Para economista, mecanismo inviabiliza a retomada
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - O teto de gastos tem data marcada para ruir, mas sobrevive com base em dois pilares, o dogma do mercado e o receio do Congresso de que sua derrubada favoreça a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O economista André Lara Resende tem interlocução suficiente no mercado e no Congresso e independência de ambas as instâncias para fazer uma afirmação dessas sem rodeios.
É um sequestro mútuo, sem vítimas inocentes. O mercado se ampara no teto de gastos porque acredita que o Brasil tem que continuar a remar contra a maré mundial e usa o fantasma da confiança do investidor para pressionar o Congresso a manter barreiras artificiais contra o gasto público.
O Congresso é mais sensível ao gasto, visto que depende dele para arrumar voto, mas vale-se do fantasma da fuga de capitais para negociar sua autorização, seja pela disputa entre beneficiários das liberações de verbas, seja porque teme que o maior deles seja a reeleição do presidente em 2022.
Os argumentos de Lara Resende são conhecidos. Se o Brasil ultrapassar os 100% na relação dívida/PIB, será um entre tantos do clube. A convivência com déficits, ainda que durante alguns anos, não é mais tratada, em lugar algum, como uma ameaça, mas como uma alavanca necessária para tirar economias do buraco em que a pandemia as meteu. E como o país não tem dívida externa, mas doméstica, falar em fuga de capitais é enganação.
O setor público deve atuar na indução do investimento privado e na incorporação das massas excluídas. Não é pela obsessão pelo equilíbrio orçamentário que se vai chegar a um ou a outro. Desde a crise de 2008 ruiu a crença de que a emissão de moeda provoca inflação. O controle de gastos deve evitar que interesses patrimonialistas deles se apropriem, mas não por ser um valor em si mesmo.
Essa obsessão freia, por exemplo, a convergência em torno de uma proposta de reforma tributária. São tantos os empecilhos criados pelos setores que podem vir a ser atingidos pelas medidas de simplificação que Lara Resende não vê outra saída senão aceitar um gasto compensatório, ainda que temporário, para mitigar perdas e permitir a reforma.
O risco a ser evitado, diz, é o da reforma da Previdência, que, tratada como a grande panaceia, acabou se mostrando como necessária, mas insuficiente, porque mais danosa ao INSS do que ao setor público.
Ex-presidente do BNDES, Lara Resende não gosta do Pró-Brasil nem conhece as mudanças que o ministro Paulo Guedes pretende fazer no programa. Tem certeza, porém, que uma agência de investimentos públicos, capaz de uma alocação eficiente para o desenvolvimento, com a mediação do Congresso, teria hoje um papel mais importante para a economia do que um Banco Central independente.
O economista vê uma conversão dessa natureza como um cavalo de pau difícil para as convicções do ministro, de quem foi colega na PUC-Rio, de cátedra e das peladas entre professores. Alguma mudança, porém, parece estar se operando, como adiantou o Valor na sexta-feira, na disposição do ministro em reformular e incorporar o Pró-Brasil, hoje capitaneado pelas pastas do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e Infraestrutura (Tarcísio Freitas) em aliança com os ministros de extração militar do Palácio do Planalto.
Junte-se a isso a reunião entre Guedes e o grupo de parlamentares que negocia a perenização de um programa de renda básica após o fim da vigência do auxílio emergencial. Os parlamentares presentes saíram com a impressão de que o governo está disposto a viabilizá-lo, ainda que não esteja claro como.
A pretensão, explicitada aos parlamentares, é levar adiante não apenas a junção do Bolsa Família, do salário família e do abono salarial como a incorporação de créditos a serem devolvidos do imposto decorrente da unificação do PIS e Cofins. São planos que dependem de, pelo menos, duas mudanças de intrincada costura: o fim do abono e a aprovação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). À tarefa some-se ainda a aprovação do imposto sobre transações eletrônicas que viria a financiar a retomada do investimento público, além da desoneração da folha.
É tudo difícil, mas um primeiro obstáculo foi tirado da frente na semana passada. Enquanto o ministro se reunia com os parlamentares da frente pela renda básica, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), conduzia a sessão que manteve o veto ao reajuste do funcionalismo.
Surgiu uma brecha de convergência que aponta, paradoxalmente, para o desmonte, explícito ou disfarçado, do teto de gastos. Essas ideias amadurecem no governo e no mercado. No BTG Pactual, por exemplo, já há conselheiros convertidos às ideias de Lara Resende.
No mesmo dia de sua última fala pública, no Fórum de Desenvolvimento, do economista Raul Velloso, um grupo de economistas, em grande parte de instituições financeiras, fez um manifesto em defesa do teto. O texto não abre mão do teto, mas reconhece o mérito, para a eficiência econômica e para o bem-estar da população, da expansão dos gastos assistenciais e de infraestrutura. Desde que reduzidas despesas obrigatórias, como as de pessoal.
Foi nesse sentido que avançou a manutenção do veto ao aumento do funcionalismo na semana passada e é nessa direção também que aponta a proposta de emenda constitucional do gatilho de gastos em tramitação no Senado. É uma proposta que veda reajustes, suspende promoções e proíbe concursos. Ao fim e ao cabo, aperta a máquina pública para alocar recursos em obras e renda básica.
Para chegar à proposta de Lara Resende e evitar a deterioração dos serviços públicos, precisaria avançar na direção de um governo digital, cujos ensaios malogrados levaram à saída do secretário de desburocratização, Paulo Uebel.
A PEC está no Senado, onde o jogo ficou mais instável com a derrota do governo na votação dos vetos presidenciais. É por meio dela, porém, que se pode fazer uma reforma administrativa disfarçada, enquanto a proposta do governo não vem. Na hipótese de a celeuma de o teto de gastos se acomodar aos interesses de lado a lado, esta será a nova frente de batalha.
Os economistas liberais e lideranças como Rodrigo Maia cobram a redução da máquina pública, necessária mas de alto custo político. Trata-se de outra convergência, com vetores distintos da defesa do teto, mas cujo pedágio também é o desgaste do presidente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário