Correio Braziliense
Pela abolição, brancos e negros tornaram-se
iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos
diferenciados, graças ao acesso desigual à educação plena e de qualidade
Em excelente artigo publicado no Correio Braziliense, o ex-ministro Raul Jungmann apresenta sua visão sobre a importância moral e a necessidade social de combater preconceitos e promover a diversidade — respeito e aceitação do outro, pela cor da pele, orientação sexual, religião ou gênero. Apesar da qualidade e relevância, o artigo manteve a tradição de ignorar o "rendismo": a discriminação ao acesso a bens e serviços essenciais conforme a renda da pessoa (comida, educação, saúde). Tampouco menciona que, aplicado à educação, esse preconceito é a principal causa dos outros preconceitos.
O respeito à diversidade nasce do que for
ensinado nas escolas: na formação da mente e na definição de comportamentos.
Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas
famílias e nas salas de aula. Cada vez menos nas famílias e mais nas escolas.
Apesar da percepção, no Brasil, o acesso à escola de qualidade com permanência
até o final da educação básica com qualidade depende de um preconceito
disfarçado: a renda da criança. Jungmann lembra que a abolição foi um gesto de
respeito à diversidade, ao determinar que legalmente ninguém era mais escravo
no Brasil.
Mas o sistema escolar mantém até hoje
"escolas senzala", para pobres, "descendentes sociais" dos
escravos, e "escolas casa grande", frequentadas pelos
"descendentes sociais" dos escravocratas, que podem pagar as altas
mensalidades em instituições privadas ou que conseguem vaga em alguma das raras
boas escolas públicas, quase todas federais. Pela abolição, brancos e negros
tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos
diferenciados, graças ao acesso desigual à educação plena e de qualidade.
Para ser plenamente alfabetizado hoje, é
preciso saber ler, escrever e criticar em português, ser fluente em pelo menos
um idioma estrangeiro; aprender a deslumbrar-se com as artes, ter competência e
gosto para o debate sobre os temas de filosofia, política, antropologia e
sociologia; indignar-se com a permanência da pobreza, desigualdade social,
autoritarismo, corrupção e preconceitos contra as minorias.
Saber usar as ferramentas digitais para
usufruir e trabalhar com elas; formar-se em pelo menos um ofício que permita
emprego e renda; adquirir noções e gosto pela prática de solidariedade com
vizinhos, compatriotas e toda a humanidade: respeitar os patrimônios cultural e
natural e sua diversidade; querer participar da construção de sociedades
pacíficas, com desenvolvimento sustentável, democrático e justo; ser capaz de
obter educação continuada ao longo da vida nestes tempos de limites,
incertezas, revoluções tecnológicas e conceituais e transformações
geopolíticas; garantir a todos que desejarem, a base para concorrer à vaga nas
universidades e nos cursos mais disputados. Essa educação necessária não é
oferecida à maior parte dos brasileiros, discriminados pelo rendismo.
Essa discriminação é executada pela falta de
um Sistema Único Público de Educação Básica com máxima qualidade, permanência e
equidade. Como consequência, o destino de cada brasileiro é definido desde o
nascimento conforme a renda. Apesar de um negro rico poder frequentar a mesma
escola que um rico branco, a pobreza tem cor preta porque a maior parte da
população pobre é excluída da educação de qualidade devido ao rendismo.
O preconceito racial persiste porque a
negação de escola de qualidade discrimina a população afrodescendente que, por
falta de renda, tem suas crianças fora da escola de qualidade. As análises
sobre preconceito e diversidade se mantêm no paradigma tradicional: não
denunciam o rendismo na promoção educacional, na compra de anos de vida e de
saúde e até mesmo no direito à liberdade — em função do poder de compra dos
serviços jurídicos.
Por milênios, houve discriminação racial, mas
a palavra racismo só nasceu durante o nazismo alemão para definir a
discriminação contra os judeus. Depois, se expandiu para os outros tipos de
preconceito racial. Mas, até hoje, a palavra rendismo não é aceita para definir
o preconceito de renda que determina a negação do acesso aos bens e serviços
essenciais — comida, saúde, escolaridade. O mesmo padrão moral aplicado à
desigualdade na qualidade da educação é aplicado à desigualdade no acesso a
bens e serviços supérfluos e suntuários. Além de imoral, essa visão é também
estúpida, porque não é percebida como a causa de todos os demais preconceitos:
a diversidade indecente determinada pela renda, impede o respeito às
diversidades decentes.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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