O filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) é, atualmente, uma referência para a ciência política e social, embora no Brasil, assim como na Itália, tenha ficado inicialmente conhecido por suas reflexões sobre Teoria Geral do Direito.
Foi um autor prolífico, atento ao funcionamento dos sistemas políticos democráticos e à dinâmica das relações internacionais, e um defensor obstinado dos Direitos Humanos e da paz.
Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da FAPESP, autor do livro Norberto Bobbio: trajetória e obra, recentemente lançado, destaca à Agência FAPESP aspectos que considera centrais no pensamento do autor.
Leiam a entrevista:
Agência FAPESP – Norberto Bobbio tornou-se conhecido no Brasil, inicialmente entre juristas. Foi só a partir da década de 1970 que sua obra passou a interessar um público mais abrangente. Por quê?
Celso Lafer – Bobbio formou-se em Direito e Filosofia e foi, durante parte significativa de sua vida, professor de Filosofia e de Teoria Geral do Direito. Este, aliás, foi o tema de sua livre-docência, nos anos 1930. A irradiação inicial de seu pensamento, inclusive na Itália, foi no âmbito da Teoria Geral do Direito. Aqui no Brasil, o professor Miguel Reale, de quem fui aluno na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, conhecia e apreciava a sua obra. O meu primeiro contato com a obra de Bobbio se deu nas aulas de Filosofia do Direito do professor Reale. Bobbio sempre refletiu sobre os problemas do Direito. Em um de seus livros, diz que convinha fazer a diferença entre a Filosofia do Direito dos filósofos e a Filosofia do Direito dos juristas, que dizia respeito aos interesses e às inquietações filosóficas daqueles que se dedicam a procurar soluções para os problemas do Direito que não encontram encaminhamento apropriado apenas no Direito Positivo. Nesse sentido, suas reflexões sempre tiveram impacto muito grande entre os juristas. Até hoje é muito frequente encontrar referência a Bobbio na bibliografia dos estudos do Direito. Os cursos de Direito que ministrava eram sobre Teoria do Direito, como teoria da norma jurídica ou teoria do ordenamento, ou sobre grandes pensadores, como Locke e Kant, para citar dois exemplos de figuras importantes para o Direito e para a Teoria Política. Em Norberto Bobbio: trajetória e obra, comento dois importantes livros dele sobre Teoria Jurídica. O primeiro, Teoria do Ordenamento Jurídico, trata de um tema que, como ele sublinha, é a grande contribuição do Positivismo jurídico para a Teoria Geral do Direito. Para Bobbio, o Direito, que é identificado pelas regras de reconhecimento, está em mudança permanente e, portanto, só pode ser diferenciado pelas formas pelas quais é criado e aplicado. No segundo livro, Da Estrutura e Função, ele reflete sobre o papel do Direito como instrumento de mudança da sociedade. Afirma que, no mundo contemporâneo, o Direito não se limita a proibir ou a permitir, mas também a estimular ou desestimular – é o caso dos incentivos, por exemplo, ou de um Direito Econômico e Social que atua como componente de mudança. Temas da política ou da teoria política sempre existiram em sua reflexão, mas ele acabou desenvolvendo mais circunstanciadamente só mais adiante. No final de sua vida acadêmica, passou da disciplina de Filosofia do Direito para a disciplina da Filosofia e Teoria Política, no âmbito da Universidade de Turim, mas já dava aulas de Teoria Política e Filosofia Política desde a década de 1960. No ensaio Filosofia do Direito e Filosofia Política: Notas sobre a Defesa da Liberdade no Percurso Intelectual de Norberto Bobbio, publicado no livro, procuro mostrar como sua reflexão sobre o Direito se relaciona com a reflexão sobre a política.
Agência FAPESP – O senhor conta no livro que, dois meses antes da morte de Bobbio, teve a oportunidade de lhe dizer pessoalmente que suas lições o ajudaram na elaboração das razões que, na condição de amicus curiae, o senhor apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Ellwanger. Quais foram os argumentos de Bobbio que o inspiraram?
Lafer – Bobbio tem grande reflexão sobre os Direitos Humanos em seu livro A Era dos Direitos. Uma das coisas que ele diz é que, no plano da afirmação dos Direitos Humanos, você tem uma primeira fase que é a da generalização, que postula a igualdade e a não discriminação. Há ainda componentes de internacionalização e de especificação, ou seja, do ser em situação: velhos, deficientes, vítimas do racismo, entre outros. Em meu argumento sobre o caso ao STF expus alguns desses aspectos. O tema era o caso de um editor de Porto Alegre, Siegfried Ellwanger, que se dedicava a publicar obras notoriamente antissemitas e também a denegar o holocausto. Ele foi condenado pelo crime da prática de racismo, de acordo com o que estabelece a legislação brasileira, especificando o texto constitucional. Ele entrou com pedido de habeas corpus argumentando que, como os judeus não são uma raça, o crime não era de prática do racismo e, com isso, afastava o problema da imprescritibilidade. O meu argumento foi o de que os judeus não são uma raça, pois não existem raças, mas só uma raça, a raça humana: os brancos, os ciganos, os negros, os índios, todos podem ser vítimas do racismo. O racismo, eu argumentava, é uma prática social e cultural e como tal deve ser interpretado. No meu argumento me vali do princípio da especificação proposto por Bobbio. A Constituição brasileira parte da ideia de igualdade e não da discriminação, especificada no artigo que trata dos direitos e das garantias. Uma das especificações é a do crime da prática do racismo, no qual se enquadrava o crime de Ellwanger. Também afirmei que o Brasil incorporou textos de Direito Internacional e entre os mais importantes está a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, onde a tipificação do crime da prática do racismo está perfeitamente compatível com a condenação de Ellwanger. Portanto, haveria aí um ingrediente adicional para a interpretação do texto brasileiro. Terminava mencionando um discurso que Bobbio fizera em 1960, na sinagoga de Turim, perante a comunidade judaica e na condição de não judeu, em que discute o significado do holocausto e do racismo antissemita. Afirmava que o racismo era lamentável e que sua pior forma tinha sido o antissemitismo comandado pelos nazistas. Caberia aos homens de boa vontade, independentemente de suas divergências, fazer um pacto para evitar que essas coisas se repetissem. Esse discurso está mencionado na parte três do livro, nos artigos Bobbio e o Holocausto: um capítulo de sua reflexão sobre os direitos humanos e Bobbio e o Holocausto – uma aproximação com Hannah Arendt, publicado na Revista USP. Como os ministros do STF são juristas qualificados e conhecem a obra de Bobbio no âmbito jurídico, o impacto da clareza do argumento dele teve ressonância. Ellwanger foi condenado por racismo por maioria de sete a três e a maior parte dos juízes citou Bobbio nos votos.
Agência FAPESP – Bobbio se dizia socialista-liberal. Para um ouvido leigo, socialismo e liberalismo são antagônicos. Como ele fazia essa conciliação?
Lafer – Bobbio segue uma tradição italiana importante, começando por estudiosos italianos, assassinados pelo fascismo, os irmãos Rosselli. Carlo Rosselli – fundador do movimento Giustizia e Libertá, assassinado em 1937 –, em seu livro Socialismo Liberal, argumentava que a soma das aspirações de igualdade do socialismo com o empenho na liberdade do liberalismo apontavam um caminho, uma orientação. Bobbio se sentiu próximo dessa visão. A edição italiana do Socialismo Liberal traz um prefácio do Bobbio, reproduzido na edição brasileira, e é muito interessante.
Agência FAPESP – Como foi a relação dele com as ideias de Palmiro Togliatti, Antonio Gramsci e Enrico Berlinguer, líderes históricos do Partido Comunista Italiano?
Lafer – Bobbio era um bom estudioso da obra do Gramsci e dialogou muito com os comunistas. Fez de sua relação com o Partido Comunista Italiano um diálogo com, e não uma prédica contra. Entendia que o PCI não estava levando em conta os valores da liberdade. No livro Política e Cultura, dos anos 1950, debate com os comunistas italianos e acaba terminando num diálogo com Togliatti. Isso mostra como os comunistas italianos sempre foram mais abertos para a discussão desses grandes temas. Creio que Bobbio brigou com os comunistas porque entendia que a defesa da liberdade não era levada em conta na experiência do comunismo na URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas]. Quale Socialismo? Discussione di um´alternativa, dos anos 1970, também é um livro de polêmica. Bobbio diz que há duas perguntas que vêm dos clássicos, mais precisamente de Aristóteles: quem governa? – um, poucos e muitos – e como governa? – bem ou mal, distinção que Aristóteles faz entre monarquia e tirania e entre oligarquia e aristocracia. Para ele, a reflexão da esquerda comunista parte do princípio de que, se o proletariado e o partido – que seriam o “muitos” – governarem, automaticamente governarão bem porque são a classe universal. O argumento central de Bobbio é que não se resolve o como se governa com o quem governa. É preciso levar em conta as instituições. A contribuição que a esquerda deu à Teoria Política é a Teoria do Partido: o partido de massas, que provém da 2ª Internacional [Internacional Socialista, 1889-1916], e o partido de vanguarda, de inspiração leninista. Mas não há nada em matéria de reflexão sobre o Estado e instituições. Quando caiu o Muro de Berlim e desapareceu a URSS, Bobbio escreveu L´utopia capovolta e Esquerda e Direita, dois livros com imensa repercussão. Dizia que, só porque o fim do socialismo real aconteceu, os problemas da igualdade e da pobreza não estavam resolvidos. Não dava, portanto, para eliminar a preocupação com a igualdade.
Agência FAPESP – Bobbio acompanhou atentamente o Movimento de 1968. O que o preocupava?
Lafer – Ele olhou para 1968 com muito interesse porque aquilo representou uma mudança na sociedade italiana e em suas aspirações. O que o impressionou naquele momento foi o capítulo da violência. Na experiência italiana, a violência era a prática do fascismo. Bobbio preocupou-se ao ver como a violência – o maoísmo e as brigadas vermelhas, por exemplo – estava ocupando um espaço crescente na esquerda. Dizia que o único salto qualitativo possível – mas não necessário – da convivência coletiva é a passagem do reino da violência para o reino da não violência, para um mundo regido por normas e pelo Direito. Não foi crítico de formas mais intensas de participação como parte da organização das vozes da vida democrática, mas ele não via a democracia direta substituindo, nas sociedades modernas de massa, o potencial de contribuição da democracia representativa. Ou seja, ele vê nos mecanismos da democracia direta uma forma de aprimorar a democracia representativa e não de substituí-la.
Agência FAPESP – Na defesa da não violência ele também faz um elogio à tolerância, não é?
Lafer – Bobbio dá diversas razões para a tolerância. A questão da tolerância surgiu na Europa e no mundo ocidental com o problema da divisão do mundo cristão entre católicos e protestantes. Aparece, primeiro, como liberdade religiosa, o que não era um problema simples, já que conciliava verdades tidas como contrapostas pelos seguidores. Desenvolveu-se mais adiante com as liberdades políticas, que são a base da democracia. A questão era: como se convive com visões e verdades políticas distintas? Bobbio diz que há várias razões para a tolerância, para a afirmação do valor da tolerância, e uma delas é o respeito pelo outro. E, finalmente, há também um problema prático: ou se tolera e assim se convive, ou se persegue. Não há um terceiro caminho. Ele complementa dizendo que há uma razão mais profunda: a realidade é ontologicamente complexa e a tolerância é a expressão, no plano do conhecimento e da vida política, de que o mundo é complexo e de que é preciso lidar com isso. Diz ainda: a tolerância surgiu no mundo como uma maneira de lidar com opiniões e verdades diferentes e, hoje, o grande desafio é como conviver com os diferentes, com as minorias, com o outro que é diferente, e esse é o tema da xenofobia, do preconceito racial ou sexual, é o tema desse mundo multicultural e multidiverso.
Agência FAPESP – Em seu último livro, O Tempo da Memória, Bobbio fala do significado da velhice no mundo contemporâneo. Como ele trata esse tema?
Lafer – Nesse ensaio ele trata da experiência de ser velho. Diz que a velhice passou a ser um problema para o mundo moderno, o que não acontecia quando Cícero escreveu De Senectute. As pessoas vivem mais e vivem mais como velhos. E o que é viver como velho? Bobbio tem imagens muito límpidas: o velho desce a escada e sabe que não há volta, e sabe também que o número de degraus é cada vez menor. Uma coisa é o movimento solene dos cardeais na procissão, mas o velho anda devagar porque não consegue andar de outra forma. São reflexões muito interessantes.
Agência FAPESP – O senhor é considerado padrinho de um “casamento” muito desejado pela comunidade acadêmica: o de Hannah Arendt com Norberto Bobbio, ao articular o Centro de Estudos Hannah Arendt, recentemente inaugurado, com o Instituto Norberto Bobbio. Os dois filósofos algum dia se encontraram de fato?
Lafer – Nunca se conheceram nem se encontraram. Acho que Hannah nunca leu nada de Bobbio. Creio que Bobbio tinha bem mais informações sobre ela, mas nunca escreveu sobre Arendt. Em A Era dos Direitos, ele cita meu livro sobre Hannah Arendt, em que trato da questão dos Direitos Humanos em sua obra. A mesma sensibilidade de geração os aproxima: ambos lidaram com a era dos extremos e se preocuparam com o que ela significou. Têm temas em comum e, no ensaio sobre Bobbio e o Holocausto, faço uma aproximação entre a noção do mal em Hannah Arendt e em Bobbio. Os meus alunos brincavam que eu gostaria de ter casado os dois e que, agora que eles morreram, estou fazendo essa aproximação. Eles pensam de maneira diferente, mas leram os autores fundamentais – Hobbes, Marx, entre outros – e se relacionam com eles, o que cria vários potenciais de aproximação.
Fonte: Agência FAPESP
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