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O aborto foi mais grave do que o estupro, segundo arcebispo
A menina de 10 anos submetida a um aborto no Recife foi estuprada por três entidades, como bem observou Djamila Taís Ribeiro dos Santos, pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo: o tio, desde que ela tinha seis anos, o Estado brasileiro e as plataformas que abrigam as redes sociais desde que o seu caso tornou-se público.
O tio entregou-se à polícia de Minas Gerais e foi recambiado para o Espírito Santo, onde confessou informalmente seu crime. No passado, fora condenado e preso por tráfico de drogas. O Estado brasileiro e as plataformas devem explicações sobre seu comportamento e, em breve, serão acionados na Justiça para que as ofereçam se insistirem em permanecer calados.
Dois assessores da ministra Damares Alves, da Mulher e dos Direitos Humanos, foram enviados de Brasília para pressionarem a avó da menina a convencê-la a não abortar. A eles se juntaram no Espírito Santo cristãos ultraconservadores que tiveram acesso à menina e aos seus dados pessoais. Sob a alegação de “razões técnicas”, hospitais do Estado se recusaram a fazer a cirurgia.
Em um deles, por 36 horas, a menina ficou internada e submeteu-se a exames. Médicos, ali, a persuadiram sem sucesso a manter a gravidez indesejada e fruto de um crime. Levada para o Recife, antes mesmo que chegasse por lá, seu nome, destino e nome do hospital onde seria atendida já circulavam impunemente nas redes sociais. Só foram apagados mais de 24 horas depois.
A menina deu entrada no hospital escondida na mala de um carro e por uma porta dos fundos. A porta da frente estava ocupada por dezenas de cristãos extremistas mobilizados por políticos locais. Antes de ela ser operada, dois médicos, também cristãos extremistas, conseguiram entrar no hospital e a abordaram chamando atenção para o sofrimento que seria imposto ao feto.
Consumado o aborto que havia sido autorizado pela justiça, não se sabe se a menina e a avó que a acompanhava foram informadas sobre o que disse a respeito o arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido. Ele simplesmente afirmou: “Se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa (…), gravíssimo foi o aborto realizado”.
Dito de outra maneira: para o arcebispo, alinhado com os cristãos que recepcionaram a menina à sua entrada no hospital com gritos de “assassina”, o aborto foi um fato mais grave (“gravíssimo”) do que o estupro continuado por quatro anos que ele qualificou como um abuso apenas “grave”. Em 2018, segundo o Ministério da Saúde, 21.172 crianças com idade entre 10 e 14 anos deram à luz.
Do total, 15.851 eram meninas negras, assim como a garota que desembarcou no Recife abraçada a dois brinquedos: um sapo e uma girafa de pelúcia.
Onde está o grande nó que o governo evita desatar
Censo ameaçado
Por que o governo travou o plano de privatizações de empresas estatais? E por que travou a proposta de reforma administrativa que parecia pronta para ser despachada ao Congresso? Ora, porque o presidente Jair Bolsonaro embirrou com as duas coisas.
A primeira porque ele tem queda por um Estado forte, entendimento canhestro muito cultivado no meio militar. A reforma administrativa empacou porque ela passa por redução de pessoal, de salários e de outras vantagens do funcionalismo.
Imagine só se Bolsonaro vai topar encarar essa parada logo quando está em campanha para tentar se reeleger. Está em campanha desde o dia que tomou posse. Para ele, a próxima eleição é logo ali, embora ainda faltem mais de dois anos.
Não quer arranjar encrenca com servidores públicos. Se dependesse só dele, gastaria mais. Teme os efeitos da suspensão do auxílio emergencial contra a pandemia. E os efeitos do corte no valor do auxílio que impulsionou sua popularidade.
O grande nó que o governo tem para desatar, e lhe falta coragem para isso, não está na lei que estabeleceu o teto para gastos, mas no peso dos chamados gastos obrigatórios, em especial a folha de pagamento dos servidores. Ela cresce ano a ano.
Já equivale a 14% de todas as riquezas produzidas pelo país. No caso do Ministério da Saúde, por exemplo, dos quase 130 bilhões do Orçamento sugerido para o próximo ano, 110 bilhões são destinados ao pagamento de pessoal e de despesas obrigatórias.
O quadro se repete na maioria dos demais ministérios. O serviço público é uma torre de babel com mais de 300 planos de carreira, mais de 22 mil cargos, e mais de 130 mil postos com direito a gratificações. Não há limites para a generosidade da Viúva.
Para funções que exigem nível superior, os salários médios pagos pelo Estado são quase 4 vezes superiores aos pagos pelo setor privado. Não é por outro motivo que o Distrito Federal tem uma das maiores rendas per capita do país.
Ao invés de desatar o nó, o governo tergiversa. E admite cortes de dinheiro nas áreas mais essenciais para a população, como Saúde e Educação. O Ministério da Defesa ganhará mais 2,2 bilhões para gastar em 2021. Mais do que a Educação, que perderá dinheiro.
O Censo Demográfico, que acontece a cada 10 anos, já não foi realizado este ano, e está ameaçado de não ser no próximo. Para Bolsonaro não fará diferença. Ele não sabe direito para que serve.
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