Professor de filosofia política analisa os obstáculos históricos do Brasil para o exercício pleno da democracia e fala ao 'Estadão' sobre o atual momento do País
'Há hoje no Brasil um mal-estar com relação ao estado de nossa democracia'
Caio Sarack* | O Estado de S.Paulo / Aliás
Tomemos a seguinte ilustração: um desbravador em territórios inóspitos traz abaixo, com suas ferramentas cortantes, os galhos que o impedem de ver e prosseguir em seu caminho. A imagem juvenil da difícil procura por algo recompensador não conseguiria dar a real dimensão da busca de um país por algo que não parece ter um lugar natural em sua história ou horizonte.
O livro de Newton Bignotto, professor de filosofia política da UFMG, traz o nome exatamente deste histórico empreendimento: Brasil à Procura da Democracia (Bazar do Tempo, 2020). Enquanto os galhos do desbravador cedem ao fio de suas ferramentas, o Brasil - assim parece - não consegue ultrapassar obstáculos tão maiores: racismo estrutural, o abismo da desigualdade social, participação e instituições políticas em franco descrédito; é preciso cerrar bem os olhos para enxergar sequer o vulto da democracia em meio a tudo isso.
Em terras brasileiras, o contato com o pensamento iluminista do século XVIII e XIX acabou por criar uma experiência intelectual estranha: por um lado, as ideias não têm um lugar específico para o qual podem voltar quando extraviadas, perdidas, afinal, sua racionalidade não toleraria determinações físicas; por outro, elas se conformam na dinâmica concreta e histórica a que estão sujeitas, criando ambiguidades e dissonâncias que nos dão a forte impressão de extravio que antes parecia impossível.
Nesse pêndulo, os conceitos de democracia e república surgem com uma luz particular: empurram a humanidade a uma vida mais livre e menos violenta, porque estabelecem limites institucionais à prática política sem travar a liberdade de sua criatividade; ao mesmo tempo, reconhecemos o espaço político, histórico e econômico em que esses conceitos seriam produtivos e, por consequência, conseguimos diferenciá-lo de quais outros espaços estes mesmos conceitos teriam de parasitar suas energias e recursos. Esse modelo de oscilação é percebido também no interior da nação brasileira que acabara de declarar-se república, as combinações entre atividades modernizadoras com lastro regressivo para os grupos sociais não inclusos. No capítulo de introdução ao livro, o professor descreve outra imagem, mais fluida, sobre os anos que antecederam a proclamação de nosso golpe "republicano": "anos agitados conduziram o país às águas da república e da democracia, carregando consigo, no entanto, uma série de problemas que se tornariam barreiras poderosas contra a implementação dos generosos princípios que guiaram muitos atores políticos nas últimas décadas do século XIX" (p. 18).
A utilidade pública do livro Brasil à Procura da Democracia, me parece, reside na possibilidade de tratar o conflito na tradição política brasileira e não tomá-lo como algo a ser extirpado da vida social, e ao fazê-lo, recoloca-o como um vértice a partir do qual todas as cidadãs e cidadãos possam produzir sua autonomia. O desafio, porém, não é só este. A escolha em tratar o assunto pelo prisma republicano teve de buscar na bibliografia do país o objeto da Democracia antes mesmo dele ter se materializado minimamente nas instituições e nas disputas de poder brasileiras.
Para reconhecer, portanto, as evidências desse pensamento democrático, para o professor não seria suficiente lançar mão da metodologia das ciências políticas; eleições livres e transparentes, bem como a garantia da universalidade do voto ou checks and balances institucionais seriam fenômenos tão raros que o livro, a partir de tal método, só seria possível se cometesse anacronismo severos até chegarmos à década de 1980 ou, antes, somente pelas décadas de 1950 e 1960.
A filosofia política, ou melhor, a filosofia sobre o político – com o grifo do filósofo francês Claude Lefort e da filósofa alemã Hannah Arendt – dá os instrumentos de maior cobertura para a investigação. Lefort e Arendt, disse o próprio Bignotto, estão presentes como sinais de luz que iluminariam rastros deixados através da história de um modo de pensar a convivência na cidade, seja ela antiga, moderna até chegar ao contemporâneo. O efeito do texto de Bignotto não está, porém, dirigido ao encerramento de um debate intelectual sobre o político, mas o reconhecimento mais amplificado dos fenômenos das disputas sobre esse político também no contemporâneo.
Ao dar espaço para que os fatos políticos possam aparecer, o autor aumentaria as possibilidades de interpretação com outros matizes, mesmo que permaneça fiel a certos princípios republicanos que são seus instrumentos. Essa habilidade de enxergar o próprio aparecer desses fenômenos políticos e intelectuais desde fins do século XIX, no Brasil, até hoje – assim espera o professor – poderiam municiar o pensamento político brasileiro a enfrentar os ataques recentes ou persistentes à coisa pública.
Sob a luz do nosso tempo, a tarefa do livro reflete certa confiança. Aposta na coerência dos fundamentos filosóficos da república e na sua importante estabilização, nas palavras do autor, "experiência democrática não terá como prosseguir sem a estabilidade dos pilares propostos no começo desse livro: igualdade, liberdade, participação, aceitação dos conflitos, autonomia da comunidade política, identidade" (p. 202). Ao fazermos o esforço de imaginar esses pilares se materializando na vida social brasileira, há quem resista em dizer que, nos registros históricos da formação de nosso país, eles não parecem fora do lugar? A máxima segue valendo: pessimismo da razão, otimismo da vontade.
Leia a íntegra da entrevista com Newton Bignotto:
• Ao ler os textos que compõem o livro, professor, percebemos que sua tarefa é compreender não uma teoria da democracia brasileira, mas entender como esse olhar sobre o político (o olhar democrático) tomou formas no Brasil. Qual função intelectual pública você compreende desse seu livro sendo publicado?
Há hoje no Brasil um mal-estar com relação ao estado de nossa democracia e o medo de que a crise pela qual estamos passando possa mais uma vez nos conduzir a um governo autoritário. De fato, ao longo de nossa história republicana, os regimes democráticos se mostraram frágeis e acabaram sucumbindo num processo que chamei de entrópico. Ao mesmo tempo, existiu entre nós uma preocupação com a natureza dos regimes políticos, que esteve na origem de sua série de obras de autores como Sérgio Buarque de Holanda que, focadas na realidade brasileira, se ocuparam com os valores e procedimentos que caracterizam um regime de liberdades. Acho que é uma tarefa importante recuperar o sentido dessa longa trajetória de reflexão sobre a democracia e de prolongá-la no contexto atual. Isso implica aceitar que temos um percurso fecundo das ideias democráticas entre nós e que vale a pena recordá-lo, para fazer do pensamento uma ferramenta de ação num momento no qual muitos agentes políticos se caracterizam pelo que a pensadora Hannah Arendt chamou de “vazio de pensamento”.
• O olhar democrático, porém, assume a responsabilidade de se localizar historicamente. Como estamos falando de um território como o nosso, construído sobre o trabalho de escravizados e da violência, de que modo essa abordagem democrática (ou melhor, republicana) sobre a qual está sustentada sua análise responderia a essas urgências?
Um dos primeiros autores que analiso no livro é Joaquim Nabuco. Ele caracterizou a escravidão como uma “instituição total”, indicando com isso que ela havia se infiltrado de tal forma na sociedade brasileira que resistiria até mesmo à sua abolição formal. Nabuco estava certo em sua intuição e nos ajuda a pensar o que chamamos de racismo estrutural. Ele aponta para o fato de que a existência de boas leis nem sempre é suficiente para superarmos as mazelas que herdamos de nosso passado colonial. Ora, a escravidão pesa até hoje em nossa sociedade como um obstáculo que ultrapassa os tempos e impede que sejamos capazes de enfrentar a desigualdade em todas suas expressões. Um par conceitual essencial de minha abordagem é o da liberdade-igualdade. Como temos encontrado grandes dificuldades para lidar com a desigualdade e com as diferenças que ela faz surgir na sociedade, também encontramos um enorme desafio para implantar uma forma democrática de governo na qual a liberdade faça sentido para todos. Nossa incapacidade de lidar com as diferenças faz com que nem todos sejam tratados como sujeitos de direito. As desigualdades estruturais moldam a aplicação da lei gestando um grau de arbítrio incompatível com uma sociedade republicana.
• A análise da ciência política, inclusive objeto de um dos capítulos, configurou para nós brasileiros um recurso muito interessante para nos orientarmos sobre as instituições e sua técnica política. Não é sobre esse viés, no entanto, que o senhor enfrenta a dinâmica do campo político no Brasil, como o senhor se diferencia/distancia daquela análise?
Analisar a democracia pelo viés de suas instituições é um caminho fecundo e necessário no mundo de hoje. Nesse sentido, não pode e nem deve ser descartado. No entanto, ao focar nossa atenção exclusivamente nesse terreno, diminuímos nossa capacidade de analisar crises como as que estamos enfrentando. Pensar os conflitos para além de sua expressão nas instituições é uma maneira de pensar as rupturas que ocorrem fora do campo institucional e que o contaminam. Isso se dá, por exemplo, na medida em que grupos políticos se digladiam para ocupar franjas cada vez maiores de poder, sem levar em conta os limites impostos pelas leis. A ideia de equilíbrio entre os poderes não pode ser interpretada simplesmente como uma forma mecânica de ponderação das forças presentes no jogo político. Como lembrava Montesquieu, a busca pelo equilíbrio se deve ao fato de que os poderes tendem a se devorar e, por isso, devem ser contidos mutuamente em suas pretensões. Esse parece ser o caso nesse momento no Brasil.
• Na esfera pública mais tradicional, há uma resistência em tratar o cenário político atual do Brasil com conceitos sobre o fascismo, sejam os resistentes pela diferença com o contexto do fascismo histórico da primeira metade do século XX, sejam aqueles que vêem na institucionalidade do nosso sistema democrática um funcionamento normal. Afinal, por que o fascismo é uma referência potente de crítica para nós?
A principal objeção que se faz ao recurso ao conceito de fascismo é que a situação do Brasil hoje difere em muitos pontos da vivida, por exemplo, pela Itália na primeira metade do século passado. É claro que isso é verdadeiro, pois nenhuma sociedade é idêntica a outra em suas configurações históricas. Mas, para mim, não se trata de fazer um estudo comparativo de sociedades de épocas diferentes, mas sim de recorrer ao rico manancial teórico produzido a partir de estudos realizados nas últimas décadas a respeito da origem e do desenvolvimento das sociedades totalitárias, para tentar entender aspectos importantes da cena pública brasileira. Para analisar a situação atual, acredito ser útil recorrer às análises do grande especialista italiano do fascismo, Emílio Gentile, que aponta três dimensões do processo de implantação do fascismo e de derrubada da democracia. Há a dimensão organizacional, a institucional e a cultural. Como não vivemos num regime fascista, é a terceira dimensão que interessa. Podemos também chamá-la de ideológica. É ela que nos ajuda a compreender os discursos de ódio que atravessam o país, a intimidação dos adversários do poder instalado e a negação da verdade científica, no caso da pandemia. A substituição do discurso racional por um amontoado de falas, que pretendem estruturar uma “visão de mundo” ancorada na propagação voluntária de mentiras, ajuda a criar um clima de confronto permanente que ameaça a ordem constitucional. A meu ver, o recurso às teorias que explicam o fascismo é uma ferramenta eficaz para compreender o estágio de avanço das ideias fascistas entre nós. Não sabemos ainda qual será o fim desse processo, mas é importante conhecermos suas etapas, para pensarmos o processo de degradação da democracia.
• Desde 2013, no caso do Brasil, ou antes nas ditas primaveras árabes e occupy's, o conflito político acabou desembocando em soluções muito estranhas àquelas que, imaginamos, foram os motivos de tais movimentos. A concepção de democracia de tradição republicana mais recente traz consigo uma nova natureza do político: ele é afeito ao conflito e disposto a tratá-los de maneira cada vez mais inclusiva sem ser necessariamente sintético, isto é, sem querer suprimir esse conflito. Como podemos ler esse cenário da última década à luz dessa concepção?
A república, como já dizia Rousseau, é antes de tudo um regime de leis, que acolhe em suas instituições o conflito. Com isso, nos abrimos para o fato de que ao mesmo tempo em que reconhecemos que o conflito é essencial numa sociedade livre e não pode ser suprimido sem suprimir ao mesmo tempo a liberdade, aceitamos que ao agir não sabemos onde vamos chegar. Recorrer às teorias republicanas para pensar o percurso das ideias democráticas no Brasil, permite-nos olhar para a última década como um período no qual as disputas políticas romperam com a referência à Constituição. Há uma verdadeira guerra de facções no cenário político, que torna ingênua qualquer análise baseada na compreensão plácida das disputas institucionais. Estamos vivendo uma crise política que ameaça a Constituição e a democracia e cujo desfecho permanece em aberto, enquanto os conflitos políticos operam para agudizar as diferenças sociais e não para enfrentá-las.
*Caio Sarack é mestre em Filosofia pela FFLCH-USP, é professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi.
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