- O Globo
A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes
A menina de 10 anos violada pelo tio monstruoso foi submetida a novo estupro quando uma certa Sara Giromini, acompanhada por sua malta de idiotas, começou a berrar diante do hospital em que se fazia o aborto legal. O ato dos extremistas nada tem a ver com crenças religiosas, ainda que as manipule como pretexto. No seu rastro, pegando carona nas justas expressões de indignação, emergiu o discurso dos arautos do aborto irrestrito, que só serve para congelar um debate público indispensável.
As religiões, sem exceção, celebram a vida. Sara e seus baderneiros desprezam a vida singular da menina, enquanto fingem defender a Vida genérica, com maiúscula. Transformando a vítima em símbolo de pecado, usam-na como bucha de seus canhões ideológicos. A perversidade dos extremistas deve ser comparada à do estuprador: como no caso dele, a menina desempenha a função de corpo inerte destinado à satisfação das vontades de seus captores.
Os jihadistas falam em nome do Islã, mas para negá-lo. Os desordeiros do hospital, tal qual os jihadistas, tomam o cristianismo como refém para veicular um programa político. São, uns e outros, renegados da religião à qual, hipocritamente, juram fidelidade. Os cristãos têm o dever, tanto cívico quanto religioso, de repudiar os aprendizes de terroristas que insultavam médicos e familiares da vítima.
A lei brasileira só admite o aborto em situações excepcionais, como a da menina violada. Há bons argumentos para revisá-la, mas eles são soterrados sob o clamor de certas correntes feministas embriagadas pela ideologia.
O aborto irrestrito seria, segundo tal ponto de vista, uma decorrência do direito das mulheres a seu “próprio corpo”. Não é preciso invocar princípios religiosos para apontar a falácia. O feto é um “outro corpo”, num duplo sentido. Biologicamente, tem potencial de vida autônoma. Socialmente, é assim reconhecido por leis como a licença-maternidade, que assegura à gestante tempo e remuneração para cuidar de um ser ainda não nascido, e pelo custeio público do acompanhamento pré-natal.
“Meu feto, minha decisão soberana e exclusiva.” A legalização irrestrita do aborto baseada nessa premissa radicalmente individualista implicaria, no plano lógico, a supressão da legislação de proteção à maternidade. Por extensão, abalaria os alicerces filosóficos das leis que responsabilizam solidariamente mãe e pai pela nutrição, saúde e educação dos filhos menores. O estandarte do feminismo niilista ajusta-se bem à visão ultraliberal de uma sociedade sem leis sociais — mas, paradoxalmente, costuma ser desfraldado por movimentos de esquerda.
Nada disso significa que a criminalização do aborto deva ser admitida num Estado laico. A menina conseguiu extrair legalmente o embrião, mas mulheres adultas precisam, de modo geral, recorrer a clínicas ilegais, caras ou perigosas. Definir o aborto como crime é produzir uma crise crônica de saúde pública. Uma solução encontra-se na combinação da oferta ampla de anticoncepcionais com a legalização limitada da interrupção da gravidez.
Diversos países aceitam o aborto nos meses iniciais de gravidez, apenas depois de sessões obrigatórias de aconselhamento psicológico do casal. Por essa via, o poder público passa a mensagem de que a interrupção da gravidez é um gesto extremo, um direito condicional e socialmente tutelado. Procura conciliar, assim, imperativos de saúde pública, direitos da mulher e o princípio moral da proteção de vidas potenciais.
A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes — ou seja, de preservar uma pluralidade de direitos. O conceito não cabe na mente de fanáticos, para quem um princípio único, fundamental e sagrado, fecha todas as janelas de debate.
Sara e sua malta de estupradores simbólicos são execráveis, mas não destituídos da esperteza típica dos extremistas. O ato provocativo tem a finalidade de deflagrar uma guerra ideológica com a vertente niilista do feminismo. No fragor da batalha, perderíamos a chance de discutir a sério nossa anacrônica legislação sobre aborto.
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