DEU NO VALOR ECONÔMICO
Não faz muito tempo, a negociação de cargos e ministérios era um assunto quase sigiloso na política brasileira. Um tabu. Caciques partidários saídos de longas reuniões se esquivavam das perguntas e, quando sem opção de fuga, negavam de pés juntos que haviam pedido ou oferecido apoio em troca de postos no governo. Era feio, imoral. Não combinava com os bons costumes. A prática política elevada, supostamente de padrão americano ou europeu, seria puritana e avessa a barganhas. "Não houve qualquer menção a cargos. Conversamos sobre nosso programa de governo" era a resposta de praxe, carregada de desfaçatez.
Nada tão diferente do atual cenário em que se discute a composição do futuro ministério da presidente eleita Dilma Rousseff. Pastas e cargos são pedidos e exigidos sem a menor cerimônia, à luz dos holofotes. O PMDB, que saiu da urnas menor do que entrou, propõe que cada partido mantenha seu quinhão. O PSB, que saiu maior, quer espaço de acordo com seu novo peso. O PT, dono da caneta, é pressionado pelos aliados a quebrar a cabeça para dividir o butim.
O noticiário é invadido pela avidez de quem tem o mapa da mina na mão: o Ministério dos Transportes é joia da coroa; o Turismo vai ser turbinado com verbas para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016; se fulano for confirmado "não ponham na conta do partido", é ministério de porteira aberta ou fechada?
Ou seja, discute-se tudo, ou quase tudo, às claras. O que há algum tempo pareceria um despudor de cenas explícitas de fisiologismo foi naturalizado. Perdeu-se a vergonha. Como isso aconteceu?
Dois fatores podem explicar a mudança de comportamento, que reflete, necessariamente, a aceitação ou, no mínimo, a resignação da sociedade civil ou, pelo menos, dos atores identificados como formadores da opinião pública.
O primeiro, mais estrutural, tem a ver com o crescimento e o amadurecimento da democracia brasileira e a percepção sobre como ela funciona. Não há mais uma visão idealizada. Ao estado de ingenuidade do período inicial da redemocratização seguiu-se a perda da inocência.
O segundo foi o choque de realidade que relativizou a negociação de cargos e a pôs em seu devido lugar, como um mal menor, ou melhor, como algo inerente a qualquer governo de coalizão: o escândalo do mensalão de 2005.
Diante e depois do episódio de cinco anos atrás - e dos demais que se seguiram, como o mensalão de Brasília, no ano passado - barganhas por cargos e espaço político passaram a ser vistas não só como merecedoras de condescendência, mas até de incentivo. Seriam vitais para o equilíbrio e o bom funcionamento do sistema.
Há muitas tentativas de se explicar como o mensalão eclodiu na democracia brasileira, tal como uma doença. Para além das óbvias justificativas de ordem moral, baseadas na natureza humana - como a ganância, a índole corrupta -, desequilíbrios no mercado político teriam estimulado a prática.
A necessidade do PT de financiar campanhas de uma multiplicidade de candidatos que se tornaram competitivos, acima do que o partido estava acostumado, em meio à perspectiva da eleição de Lula em 2002, já foi apontada como uma das razões para a disseminação do dinheiro não contabilizado do caixa dois.
Há quem argumente, como os cientistas políticos Timothy Power e Carlos Pereira, que o mensalão foi provocado por uma espécie de disfuncionalidade no presidencialismo de coalizão liderado pelo PT. O partido, ao não aceitar compartilhar cargos e ministérios de modo proporcional ao peso das bancadas dos aliados, teve de recompensá-los de outra forma, mais "heterodoxa". A melhor comparação seria a de uma falha no mercado político, devido à suposta tendência monopolista do PT ao chegar ao poder. O partido estava supervalorizado, e o mercado político, como qualquer outro, corrigiu o preço do apoio.
"Dilma estará sob grande pressão das facções internas do PT, mas terá que construir um ministério mais proporcional, especialmente com o PMDB", afirma Pereira, professor da FGV e pesquisador do Brookings Institution, de Washington.
Negociações políticas invariavelmente implicam em cargos. Sem eles nada, ou muito pouco, é possível fazer, mesmo com a melhor das intenções. É verdade que há espaço para influenciar os rumos das políticas públicas mesmo sem ser detentor de uma cadeira de comando. A oposição pode pressionar. Há, fora da política institucional, espaço para ONGs, movimentos sociais, variados lobbies e intermediação de interesses. Mas a política profissional vive de cargos e sinecuras.
Com uma dose de realismo que apresenta a maquinaria política como se fosse geometria, os cientistas políticos Kaare Strøm e Wolfgang Müller fizeram famosa formulação sobre o assunto, no livro "Policy, Office, or Votes?: How Political Parties in Western Europe Make Hard Decisions" (1999).
Cargos, políticas públicas e votos são como vértices de um triângulo. Um sustenta o outro. Políticos precisam de cargos para implementar políticas públicas que lhe darão votos. Precisam de votos para terem cargos e fazer políticas públicas. E não podem abrir mão de realizarem políticas, sob pena de serem punidos, ficando sem votos e, logo, cargos.
É um circuito que se alimenta. O tamanho do ministério - o seu orçamento, o número de postos - é critério importante. Mas também se a área de atuação poderá manter e aumentar a base de sustentação do partido.
"Não é à toa, por exemplo, que o Ministério do Trabalho interesse tanto ao PDT, ligado aos sindicatos. Já o PMDB pode contentar seus financiadores de campanha ao dirigir uma Pasta como Transportes", afirma Argelina Figueiredo, professora do Iesp-Uerj e especialista nas relações Executivo-Legislativo.
O apetite, contudo, não pode ser maior do que o estômago. Difícil tachar o PSB de fisiologista porque está pedindo mais um ministério ou uma pasta de maior porte que a de Ciência e Tecnologia. O partido cresceu em relação aos outros sócios da coalizão vencedora.
Por outro lado, legendas como o PTB, que apoiou a oposição na disputa presidencial, e o PP, que se manteve neutro mas quase pulou a cerca, têm seu cacife ameaçado. O peso da bancada conta, mas não é tudo. Lealdade também.
Cristian Klein é repórter de Política.
Não faz muito tempo, a negociação de cargos e ministérios era um assunto quase sigiloso na política brasileira. Um tabu. Caciques partidários saídos de longas reuniões se esquivavam das perguntas e, quando sem opção de fuga, negavam de pés juntos que haviam pedido ou oferecido apoio em troca de postos no governo. Era feio, imoral. Não combinava com os bons costumes. A prática política elevada, supostamente de padrão americano ou europeu, seria puritana e avessa a barganhas. "Não houve qualquer menção a cargos. Conversamos sobre nosso programa de governo" era a resposta de praxe, carregada de desfaçatez.
Nada tão diferente do atual cenário em que se discute a composição do futuro ministério da presidente eleita Dilma Rousseff. Pastas e cargos são pedidos e exigidos sem a menor cerimônia, à luz dos holofotes. O PMDB, que saiu da urnas menor do que entrou, propõe que cada partido mantenha seu quinhão. O PSB, que saiu maior, quer espaço de acordo com seu novo peso. O PT, dono da caneta, é pressionado pelos aliados a quebrar a cabeça para dividir o butim.
O noticiário é invadido pela avidez de quem tem o mapa da mina na mão: o Ministério dos Transportes é joia da coroa; o Turismo vai ser turbinado com verbas para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016; se fulano for confirmado "não ponham na conta do partido", é ministério de porteira aberta ou fechada?
Ou seja, discute-se tudo, ou quase tudo, às claras. O que há algum tempo pareceria um despudor de cenas explícitas de fisiologismo foi naturalizado. Perdeu-se a vergonha. Como isso aconteceu?
Dois fatores podem explicar a mudança de comportamento, que reflete, necessariamente, a aceitação ou, no mínimo, a resignação da sociedade civil ou, pelo menos, dos atores identificados como formadores da opinião pública.
O primeiro, mais estrutural, tem a ver com o crescimento e o amadurecimento da democracia brasileira e a percepção sobre como ela funciona. Não há mais uma visão idealizada. Ao estado de ingenuidade do período inicial da redemocratização seguiu-se a perda da inocência.
O segundo foi o choque de realidade que relativizou a negociação de cargos e a pôs em seu devido lugar, como um mal menor, ou melhor, como algo inerente a qualquer governo de coalizão: o escândalo do mensalão de 2005.
Diante e depois do episódio de cinco anos atrás - e dos demais que se seguiram, como o mensalão de Brasília, no ano passado - barganhas por cargos e espaço político passaram a ser vistas não só como merecedoras de condescendência, mas até de incentivo. Seriam vitais para o equilíbrio e o bom funcionamento do sistema.
Há muitas tentativas de se explicar como o mensalão eclodiu na democracia brasileira, tal como uma doença. Para além das óbvias justificativas de ordem moral, baseadas na natureza humana - como a ganância, a índole corrupta -, desequilíbrios no mercado político teriam estimulado a prática.
A necessidade do PT de financiar campanhas de uma multiplicidade de candidatos que se tornaram competitivos, acima do que o partido estava acostumado, em meio à perspectiva da eleição de Lula em 2002, já foi apontada como uma das razões para a disseminação do dinheiro não contabilizado do caixa dois.
Há quem argumente, como os cientistas políticos Timothy Power e Carlos Pereira, que o mensalão foi provocado por uma espécie de disfuncionalidade no presidencialismo de coalizão liderado pelo PT. O partido, ao não aceitar compartilhar cargos e ministérios de modo proporcional ao peso das bancadas dos aliados, teve de recompensá-los de outra forma, mais "heterodoxa". A melhor comparação seria a de uma falha no mercado político, devido à suposta tendência monopolista do PT ao chegar ao poder. O partido estava supervalorizado, e o mercado político, como qualquer outro, corrigiu o preço do apoio.
"Dilma estará sob grande pressão das facções internas do PT, mas terá que construir um ministério mais proporcional, especialmente com o PMDB", afirma Pereira, professor da FGV e pesquisador do Brookings Institution, de Washington.
Negociações políticas invariavelmente implicam em cargos. Sem eles nada, ou muito pouco, é possível fazer, mesmo com a melhor das intenções. É verdade que há espaço para influenciar os rumos das políticas públicas mesmo sem ser detentor de uma cadeira de comando. A oposição pode pressionar. Há, fora da política institucional, espaço para ONGs, movimentos sociais, variados lobbies e intermediação de interesses. Mas a política profissional vive de cargos e sinecuras.
Com uma dose de realismo que apresenta a maquinaria política como se fosse geometria, os cientistas políticos Kaare Strøm e Wolfgang Müller fizeram famosa formulação sobre o assunto, no livro "Policy, Office, or Votes?: How Political Parties in Western Europe Make Hard Decisions" (1999).
Cargos, políticas públicas e votos são como vértices de um triângulo. Um sustenta o outro. Políticos precisam de cargos para implementar políticas públicas que lhe darão votos. Precisam de votos para terem cargos e fazer políticas públicas. E não podem abrir mão de realizarem políticas, sob pena de serem punidos, ficando sem votos e, logo, cargos.
É um circuito que se alimenta. O tamanho do ministério - o seu orçamento, o número de postos - é critério importante. Mas também se a área de atuação poderá manter e aumentar a base de sustentação do partido.
"Não é à toa, por exemplo, que o Ministério do Trabalho interesse tanto ao PDT, ligado aos sindicatos. Já o PMDB pode contentar seus financiadores de campanha ao dirigir uma Pasta como Transportes", afirma Argelina Figueiredo, professora do Iesp-Uerj e especialista nas relações Executivo-Legislativo.
O apetite, contudo, não pode ser maior do que o estômago. Difícil tachar o PSB de fisiologista porque está pedindo mais um ministério ou uma pasta de maior porte que a de Ciência e Tecnologia. O partido cresceu em relação aos outros sócios da coalizão vencedora.
Por outro lado, legendas como o PTB, que apoiou a oposição na disputa presidencial, e o PP, que se manteve neutro mas quase pulou a cerca, têm seu cacife ameaçado. O peso da bancada conta, mas não é tudo. Lealdade também.
Cristian Klein é repórter de Política.
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