segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A ‘privatização’ da PPSA e o direito das gerações futuras – Editorial | Valor Econômico

Melhor seria aperfeiçoar o ambiente regulatório e acelerar o leilão de mais áreas, sem cair nas tentações de curto prazo

Pelos valores envolvidos, nenhuma das privatizações pretendidas atualmente pelo governo federal é - ou deveria ser - tão controversa quanto a da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), criada em 2013 para gerir contratos de partilha da produção petrolífera em águas ultraprofundas. Estimativas da área econômica indicam a possibilidade de arrecadação de até R$ 500 bilhões, o que corresponde a cerca de 7% do PIB, com essa operação. A rigor, é bem verdade que não se trata de “privatizar” nada, mas de uma venda de ativos (contratos da União gerenciados pela estatal) antecipando receitas futuras.

Há que se lembrar a própria polêmica em torno do nascimento da PPSA. O país vinha de uma década de experiência bem sucedida com o modelo de concessão e leilões anuais de exploração de novas áreas. A combinação de baixíssimo risco exploratório, qualidade do óleo e preços internacionais nas alturas fez os governos da época levarem adiante uma reviravolta no modelo como forma de imprimir um “passaporte para o futuro” - expressão usada por Dilma Rousseff em seu primeiro discurso de posse como presidente.

Os resultados foram, com boa vontade, duvidosos. O país ficou cinco anos sem leilões, viu afundar a tentativa de construção de uma indústria naval e engessou o desenvolvimento do pré-sal mediante a exigência de ter a Petrobras como operadora única dos campos no momento em que a estatal alcançava o indesejável título de petroleira mais endividada do mundo. A criação da PPSA, no âmbito das mudanças regulatórias promovidas à época, provou-se desnecessária. Embora enxuta, com um quadro de 55 servidores, ela tornou-se mais um peso na intricada burocracia do Estado.

Nos contratos de partilha, o poder público arrecada de quatro formas diferentes. Uma é o conjunto de impostos e tributos aplicados sobre a cadeia produtiva. A segunda são os royalties, que equivalem a 15% da produção. A terceira, bônus de assinatura pagos à vista pelas empresas vitoriosas nos leilões do pré-sal. Por último, vem o lucro-óleo. Nesse último caso, a União fica com uma parte (em barris) de tudo o que as petroleiras retiram de seus blocos, descontando os custos de extração, auditados pela PPSA. À estatal cabe, finalmente, ir ao mercado e encontrar compradores para a fatia pertencente à União.

No campo de Libra, primeiro licitado sob o regime de partilha, o lucro-óleo ficou em 41,65%. Nas áreas de Búzios e Itaipu, leiloadas no ano passado como excedentes da cessão onerosa, esses percentuais são de 23,24% e 18,15% respectivamente. Segundo o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, considerando todos os contratos gerenciados pela PPSA suas atividades podem gerar receitas de R$ 1,5 trilhão em 30 anos.

O que se tem chamado figurativamente de “privatização” da PPSA seria vender os direitos sobre esses contratos. Na leitura da área econômica, isso mitigaria ou eliminaria o risco de perdas no valor dos ativos da União, já que os preços do petróleo no futuro são muito incertos e novas tecnologias, como carros elétricos, podem tomar o espaço hoje ocupado por combustíveis fósseis. Esse risco ficaria nas mãos da iniciativa privada e o governo, ao se apropriar imediatamente dos recursos que teria mais à frente, poderia usá-los no abatimento da dívida pública.

Para fazer sentido financeiro, a taxa de desconto sobre essas receitas futuras deve ganhar dos juros de longo prazo dos títulos públicos, tornando a mera rolagem da dívida um processo mais caro para a União do que a alternativa de vender os ativos do pré-sal. Na ponta do lápis, a ideia não é absurda. Diante das ações para combater os efeitos sociais e econômicos da pandemia, projeta-se que o déficit primário alcançará cerca de R$ 800 bilhões neste ano, elevando o endividamento bruto para níveis próximos de 100% do PIB.

O grande dilema, no entanto, é moral: seria justo tirar das gerações futuras, que já enfrentarão um planeta machucado pela queima de combustíveis fósseis, a decisão de usar como queiram o dinheiro obtido com recursos energéticos finitos? No limite, se for para mitigar riscos e abater dívida no presente, o governo colocaria todo o esforço arrecadatório de novos leilões em cheques à vista estratosféricos e receitas menores ao longo do contrato. Isso não parece razoável.

Pelas projeções da Agência Internacional de Energia (AIE), a demanda global por petróleo ainda vai subir dos atuais 96,9 milhões para 106,4 milhões de barris por dia em 2040, sobretudo por causa do apetite asiático. O que poderia ser considerado seria aperfeiçoar o ambiente regulatório e acelerar o leilão de mais áreas, sem cair nas tentações de curto prazo.

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