'O Momento Literário' e 'Crônica Teatro Folhetim' retratam a intelectualidade da época
Gutemberg Medeiros* / O Estado de S.Paulo
O jornalismo também pode ser somado a outros elementos para a memória social, fundamental na constante elaboração da História. Percebendo isto em 1916, escreveu João do Rio em crônica: “Ora, com os jornaes, as chronicas, as novelas, os romances, os desenhos, faz-se a historia.” Em não poucos momentos de sua vasta obra, ele descortinou o Rio de Janeiro subterrâneo, dos marginalizados, estreitamente ligado à cidade oficial. Dois relançamentos do autor chegam às livrarias: O Momento Literário (Rafael Copetti Editor) e Crônica Teatro Folhetim (Carambaia). Ele era sempre jornalista como Nelson Rodrigues, independente do gênero de escritura. A ponto de revelar elementos de como nos morros cariocas teve início a ausência do Estado, o que gerou o advento do crime organizado que se ramificou pelo País.
Paulo Barreto (1881-1921) foi um dos mais importantes jornalistas brasileiros do princípio do século passado atuando no destacado jornal Gazeta de Notícias. O veículo havia anos trazia modernizações na imprensa brasileira e a mais central foi a figura do repórter, o que sai nas ruas em busca da notícia. E o primeiro foi Paulo Barreto, mais conhecido pelo pseudônimo João do Rio. Ele deixou vasta produção – muita coisa ainda inédita em livro. Também se notabilizou como tradutor de obras de Oscar Wilde, fazendo-se um dândi refinado como seu ídolo irlandês, mas conseguiu se legitimar na conservadora sociedade carioca sendo homossexual e de visível ascendência negra. Justamente por esta condição de gênero teve seu nome mergulhado em silêncio por décadas e, a partir dos anos de 1970, a sua produção pouco a pouco foi valorizada nas universidades e editoras.
Ainda introduziu a modalidade da reportagem em série no País, tendo a percepção de que apuração jornalística em profundidade tinha vocação para vencer a validade curta do papel jornal e se alçar à perenidade do livro, assim como se fazia então na França e EUA. O Momento Literário (1905) é obra de referência até hoje para quem estuda a literatura brasileira da época com ecos nas décadas seguintes, sendo uma enquete com perguntas a 40 intelectuais da época. Entre os entrevistados estão Olavo Bilac, Silvio Romero, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque e Clóvis Bevilaqua. A presente edição é a quarta, mas o texto foi estabelecido pelas professoras da Unesp Silvia Maria Azevedo e Tania Regina de Luca, checando todas as entrevistas publicadas em jornal e a versão em livro. Além de esclarecedor estudo introdutório sobre a vida e obra de João do Rio, acrescentaram notas explicativas de rodapé. Também corrigiram erros tipográficos e respondem pela atualização ortográfica. As entrevistas exploram vários aspectos como as principais influências de cada entrevistado, qual o estado de então da prosa ou poesia no Brasil e até se o jornalismo é positivo ou prejudicial à produção literária. O que emerge é uma variedade de vozes que se polemizam, compondo quadro rico e único do momento literário.
A mais ampla e vertical coletânea de obras de João do Rio já feita foi organizada pela pesquisadora Graziella Beting em 2015 e logo ficou fora de catálogo. A reedição, pela coleção Acervo, da Carambaia, sai em junho em único volume de 544 páginas com crônicas, teatro e folhetim – um gênero interpenetrando no outro. O próprio autor via esta miscigenação textual em sua obra. Beting aponta, na introdução, artigo publicado dois anos após a morte do escritor no jornal A Pátria. “Se a minha ação no jornalismo brasileiro pode ser notada é apenas porque desde o meu primeiro artigo assinado João do Rio eu nunca separei jornalismo de literatura, e procurei sempre fazer do jornalismo grande arte.” As 34 crônicas deste volume são representativas de sua vasta produção, sendo mais da metade inéditas em livro. Provavelmente a principal contribuição dessa coletânea é tirar do esquecimento dos arquivos de jornais o misto de crônica e reportagem Na Favela, publicada na primeira página da Gazeta de Notícias, em 21 de maio de 1903. Talvez João do Rio tenha sido o primeiro jornalista a subir o morro, mesmo com todo o seu aparato de dândi, e trazer pormenores sobre a realidade do Morro da Providência.
O estilo literário se amalgama à descrição jornalística ao expor as péssimas condições de vida em todos os sentidos. Os barracos são feitos de bambu com barro, o teto é de pedaços de folha de flandres, “pocilgas” cuja maior parte não tem metro e meio de altura. Onde se amontoam “famílias numerosas, crianças nuas, com o ventre enorme, mulheres amarelas” expostas a todo tipo de doenças contagiosas aliadas à falta de saneamento. Ou seja, a completa ausência do Estado em relação a cerca de um terço da população da então capital federal na mais completa miséria. Esta omissão foi o principal ingrediente para a formação do crime organizado a partir da década de 1970 que ocupou este lugar e se ramifica pelo país afora.
As demais crônicas dão conta dos interesses e olhares do autor – de panorâmicas a detalhes – sobre a contemporaneidade nos mais variados lugares ou segmentos sociais. Os títulos dão ideia do que João do Rio abordava: O Brasil Lê, O Mundo dos Feitiços – Os Feiticeiros, Os Satanistas, Os Sports – O Foot-Ball, O Barracão das Rinhas. Outro aspecto patente nesta seleta é seu olhar diverso sobre as profundas transformações urbanísticas pelas quais passou o Rio de Janeiro no conhecido “bota-abaixo” na primeira década do século – quando a parte do centro da urbe quis se fazer à imagem e semelhança da Paris do século 19. O teatro e o folhetim também comportam o mesmo olhar jornalístico que muito revela do Brasil atual.
*Gutemberg Medeiros é pesquisador, professor, doutor pela ECA/USP e pós-doutorando na PUC-SP
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