quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Flávio R. Kothe* - A propósito do maior imposto sobre o livro

O governo federal aventou o desejo de taxar o livro em mais 12% de impostos, o que provocou, nos últimos dias, a reação de editores, livreiros, donos de gráficas e escritores. O governo alega que pobre não lê; os interessados dizem que o livro precisa ser barateado para que ele possa ler. Marx lamentava que o capitalismo estivesse então pouco desenvolvido na área editorial, da qual ele próprio dependia.

Quando estudei em Berlim Ocidental e ainda havia socialismo do outro lado do Muro, meus colegas costumavam comprar livros lá, pois não eram considerados mercadorias e sim bens culturais. Quando o socialismo soviético caiu, os preços das partituras musicais, por exemplo, aumentaram muito (como também o preço da cerveja). Os que se deram bem conseguiram, no entanto, salários mais altos. O sistema caiu porque não soube fazer preços de acordo com os custos. Foi autoritário ao ideologizar os preços conforme o que fosse considerado necessário ou luxo.

Em livro recente, Fundamentos da teoria literária, eu me fazia perguntas como: qual é o valor do poeta onde nada se dá por ele? Qual é o preço do que tem valor inestimável, e não é estimado? Qual é o valor da palavra na era do best-seller? Será o valor da arte proporcional ao preço? O que significa a arte ser transformada em mercadoria? Como se impõem hoje obras ao público pela escola e pela propaganda? Qual é a relação entre valor artístico e preço de uma obra?

Se o preço expressa o valor do trabalho social médio para produzir a mercadoria, a criação genial escapa a essa mediania. Fora do parâmetro, ela pode ou não ser reconhecida em termos de preço. Se o artista inovador não é reconhecido por causa da ruptura de paradigma, ele é deixado à margem e não consegue viver do que produz, pois o mercado não o reconhece. Boas obras podem ser perdidas ou nem ser descobertas, assim como obras menores podem ser valorizadas por razões não artísticas, como a conveniência de governos, instituições eclesiais, partidos políticos.

Temos três tipos de escritores: os que precisam pagar para ser lidos; os que conseguem publicar sem pagar nem receber; os que são pagos para escrever. Dos primeiros para os últimos há um afunilamento. Professores, jornalistas, médicos e advogados são pagos pelas palavras que produzem. Pode-se calcular o preço de cada sílaba. O preço é o valor atribuído pelo mercado, ou seja, o valor de troca da sílaba. Nem todo bem que se gera passa, no entanto, pelo mercado. As frutas e verduras que colho no meu quintal para meu consumo não passam pelo mercado, mas atendem a necessidades.

O labor investido nelas é considerado, até por Marx, como “trabalho improdutivo” (porque não gera lucro). Boa parte do que nós aqui produzimos como literatura é trabalho improdutivo. É estranho que ele use essa terminologia, pois parece que nada se produz e só interessa ao capital o que vai produzir valor a mais e daí lucro. É a lógica do capital, como também é supor que a revolução deve ocorrer para aumentar a produtividade das forças de produção mudando as relações vigentes em vez de se pensar na redução do consumo, do número de consumidores.

No Brasil, o sistema capitalista não conseguiu ainda implantar-se bem na área editorial e literária: pelo contrário, convive com formas que não são propriamente capitalistas, como edições que precisam ser financiadas com verbas privadas ou públicas, por não conseguirem se autofinanciarem. Isso não impede, no entanto, que preponderem formações capitalistas, inclusive com empresários que vivem da publicação de obras financiadas por seus autores. Há associações e órgãos públicos que não entram no circuito normal de distribuição do livro. Quando o sistema capitalista funciona “corretamente”, ele pode (e até precisa fazê-lo, para ter uma ampliação do mercado de consumo e, assim, colocar a sua produção) dar um aumento real de remuneração à mão de obra produtiva, embora não na proporção direta de sua produtividade, pois se não deixaria de capitalizar ao máximo o capital. O livro digital é um novo caminho no mercado, mas aumentou também o número de revistas de acesso gratuito.

Se os poetas não são procurados no mercado, se há como que mais poetas do que compradores de poesia, se o público pouco se dispõe a comprar livros de poesia, mas se mostra disposto a olhar uma telenovela depois da outra, um enlatado depois do outro, isso indica que os “poetas atuais” devem procurar trabalho onde, mediante uma tecnologia mais avançada, possam atingir um público maior. A “poesia de papel” se torna como que obsoleta, um exercício para anacrônicos escribas procurarem privadamente descarregar tensões, o que lhes poupa um analista, ou/e permite aprender um ofício, que poderá ser útil em outros setores. Ainda que se proclame a liberdade dos ofícios, na prática os poetas estão de antemão expulsos na república dos analfabetos funcionais: raras andorinhas fazem uma versão, jamais um verão.

Mesmo que alguns possam pretender ser uma demonstração da necessidade social da poesia, o mercado os desmente: a situação só não é pior porque nunca foi boa. Mediante o cânone ensinado nas escolas, faz-se de conta que ele é o abrigo da grande poesia e não uma conveniência ideológica da oligarquia. Os grandes poetas são os mais expulsos (o sistema escolar brasileiro constitui-se hoje numa imensa muralha chinesa contra a penetração da grande poesia mundial). Eles não têm a função de agradar, mas de dizer as verdades subjacentes à história e à existência. Produzem por irritação, como as ostras, e, como as ostras, pagam com a vida as pérolas que produzem. Porcos não gostam de pérolas: são-lhes duras e indigestas. A valorização do autor regional não garante qualidade, mas reforça o patamar da mediania.

A lei da oferta e da procura não basta para explicar porque certas coisas são mais valorizadas e outras menos. A propaganda consegue, até certo ponto, manipular o que passa a ser considerado necessário pelos consumidores. Um trabalhador conseguir ser mais produtivo pode dever-se a uma máquina mais sofisticada, cujo preço precisa compensar-se pela sua rentabilidade: ela então “se paga”. (E se a “máquina” é ele mesmo, como ocorre com o poeta, cujo valor não é diretamente proporcional ao tempo de trabalho social médio nele investido, já que há um fator incontrolável que é o dom?) Se a mão de obra é barata, parece não valer a pena o investimento em maquinário. A vida humana vale pouco, não mais que uma peça da máquina.

É o que acontece no mundo subdesenvolvido: logo se descobre, porém, que até nele a máquina se paga. Máquinas substituem pessoas: diminuem custos, aumentam a produtividade e a taxa de lucro. Mais gente pode ser sustentada, menos consegue trabalho. Diminuída a taxa de natalidade, todos poderiam viver melhor, mas há cada vez mais gente sem utilização. Quanto maior o avanço tecnológico, mais cresce o desemprego e tanto mais a “cultura” serve para entreter inúteis, a um custo social menor: tem a mesma função do álcool, das drogas: regenerar forças e olvidar. Por outro lado, quanto menos qualificadas as pessoas, tanto mais em geral se reproduzem. A miséria se multiplica.

A taxa de lucro pode ser alta também com obras de baixa venda, como edições de luxo, especializadas e para bibliófilos. Dentro da lei preponderante, da quantidade de venda validar a “qualidade artística”, cria-se inclusive o star system, em que escritores e artistas mais vendidos são também os mais entrevistados, comentados, divulgados. Pode gerar-se um círculo vicioso, em que o sujeito é grande porque aparece, e aparece porque foi conveniente considerá-lo grande.

Nem todo best-seller é a melhor escrita, ainda que nenhum seja mal escrito, mas há obras bem escritas que não entram na lista dos best-sellers (porque boas demais para a massa dos consumidores). A lista dos mais vendidos tende a não ser uma listagem de melhores obras. Já houve esforços editoriais de publicar obras da melhor qualidade, se necessário em boa tradução, que não redundaram em êxito de vendas. O que vende é o livro adotado em escolas, e as escolas não adotam os melhores livros. No máximo adotam versões resumidas e simplórias de boas obras.

Fora do âmbito dos livros que entram no mercado para serem vendidos, há também uma extensa e diversificada produção de obras patrocinadas pelos autores ou por órgãos de financiamento. Costuma-se fazer um lançamento, no qual apenas algumas dezenas de exemplares são vendidas, como ajuda de custo ao autor. Desapareceu o costume de editar obras por subscrição, ou seja, com a venda antecipada de exemplares. Há um sistema de elogios mútuos, em que todos são ditos autores excepcionais, sem defeitos. O livro só é aí mercadoria na relação do editor com o autor e na revenda de alguns exemplares, mas ele não costuma entrar no sistema de vendas de livrarias e sebos.

A obra paga pelo autor pode tratar de detalhes da história, mas não surge em geral como algo de valor amplo que só é escrito porque nada equivalente há para ser lido. Esses depoimentos pessoais podem ser muito interessantes, mas não entram no mercado do livro. Nas universidades, os professores e alunos de pós-graduação são forçados a publicar, em que mais importa a quantidade do que a qualidade. Esta, aliás, não conta: só conta o que pode ser contado, numerado, quantificado. Quantias de páginas se igualam entre si, como se fossem equivalentes. O que for melhor se torna ruim para o autor.

Entre grandes editoras voltadas para best-sellers e editoras que funcionam como gráficas pode surgir uma alternativa. A redução de custos com o computador, programas gráficos, impressoras e livrarias virtuais pode levar a edições menores, sem maiores custos de armazenagem, um sistema de print on demand e livro digital que permite publicar boas obras como algo viável em termos comerciais. As obras podem ser vendidas no mundo inteiro. A língua portuguesa é uma das com mais potencial de leitores. Pode haver assim uma síntese positiva entre a aspiração do editor em publicar boas obras e isso ser viável comercialmente.

O belo, o bom e o verdadeiro não são por si democráticos. A lista dos “mais vendidos da semana” decorre de uma relação entre a escolha temática, a estrutura narrativa, a mentalidade e o gesto semântico de obras que correspondem ao gosto mediano e à mente um tanto estreita do público médio. Tem-se o império da medianidade, mas que ousa propor o novo. A lista dos best-sellers tende a ser uma lista dos livros que não vale muito a pena ler, o que complementa o padrão do cânone escolar. Ao contrário da crendice de que “o que é bom sempre aparece”, pode-se caricaturar dizendo: “o que é bom, não aparece; o que aparece, não é bom; como o excelente não tem preço, nada se paga por ele”.

*Flávio R. Kothe, mestre, doutor e livre-docente em Teoria Literária; professor titular de Estética na Universidade de Brasília e presidente da Academia de Letras do Brasil

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