desconforto para o governo e o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
É com esse pano de fundo que Lula viaja a Pequim na semana que vem, colocando o Brasil como interlocutor estratégico do presidente chinês, Xi Jinping, na América Latina. No mês passado, por exemplo, Lula chegou a oferecer ajuda para agendar uma reunião entre o presidente do Chile, Gabriel Boric, e o líder do país asiático. Citou que a fluidez no diálogo Brasil-China seria um facilitador para tentar a intermediação.
É previsto ainda que ele tenha papel de
destaque na cúpula entre China e Celac, a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos, após meses de articulação para que o presidente
brasileiro confirmasse presença. Mas deve-se esperar, também, um intenso
trabalho nos bastidores dos chineses junto às autoridades brasileiras, em meio
à guerra tarifária iniciada pelos EUA.
O discurso está afiado. Para o governo
chinês, a investida do presidente Donald Trump representa um risco objetivo às
regras do jogo, um movimento unilateral capaz de implodir a ordem multilateral
e comercial vigente.
Entre autoridades chinesas, a imagem
utilizada é que os EUA estão doentes e, ao tomarem o remédio errado em busca da
reindustrialização e não atacarem as origens dos problemas que levaram à queda
de sua competitividade, deixarão outros países doentes também. As palavras
“chantagem” e “coerção” são pronunciadas. Sustenta-se que as justificativas
apresentadas pelos EUA para os valores das alíquotas mostram que de
“recíprocas” as tarifas só têm o nome.
Feito o preâmbulo, o que se ouve é que a
credibilidade é um dos principais ativos de uma grande potência, que precisa
agir como tal perante outras nações, e não de forma errática e prepotente em
busca da hegemonia. Afinal, quem poderia confiar em alguém que racha a ordem
internacional, rompe acordos regionais e pactos bilaterais com parceiros
tradicionais? “A queda de credibilidade de uma potência gera incerteza e
insegurança.”
Em contrapartida, dizem chineses para
interlocutores brasileiros, o maior “soft power”, ou seja, a capacidade de um
Estado influenciar outro sem usar a força ou o poder coercitivo, é formado por
estabilidade, previsibilidade e certezas. “É o que a China está oferecendo ao
mundo hoje.”
Como consequência, na China a expectativa é
que a tentativa de intimidação irá unir o povo ainda mais sob a liderança do
Partido Comunista. A reação às medidas anunciadas por Trump foram rápidas e
organizadas: o governo está decidido a impulsionar a demanda interna,
aumentando o déficit fiscal e reduzindo a taxa de juros para estimular o
consumo e a produção. Tal postura teria, inclusive, deixado outros atores mais
à vontade para anunciar que também retaliariam os EUA. Negociar? Somente em pé
de igualdade.
Essa é a visão da atual conjuntura sob a
ótica dos chineses, para quem o país está mudando de fase: em vez de exportar
produtos, quer passar a exportar capacidade produtiva. É o que diz fazer no
setor automobilístico. Ou o que é capaz de viabilizar com a iniciativa Cinturão
e Rota, que, nas palavras de uma autoridade, não deve ser tratada como um
conceito geoeconômico nem geopolítico, mas sim uma plataforma para promover a
abertura da China ao exterior e sua conexão com outros países.
Isso não afasta a percepção no Ocidente de
que a iniciativa Cinturão e Rota é, na verdade, um instrumento pensado para
projetar a influência da China mundo afora. E justamente por esse motivo o
Brasil não aderiu ao que se convencionou chamar de Nova Rota da Seda, embora
tenha negociado sinergias com projetos do Novo PAC. Uma das ideias sobre a mesa
é viabilizar o escoamento da produção das regiões Nordeste, Sudeste e
Centro-Oeste para portos no Chile e no Peru, por meio de corredores
bioceânicos, visando o mercado asiático.
Em meio ao lançamento da iniciativa Cinturão
e Rota, em 2013, Xi Jinping lembrou certa vez que havia nascido na província de
Shaanxi, onde está localizado o ponto de partida da antiga Rota da Seda. “Ao
ficar aqui e rever a história, parece que ouço o toque dos guizos dos camelos
ecoando entre as montanhas e vejo as colunas de fumaça subindo sobre o
deserto”, afirmou em um discurso feito no Cazaquistão, olhando ao mesmo tempo
para o passado e o futuro.
Autoridades brasileiras não vão tão longe na
história. Lembram, contudo, como uma estratégia pendular durante a Segunda
Guerra Mundial garantiu ao país uma posição favorável para negociar com as duas
potências da época investimentos no setor siderúrgico. A disposição brasileira
hoje parece a mesma, mas é preciso ver se os americanos estão dispostos a
entrar em um jogo de ganha-ganha.
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