quarta-feira, 17 de maio de 2017

Os males da guerra fiscal | Cristiano Romero

- Valor Econômico

Disputa tributária afeta competitividade de toda a economia

A guerra fiscal entre os Estados é, talvez, a maior expressão do conflito federativo existente no Brasil. A concentração de riqueza nas regiões Sul e Sudeste e a ausência de políticas efetivas de desenvolvimento regional por parte do governo federal estimulam, desde o fim dos anos 60, os governadores dos Estados mais pobres a oferecer incentivos fiscais e outras vantagens para atrair investimentos. Nos últimos 20 anos, Estados como Goiás, Pernambuco, Bahia e Ceará lograram algum sucesso por meio dessa estratégia, mas a lista de efeitos colaterais decorrentes da guerra fiscal é grande e danosa à economia, à sociedade e mesmo às unidades da nação que procuram se beneficiar desse expediente.

O principal componente da guerra fiscal é o ICMS. Ninguém se lembra, mas esse imposto nasceu como um moderno tributo incidente sobre valor agregado - um IVA. O Brasil foi pioneiro ao criá-lo em 1966, no tempo das reformas econômicas conduzidas por Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões. Antes do ICM - o S de serviços veio depois -, havia um imposto sobre vendas, caracterizado por um selo.

No início, o ICMS tinha regra única e era harmonizado. Com o imposto, o país saltou da Idade da Pedra, em termos tributários, para a modernidade. Mas, como dizia Antônio Carlos Jobim, o Brasil não é um país para amadores - três anos depois de instituído, o tributo começou a passar por mudanças, justamente para dar maior autonomia aos Estados, interessados em usá-lo para atrair plantas industriais.

A confusão já era grande quando, em 1975, aprovou-se a Lei Complementar 24 para limpar o passado e tentar frear a disputa fratricida dos entes da federação. Adotou-se, então, o princípio segundo o qual as mudanças de alíquotas só poderiam ser feitas após aprovação unânime do Confaz, órgão onde têm assento os secretários estaduais da Fazenda. Com a Constituição de 1988, os Estados ganharam mais autonomia e estímulo para promover a guerra fiscal.

Ao longo dos últimos 30 anos, a situação só piorou e o sistema assumiu complexidade incontornável. Hoje, na prática, existem 27 legislações diferentes para o ICMS, uma em cada Estado e no Distrito Federal. As alíquotas incidentes sobre serviços de preços administrados (combustíveis, energia elétrica e comunicações) são extremamente elevadas, constituindo um sério obstáculo ao empreendedorismo e à competitividade da economia. E mudar o regime é difícil porque, na prática, envolve negociação com 27 governadores de cinco regiões, todos com interesses distintos - não se tenha dúvida: o que impede, desde os anos 90, a realização de uma reforma tributária no país é o ICMS.

Os males da guerra fiscal são muitos. Eis alguns:

1) ela provoca a migração de empresas atraídas por incentivos artificiais, com perda de empregos, arrecadação e eficiência econômica;

2) distorce a alocação de investimentos e gera situações de baixa concorrência ao fechar mercados regionais para determinadas empresas, podendo estimular a criação de monopólios e oligopólios, além de mascarar ineficiências econômicas;

3) os benefícios concedidos a empresas específicas, e não a setores, provocam distorções no mercado, com quebra de isonomia concorrencial;

4) a competição predatória entre os governos estaduais provoca a corrosão da base tributável dos Estados que oferecem os incentivos e dos que perdem as empresas;

5) a maior complexidade da legislação tributária demanda grande volume de trabalho dos Fiscos estaduais e dos contribuintes; a complexidade também diminui a transparência, abrindo brechas para a sonegação fiscal e a corrupção;

6) a perda de arrecadação acarreta falta de recursos para manutenção dos serviços públicos, investimentos na área social e em infraestrutura;

7) por causa da perda de receita, os Estados passam a sobrecarregar a tributação de preços administrados e se tornam mais dependentes de repasses da União; à medida que os Estados dependem mais de repasses e cedem suas bases tributáveis, perdem autonomia financeira e legislativa;

No episódio recente de quebra dos Estados, há pelo menos um exemplo que mostra bem como é perigoso usar a guerra fiscal para atrair investimento. Acreditando que a euforia dos preços do petróleo duraria para sempre, o Rio de Janeiro concedeu incentivos fiscais para tirar até concessionárias de automóveis de São Paulo. Foram oferecidos tantos estímulos que, com a queda acentuada dos preços do petróleo nesta década, o Estado perdeu parte significativa de sua principal receita - os royalties sobre a produção de petróleo - e, ao olhar para o lado, constatou que sua arrecadação foi erodida por incentivos concedidos em contratos de longo prazo.

Mas o que está ruim ainda pode piorar. Neste momento de grande ativismo legislativo, em que o governo Temer corretamente tenta passar reformas cruciais, como a da previdência, deputados correm para tentar aprovar o projeto de Lei Complementar 54. O principal objetivo é estender por 15 anos a vigência dos benefícios instituídos pela guerra fiscal, sem redução gradual dos benefícios. O projeto, segundo o Cebrap, tem alta probabilidade de ser aprovado no curto prazo.

Os Estados mais afetados pela guerra fiscal já obtiveram apoio do Ministério da Fazenda para mudar o projeto. Basicamente, o que eles querem é que a nova lei tenha três pilares: a obrigação de transparência do benefício com checagem de sua validade em portal único nacional - isto, porque uma grande parcela dos contratos atuais é ilegal (não tem amparo do Confaz) e de gaveta -; o acesso de todos os Estados às notas fiscais eletrônicas de operações interestaduais e à escrituração fiscal; e a listagem e quantificação dos benefícios nas leis de diretrizes orçamentárias de cada Estado.

Pelo substitutivo que o governo deve apresentar à Câmara, os benefícios seriam mantidos por mais 15 anos, mas, a partir do primeiro, haveria redução de 5% a cada ano e de 10% a partir do 12º na área industrial, por exemplo. A ideia é promover redução gradual dos benefícios para não provocar disrupção na economia. O substitutivo instituiria também penalidades graves às autoridades estaduais que descumprissem a nova lei - crime comum, improbidade administrativa, crime de responsabilidade e proibição dos Estado para receber transferências voluntárias da União e aval na tomada de crédito.

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