- Valor Econômico
BCs estão tornando mais fácil custear déficits fiscais escancarados
Em resposta à pandemia da covid-19, o Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos) comprará quantias ilimitadas de títulos do Tesouro americano, o Banco da Inglaterra, 200 bilhões de libras (US$ 250 bilhões) de títulos do governo britânico, e o Banco Central Europeu (BCE), € 750 bilhões de bônus da zona do euro. Quase certamente, os bancos centrais acabarão proporcionando financiamento monetário para custear déficits fiscais. A única dúvida é se devem tornar isso explícito.
A política monetária, por si só, é claramente impotente nas circunstâncias atuais. Os bancos centrais cortaram taxas referenciais de juros, e as compras de bônus vêm pressionando para baixo os rendimentos dos papéis de longo prazo. Ninguém acredita, no entanto, que essas baixas taxas de juros motivarão aumentos nos gastos dos consumidores ou nos investimentos das empresas. Em vez disso, a queda no crescimento econômico será neutralizada (da melhor forma possível) por aumentos nos gastos governamentais em saúde, apoio direto à renda dos trabalhadores demitidos e impostos mais baixos. Isso resultará em déficits fiscais sem precedentes.
Na teoria, financiar esses déficits por meio da venda de bônus governamentais poderia elevar o rendimento dos bônus, potencialmente anulando a força dos estímulos. Mas com os bancos centrais comprando bônus e pressionando os rendimentos para baixo, os governos poderiam captar tudo o que precisassem a taxas de juros baixíssimas.
Quando os Estados Unidos, usaram essa política durante a Segunda Guerra Mundial, o papel do Fed em facilitar o financiamento via títulos de dívida foi explícito: de 1942 a 1951, comprometeu-se a comprar bônus do Tesouro em qualquer volume necessário para manter os rendimentos baixos. Desta vez, compromissos explícitos como esse têm sido evitados, mas o efeito é o mesmo: os bancos centrais estão tornando mais fácil financiar déficits fiscais escancarados.
Se isso será um financiamento monetário permanente ou não vai depender de que esses bônus sejam algum dia vendidos de volta ao setor privado, com os balanços dos bancos centrais voltando a níveis “normais”. Nos EUA, essa reversão nunca ocorreu.
Tempos depois, em seu livro, “A Monetary History of the United States” (uma história monetária dos Estados Unidos, em inglês), Milton Friedman e Anna Schwartz estimaram que cerca de 15% do esforço de guerra foi financiado por dinheiro do banco central em vez de por impostos ou dívidas que tenham sido realmente pagas em alguma ocasião. No Japão, onde 25 anos de grandes déficits fiscais foram acompanhados por compras igualmente grandes de bônus governamentais pelo Banco do Japão, está óbvio que os bônus em mãos do banco central nunca serão vendidos: houve financiamento monetário permanente.
Portanto, o financiamento monetário não precisa ser explícito para ser permanente. Todas as compras de ativos por bancos centrais nos últimos dez anos, o chamado afrouxamento monetário quantitativo (QE), poderiam, olhando em retrospectiva, envolver financiamento monetário.
Essa possibilidade aterroriza quem acredita que o financiamento monetário leva a uma hiperinflação. Tais temores são absurdos. Friedman disse que em depressões deflacionárias, deveríamos jogar notas de dólares de um helicóptero para que as pessoas as pegassem e as gastassem. Se o presidente Donald Trump, ordenasse jogar US$ 10 milhões desse dinheiro de helicóptero o impacto na atividade real ou na inflação seria minúsculo. Mas suponhamos que ele ordenasse US$ 1 quatrilhão: obviamente, haveria hiperinflação. O impacto do financiamento monetário depende da escala.
Os temores quanto ao impacto de longo prazo no balanço de um banco central e na lucratividade dos bancos privados também são infundados. Os bancos centrais não criam diretamente o dinheiro em posse de pessoas físicas ou jurídicas; o que eles criam é a base monetária mantida como ativos de reserva pelos bancos. Como resultado, os bancos centrais, que pagam taxas de juros sobre as reservas, se deparariam com um custo contínuo se criassem mais desse dinheiro.
Mas os bancos centrais podem criar dinheiro sem custos pagando taxa de juro zero em certo volume de reservas de bancos privados. E, embora essas reservas a taxas zero possam impor um imposto sobre a criação de crédito quando a atividade econômica se reanimar, isso poderia ser desejável, porque impediria que os estímulos iniciais fossem multiplicados danosamente pela criação futura de dinheiro pelos bancos privados.
Portanto, analisando de perto, todas as aparentes objeções técnicas ao financiamento monetário se evaporam. Não há dúvida de que o financiamento monetário é tecnicamente viável e que autoridades monetárias fiscalmente sensatas podem simplesmente escolher o volume “adequado”.
A questão crucial é se é possível confiar que os políticos sejam sensatos. A maioria dos técnicos de bancos centrais é cética e teme que o financiamento monetário, uma vez abertamente permitido, se torne excessivo.
Eles podem estar certos: talvez a melhor política seja fornecer financiamento monetário, enquanto se nega o fato. Governos são capazes de ter grandes déficits fiscais. Bancos centrais podem permitir que esses déficits sejam financiados a taxas próximas a zero.
E essas operações podem ser revertidas se as taxas futuras de crescimento econômico e de inflação forem maiores do que as previstas atualmente. De outra forma, elas se tornariam permanentes. Mas ninguém precisa reconhecer essa possibilidade antecipadamente.
Paradoxalmente, o único risco dessa abordagem é que os bancos centrais sejam demasiado confiáveis. Se pessoas físicas ou jurídicas acreditarem na promessa das autoridades monetárias de nunca permitir o financiamento monetário e de que todas as operações de QE serão revertidas definitivamente, elas vão esperar que toda a nova dívida pública precise ser paga com o dinheiro de impostos futuros. E antecipar-se a esse fardo poderia reduzir os gastos dos consumidores e os investimentos das empresas hoje.
A abordagem alternativa é a honestidade - desde que se anule o risco de que a honestidade leve a excessos. Andrew Bailey, presidente do Banco da Inglaterra, argumentou em 5 de abril que o financiamento monetário explícito é “incompatível com a busca de uma meta de inflação por um banco central independente”. Mas Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, mostrou por que isso não é verdadeiro, ao propor, em vez disso, que bancos centrais independentes deveriam determinar o volume de qualquer financiamento monetário, com os governos decidindo como gastar o dinheiro.
Bancos centrais independentes poderiam tomar decisões explícitas sobre o volume ideal de financiamento monetário. Mas, sendo explícitas ou não, uma grande proporção das operações atuais de QE, em retrospectiva, terão financiado déficits fiscais ampliados.
*Adair Turner, chefe da Comissão de Transição Energética do Reino Unido, foi chefe da Comissão de Serviços Financeiros de 2008 a 2012. Seu livro mais recente é “Entre a Dívida e o Diabo". Copyright: Project Syndicate, 2020.
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